A vez da caça

“Morte aos meninos!” como se
não fossem p/arte do todo fossem
do outro mundo e a c/idade
- ventre expúrio - papa-ovo (...)

Marcos Dias

 

Mário estava ali mais uma vez frente ao computador na tentativa de mais um conto. Era uma dessas tardes quentes, o que dificultava até a respiração. Rubem, o gato, sorrateiramente, se esfregava em Mário, demonstrando ciúme das palavras que pareciam não largar seu dono.

Rubem lhe faz companhia desde que Rita foi embora. Ficaram casados dois anos, tempo suficiente para descobrirem que não se suportavam e que não há nada de romântico no amor.

Morar sozinho tinha suas vantagens. Mário podia andar nu pelo apartamento sem incomodar ninguém. Ele adorava a liberdade de poder navegar, nu, pelos mares da internet, adorava poder conversar com outras pessoas sem ser visto. Pelos poderes da “nave mãe”, podia ser muitos, podia ser quem quisesse. Enquanto conversava pela net, inventava personagens, criava situações, podia até se apaixonar.

Uma vez, pensou que o computador poderia ajudá-lo a criar um outro à sua imagem e semelhança. Outro que lhe obedeceria e o substituiria em todas as chatas ocasiões, principalmente, almoço em família, formaturas, velórios e casamentos. Ele, Mário, patentearia o microship que, lançado no mercado, possibilitaria a ele vender a ideia a possíveis clientes que também seriam replicados, saltando para o mundo via monitor.

Mas Mário não queria ser substituído na atividade que mais gostava: lançar-se na madrugada em companhia de Glória, sua colega de faculdade e caçar criancinhas. O segredo era descobri-las, caçá-las e não matá-las. Quando isso, por vezes, acontecia, Mário sentia um certo remorso, que durava pouco. Glória não estava nem aí frente ao prazer que sentia, ao gozo e êxtase ao qual era levada todas as vezes que saíam para caçar e, às vezes, matar.

Naquela tarde quente, em que tentava mais um conto, lembrava-se da noite anterior em que saíram e tentaram caçar algumas crianças. Deixaram para sair bem tarde, madrugada mesmo. Como à noite os gatos não são pardos entre os gatos, eles se reconheceram rapidamente e lá estavam a se cumprimentar.

Os carros foram estacionados em um lugar estratégico para facilitar a volta para casa. Tiraram as armas. Ela não disfarçava o entusiasmo. Armas no ombro, uma última olhada para certificarem-se de que não esqueceram a munição e saíram à caça.

Mário e Glória já conheciam bem os lugares onde elas ficavam. Os pedaços de papelão e jornal, o cheiro de urina e fezes, os cobertores Paraíba, a cola. Lá estavam as crianças a dormir.

Como não havia, no país, possibilidade de safáris, Mário e Glória decidiram caçar certas crianças que, acordadas pelo som de um apito, corriam, corriam; corriam na tentativa de encontrar um abrigo, um lugar que as protegesse dos caçadores.

A população desconhecia os nomes dos caçadores, mas sabia que alguém, vez por outra se aventurava pela madrugada a caçar crianças. Porém, fazia ouvidos moucos. Fingia nada ver, nada saber. Portanto, quando a população ouvia o som do apito, os bares vinte e quatro horas eram fechados, as patrulhas sumiam das ruas, os carros e ônibus paravam de circular simultaneamente. A rua, de madrugada, era apenas da caça e dos caçadores.

Os meninos e meninas subiam a avenida correndo, enquanto os dois atiravam para cima, rindo enlouquecidos. Eles não se importavam de correr, usavam botas apropriadas, enquanto as crianças corriam descalças, até os pés sangrarem. Sem abrigo, cortavam a madrugada correndo.

Mário lera recentemente um conto, de um jovem escritor, intitulado O dia da caça, e ficara contente ao ver ali retratada a sua atividade preferida. No final desse conto, um dos moleques, ferido, com o corpo encolhido no chão pede clemência: não me mata não, moço. Mas o personagem, Mário sentia-se o próprio, não tem piedade e dispara duas vezes.

Pensando na piedade que ele, Mário, também não teria, foi que avistou um garoto em pé, lá no ponto de onde partiram ele e Glória. Como era possível a permanência daquele garoto ali? Nenhuma criança ousaria permanecer quieta diante do apito dos caçadores, todas saíam correndo, acrescentando cor local àquela atividade. Chamara Glória e mostrara o garoto.

- Audácia daquele menino, replicou ela.

Começaram a descer a avenida devagar. O garoto não arredava pé. Permanecia lá, estático, esperando por eles dois. À medida que se aproximava do garoto, o coração de Mário aumentava os batimentos. Nunca fora enfrentado em nenhuma caçada, não seria aquela a primeira vez.

Quando já estavam bem perto dele, Mário perguntou-lhe o que significava aquilo. O garoto não respondeu e, à medida que o tempo passava, o silêncio pesava mais do que uma tonelada. O garoto nada dizia, mas mantinha os olhos fixos nos olhos de Mário. Atirar em caça parada não era do feitio daquele experiente caçador, por isso, junto com Glória, começou a atirar próximo aos pés do menino, tentando fazer com que ele saísse do lugar. Mas o garoto mantinha-se quieto. Nada abalava aquela fortaleza em que ele parecia ter se convertido.

Se o menino não corria, os caçadores não viam prazer em caçar. Glória achou melhor que fossem embora, mas Mário não quis. Agora queria entender o porquê daquele enfrentamento. Chegou bem perto do garoto e encostando seu rosto no rosto do menino perguntou:

- A troco de que tudo isso? Se hoje você não corre, correrá amanhã ou depois de amanhã ou depois de depois. Mas o garoto não respondeu.

- É isso aí, disse Mário. Vamos embora Glória. Amanhã a gente volta.

Mas quando Mário e sua companheira viraram-se para sair, havia uma legião de meninos atrás deles. Uma legião de meninos negros, ou seriam pardos? Ou seriam mulatos? Ou seriam brancos? Ou não seriam meninos? Havia também meninas; meninas pardas, meninas mulatas, meninas negras. Ou também não seriam meninas? Estavam todos lá e Mário lembrou-se do rosto de cada um e uma, lembrou-se até do rosto dos que ele, eventualmente, havia matado e que não sabia como podiam estar ali.

A pergunta era: como todas aquelas crianças haviam começado a descer a avenida para juntarem-se às outras? Os caçadores estavam rodeados e eram impregnados do cheiro de urina e fezes, do sangue que escorria dos pés que haviam corrido tanto, do cheiro dos jornais velhos, dos papelões, o cheiro da cola. Enquanto iam sendo rodeados, o menino que os enfrentou primeiro permanecia no mesmo lugar, silencioso, não perdendo de vista o olhar de Mário.

Glória tentou ainda utilizar a sua arma, mas ela não funcionou. As crianças não estavam armadas e também permaneciam em silêncio. Um raio cruzou os céus da cidade. O menino, aos olhos de Mário, ia crescendo e surgiam várias outras figuras atrás dele que Mário dizia ver.

- Glória, veja. O garoto não está sozinho, há mais alguém com ele, é por isso que ele cresce tão rápido. Ele não está sozinho.

- Eu não vejo ninguém além dele e das outras crianças. Eu quero é ir embora daqui o mais rápido possível e não mais voltar.

Com os olhos fixos no menino, Mário começou a pedir clemência. Desejava sair dali e ir embora para casa. Os meninos se entreolharam. O garoto pareceu, ainda a partir dos olhos de Mário, ter ouvido alguém e a um leve movimento de sua cabeça, as crianças abriram um caminho para que Mário e ela pudessem passar. Antes, as crianças tiraram as botas dos dois e como os carros haviam misteriosamente desaparecido, eles voltaram a pé e descalços para casa.

Glória disse a Mário que não pretendia passar por aquela experiência novamente, iria embora no dia seguinte, portanto, hoje, esse dia quente, insuportavelmente quente.

Mário nu diante do computador não conseguia mais escrever. Os olhos do menino não saíam de sua cabeça. Fizesse o que fizesse os olhos dele estavam lá a persegui-lo. Depois da noite anterior, Mário sabia que fora caçado, sabia que não mais escreveria e que não mais caçaria.

Mas Mário tinha ainda uma outra certeza, a de que sairia todas as madrugadas sozinho, procurando encontrar aquela legião de meninos e meninas e, principalmente, aquele garoto que lhe enfrentou, na tentativa de quebrar-lhe o silêncio e ouvir um sussurro seu que fosse.

Nessa tarde quente e com o calor tendendo a aumentar, Mário viu pela janela a rua movimentada, garotos soltos pela rua, cortando a paisagem, incomodando com um balé desengonçado. Estavam nas traseiras dos ônibus, no alto dos monumentos, estavam.

A Mário, que tentava alcançar agora o silêncio do menino que lhe invadira corpo, alma, espírito e coração, restava render-se ao ciúme e aos carinhos pegajosos de seu gato. Rubem amanheceria feliz.

 (De flores artificiais, p. 19-25)

 

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