Da barriga do abutre

 

 

“restavam os bichos; a gente poderia ser bicho: os bichos não apodrecem tão facilmente como os homens, os bichos não possuem árvores genealógicas, nem livros de linhagens, eles se vestem de acordo com os espécimes, suas roupas nunca mancham, nunca deformam e são previamente encolhidas.”

Adão Ventura

 

Eu compartilhava, quando pequena, dos delírios de minha avó. Uma noite, por exemplo, ela acordou gritando e minha mãe acudiu-a desesperada. Minha avó dizia que o quarto estava repleto de gatos. Gatos de todos os tamanhos e cores. Os felinos não a deixavam dormir.

Minha avó gritava para que minha mãe retirasse os gatos dali e minha mãe dizia que não havia gato nenhum no quarto. Como a fala dela não surtia efeito sobre minha avó, minha mãe rendeu-se, posicionando-se na porta do quarto e fingindo retirar os gatos. Porém, eu também os via e contava um por um atrás da porta.

Mas o tempo passa e crescemos todos e morremos alguns. Foi assim comigo e com minha avó. Eu cresci e ela morreu. Porém suas palavras permaneceram pipocando vez por outra na minha cabeça.

Por isso, no momento em que vi, naquela exposição, um dos trabalhos de Mestre Didi, lembrei-me de minha avó em um de seus delírios repetindo que havia uma árvore, duas serpentes e um pássaro e havia ainda uma outra árvore grande que rezava. Era assim que minha avó se fazia amar, através de seus delírios. Eu gostava de ouvi-la. Cada delírio era uma história e eu ficava ali sentada ouvindo-a contar. Repartíamos imagens, visões e segredos.

Às vezes, fingia não saber dos números e minha avó pegava minha mão e movia meus dedos dando a cada um valor numérico. De outras, enquanto trançava meus cabelos, ia contando junto comigo cada trança e íamos até o infinito.

Mas havia dias em que minha avó queria fugir das visões que tinha. As imagens vinham, mas por mais que ela tentasse desvencilhar-se delas, não conseguia. Existiam, segundo minha avó, imagens boas e imagens ruins. Quando as visões eram boas, ela sorria e ficava feliz. Quando não eram, ela cerrava as sobrancelhas, fechava-se no quarto e ficava dias sem conversar. Minha avó nunca revelava o teor de tais imagens, guardava-as para si.

Quanto a mim, ando assim, ultimamente, tomada pelas visões de minha avó. Uma das últimas que tive revelou-me um abutre, a barriga aberta de um abutre e por mais que tentasse, dele não consegui deduzir o azul.

O abutre caminhava assim com as vísceras abertas e para cada víscera parecia corresponder uma história.

 

Da primeira víscera

 

Lia tinha oito anos. Lia entregava roupas. Lia morava na cidade baixa. Lia não inspirava cirandas. Lia não gostava de Dona Rosa que sempre punha preço no serviço bem feito de sua mãe. Lia ficava com raiva da mãe que aceitava o preço de Dona Rosa.

Lia não conhecia o clube. O tio de Lia fazia uns serviços lá. Lia queria entrar no clube, mas o cartaz dizia: era expressamente proibida a entrada de pessoas de cor naquele REIcinto de segurança.

 

Da segunda víscera

 

Os dois brincavam de roleta russa bem ali no mirante. De lá sempre podiam mirar a cidade e acertar direto no alvo. Estavam sozinhos e, à medida que ia anoitecendo e a cidade acendia as suas luzes, ficavam cada vez mais sozinhos. A cada ausência de uma bala, eles riam. A cidade iluminada nunca saberia seus nomes. Eram dois lá no ponto de mira. Mas na miragem, ouve-se apenas um estampido.

 

Da terceira víscera

 

No bairro era conhecido como laranja, bucha de canhão, aviãozinho. Esses eram os vários nomes de Zé que, para garantir uns trocados, fazia todo tipo de favor para qualquer que lhe pedisse. Zé tinha os pés ligeiros e cortava o centro da cidade ou as vielas do bairro onde morava como ninguém. A sua ligeireza era famosa , daí a sua constante solicitação.

Na madrugada de ontem, por mais que pedisse ajuda à sua ligeireza, às suas pernas que lhe deram fama, não conseguiu. Uma entrega mal feita e o resultado estava ali. Laranja, bucha de canhão, aviãozinho cravado de balas, com as vísceras sujas de areia misturando-se com as vísceras expostas do abutre. Zé ainda pediu a minha avó:

- Conta vó, conta uma história sem vísceras pra mim.

(De flores artificiais, p. 47-49)

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