Capítulo XXI

Na fazenda do Tronco, dois fatos haviam quebrado a monotonia da casa-grande: o desaparecimento de Efigênia e a partida do coronel Galdino, acompanhado do vigário.

Dona Sinhá retomara subitamente a direção da propriedade. Em poucas horas com a cooperação de seu servilíssimo capataz restaurara o regime do chicote e do açoite. Na senzala corria um murmúrio acerca da nova situação criada com a saída intempestiva do coronel. Dona Sinhá tomou conhecimento do vozerio, que corria e tratou de disciplinar a troça com uma leve advertência. Chamou o João e mandou exemplar o Carlos, um negro cuja compleição máscula, volta e meia, despertava, entre as negras, certo interesse durante as congadas. Ele tinha a mania de falar alto e dona Sinhá desconfiava que ele a tivesse criticado, por ocasião de sua visita ao engenho. Para cortar rente o disse-que-me-disse, chamou o João e deu instruções no sentido de dar-lhe meia dúzia de bolos, pondo-o em seguida na solitária.

O castigo servirá de exemplo, teria dito ela ao João, justificando a ordem. O capataz se habituara a obedecer. Mas, daquela feita achou extravagante a decisão de dona Sinhá e começou a raciocinar sobre o castigo que iria aplicar. Qual, pensava ele, essa dona Sinhá está doida. O que teria feito o negro para receber tal castigo? Se está falando e ninguém o entende, por que castigá-lo? Qual, aqui tem dente de coelho...

Já estava a caminho da almanjarra, quando o sino da administração tocou com insistência, chamando-o.

– João – disse dona Sinhá ao vê-lo entrar de chapéu na mão – é preciso procurar imediatamente Efigênia. São seis horas e essa negrinha não apareceu. Depois de um longo interrogatório a que submeti Benedita, só ouvi mentiras.

Ao proferir estas palavras, sua fisionomia ganhou uma estranha luminosidade. Levantou-se da cadeira, e, diante de Benedita, frente a frente, exclamou com arrogância:

– Sua mentirosa! Você, sua negra desgraçada, aonde foi a sua cria? Já desde cedo que você e ela estavam de boca passada, fazendo lenda em torno da galinha fujona, só para n negrinha ir se encontrar com Paulinho na estrada. Sua velha sonsa e alcoviteira, agora, com certeza ela está no mato com ele.

João, cuja subserviência seria capaz das maiores baixezas, tratou de apoiar a versão da patroa.

– É mesmo, dona Sinhá, a negrinha andava tonta rom a chegada de seu Paulinho. É bem capaz de ter se oferecido a ele e agora está envergonhada de voltar para casa.

– Mi vaia minha Nossa Senhora! Mi santos mi açude! – exclamava a pobre escrava em gritos convulsivos entre cortados de profundos soluços.

Dona Sinhá não se conteve. Deu uma bofetada em Benedita e na violência do gesto sentiu um alívio imenso. Todo o seu velho ódio fora descarregado na brutalidade da agressão.

Por fim vingara-se da negra. Daquela negra desavergonhada, que tanto cobiçara, que tanto desejara Tião e acabara agarrando-o. Vingara-se da negra que pegara Tião, aquele homem que sonhara em amansar para ela. Tião o negro que todas cobiçavam e que seria seu não fora a peste de negra a se oferecer a ele... Estava vingada, mas, queria tripudiar ainda sobre a sua vítima. Era preciso liquidá-la de vez. Só assim se apagaria em sua memória o velho ódio contra Benedita, que pegara o negro mais cobiçado da fazenda, justamente o homem de que mais precisava para suprir as ausências do Galdino, que já começava a afrouxar. Sim, era preciso matar! Matar! Matar!

Em seu espírito a idéia foi se agigantando de segundo a segundo, crescendo de intensidade e a cena macabra do espancamento começou a caracterizar-se em toda a sua hedionda brutalidade.

Dona Sinhá, em sua fúria, não se deu conta que estava pisoteando a negra estendida inerme sobre o solo. Foi preciso que o João a detivesse para evitar que prosseguisse pisando a infeliz escrava.

– Dona Sinhá. Sinhazinha! – clamava o capataz agarrando-a com força, sentindo que a patroa fora possuída por uma crise de nervos além do normal.

– Larga! Larga! Deixa que eu mato esta peste, só assim eu acabo com essa raça!

João conseguiu por fim detê-la. Dona Sinhá, mais calma, nem por isso esmoreceu em seus propósitos de vingança. Era de seu feitio não amolecer, não fraquejar.

– Pega essa coisa e bota no tronco até pôr sangue pela boca.

João levantou a escrava e jogou-a nas costas. Encaminhou-se ao terreiro debaixo. Sabia que a ordem a ser cumprida era muito dura e até mesmo perigosa. Embora Benedita não fosse muito querida dos outros negros por ter recebido do coronel Galdino uma porção de atenções dispensadas em caráter de exclusividade, a sua filha, Efigênia era cobiçada pelos negros mais fortes da tropa, e o castigo a ser aplicado era duro demais para não provocar a ira dos homens da senzala. Além do mais, Tião fora morto no tronco por ele, excedendo as ordens do coronel. Criava-se assim uma situação difícil para ele. Começou a temer por sua sorte.

Chegou até ao tronco, mas não amarrou logo a Benedita. Foi procurar o Negro Rei para parlamentar com ele. Achou melhor colocar-se numa atitude menos hostil. Se acaso estourar uma revolta na senzala, será contra dona Sinhá – pensava ele. Eu não terei culpa total. Assim eu alivio a minha parte. Foi até a almanjarra e conversou com o Negro Rei, cuja projeção, entre os demais, o situava na condição de verdadeiro chefe. Falou detalhadamente do que ocorrera. Como Benedita não voltara ainda a si, e fosse uma tradição não levar ao tronco um corpo desfalecido, João esperou pela solução da súplica que o Negro Rei fora fazer a dona Sinhá.

Enquanto isso, ao pé do tronco, Benedita recobrara os sentidos e gritava:

– Misericórdia, Sinhazinha! Misericórdia, meu Deus!

Os gritos lancinantes da negra revoltaram a tropa na senzala. O capataz sentiu o quanto seria brutal espancar aquela mulher indefesa. Agarrou-a, encostou-a ao tronco e, em seguida, foi buscar um pouco de água. Procurava por todos os meios ganhar tempo na suposição de que dona Sinhá concordasse em mandar procurar Efigênia.

– Misericórdia nada, sua negra sem vergonha! Você sabe onde está a sua filha – exclamou dona Sinhá do alto do terreiro.

Surpreendido com a chegada da patroa, João mal teve tempo de atirar a vasilha com água e justificar-se.

– Fui ver se arranjava uma corda mais nova lá no quarto dos arreios. Esta que eu tenho não inspira confiança, dona Sinhá.

– Ela já está bem pisada, e não vai fazer força. Pode começar a dança. Não adianta pano quente com essa gente.

João ficou meio atarantado. Esperava que dona Sinhá tivesse aquiescido ao pedido do Negro Rei e para não ficar desmoralizado, iniciou o sacrifício.

Cuspiu nas mãos, esfregou-as com intensidade e, depois, agarrando a chibata desfechou o primeiro golpe sobre a negra.

Dona Sinhá, embora distante, percebeu que o galeio do chicote, não obstante tivesse sido largo e bem medido, não fora suficientemente violento.

– Mais força, João! Não amoleça com essa gente! – gritava ela.

O capataz sentiu que seria vigiado e prosseguiu, agora, se esforçando por bater realmente com força. As pancadas sucediam-se violentas e Benedita acabou desmaiando.

– Joga água na negra! Deixa aí essa coisa! Amanhã aplicaremos mais uma surra até que ela confesse para onde foi aquela peste da Efigênia.

Da senzala partia um sussurro cheio de melodia, um cântico místico entoado em coro pelos negros, invocando seus deuses protetores, implorando-lhes o milagre da volta do coronel Galdino, ou do padre, para salvar Benedita.

No decorrer da noite, Benedita começou a sentir frio e aos poucos recobrava os sentidos. Gemia baixo com leves estertores, sofrendo a sensação causticante da umidade sobre a pele recortada pelo chicote. O sangue escorria de seus ferimentos. Entre soluços, ela balbuciava uma súplica.

– Num importa, meu Deus, morre, me dando a graça de eu vê a mia fia mais uma veis... pela última veiz que fô... Só anssim eu morrerei mais feliz sabendo onde tá a minha coitadinha. Num quero imaginá qui os bicho matô a mia negrinha ou entonces êsses marvado, que anda vadiando pelo mato, fez mardade cum a mia fia ... Oh! ... meu Deus, onde tá mia negrinha?... Meu Deus, num guento mais tanto sufrimento e dô... Tem piedade dessa pobre véia. Já padeci muito nessa vida. Me dê agora um pouco de descansu e um pôco de paz... Já nun tenhu ninguém pro mim... Tô tão suzinha, para que vivê anssim? É mió o Sinhô levá minha arma pra junto de mia fia e de meu negro Tião, que deve tá no céu esperando... Meu Deus, as forças já mi farta... nem sinto mais meu corpo. Num quero vivê mais. Leva eu daqui. Me tira desse inferno.

Finalmente prostrada pelo cansaço, vencida pela dor física e pela angústia do abalo que sofrera, deixou-se cair abatida.

Horas mais tarde, os cães, quebrando o silêncio da noite, ladravam, uivavam agourentos. O vento silvava entre as árvores. Eram pinchos, guinchos, uivos da voz triste do vento a sibilar entre as ramagens. As folhas secas levadas de arrasto pelo chão faziam um ruído estranho, quase sinistro como se fora à cavalgada lúgubre de um tropel de sacis. A noite fechada, escura, impenetrável, aumentava o aspecto fantasmagórico que envolvia a casa-grande. Havia no movimento das folhas secas arrastadas pelo vento em desvairado redemoinho.

Benedita começava a reagir ao esgotamento que a abatera. Afinou o ouvido como se estivesse à espreita de uma fera carniceira e, ainda confusa, supôs ouvir passos que se aproximavam do local onde se achava abandonada.

– Oh, meu Deus, é ele ainda!!! É ele outra vez!!! É ele, santo Deus!!! Me acude, gente!!!

Súbito, o ruído cessou. Benedita, tomada de pavor, começou a divisar aqui e acolá milhares de sombras que se aproximavam como se fossem verdadeiras falanges de espíritos do mal, armados de azorrague e tochas acesas pala causticá-la.

Delirava. Mas, em meio ao delírio pôde ainda ouvir nitidamente uma voz humana, extremamente humana, que a chamava com ternura:

– Mãe Benedita!... Mãe Benedita! ...

A negra estremeceu. Os seus cabelos se arrepiaram e, pelo seu corpo, sentiu um calafrio correr, eriçando toda a sua pele. Transida de medo, sem saber se estava sendo chamada por espectros do mau ou por um ser humano que quisesse ajudá-la, Benedita caiu numa crise convulsiva de choro.

– Não chore... Não tenha medo – disse a voz, agora mais próxima. Sou de paz e venho a mando de Efigênia para levá-la.

Benedita, ao ouvir o nome de sua filha, arrimou-se. Algo estranho em seu Íntimo fê-la sentir-se amparada.

– Anime-se! Tenha confiança em mim que nada lhe acontecerá, mãe Benedita.

No estado em que estava a negra não poderia oferecer nenhuma resistência.

Juliano cortou as cordas e depois de tê-la livre em seus braços, agarrou-a levando-a para a charrete oculta entre as moitas de café.

– Não se assuste. Fique calma – disse ele.

– Pra onde tá mi levando?

– Piss! Não fale tão alto assim... Alguém poderá ouvir e então estará tudo perdido!...

– Pra modeque tá me sarvando? sussurou Benedita.

– Vou levar a senhora para a fazenda do Sol Nascente. Sua filha Efigênia está lá, ela está viva na fazenda do senhor Antônio Bento, mãe Benedita.

– Não arquedito!... Num é possíve!...

– Piss! Fale baixo. Fale baixinho, mãe Benedita, até sairmos da porteira do rumo da fazenda do Tronco.

– Tô tôda machucada, mio fío, o sangue tá pisado nas costas.

– Eu sei – respondeu o capataz – mas logo que chegarmos ao sítio do Sol, dona Efigênia vai tratar da senhora. Agora por favor, não se mexa muito para não sentir mais dores.

Conduziu a charrete pelo meio do cafezal arruado, dando uma volta por trás do pequeno morro que ficava situado próximo ao terreiro da casa-grande.

Bendita compreendeu, em meio às aflições, que estava sendo levada para fora da Fazenda maldita. Aquietou-se no fundo da charrete, contendo os gemidos até que passaram a porteira de rumo da fazenda do Tronco.

Benedita percebera o cuidado do homem que a conduzia ao fechar cautelosamente a porteira, levando-se até ao batente.

Um pouco mais adiante, sentido-se já salva, indagou:

– Mas, quem é ocê, meu branco?

– Meu nome é Juliano. Sou capataz da fazenda do Sol Nascente. E para lá que estou levando a senhora a pedido de Dona Efigênia e por ordem do meu patrão, "seu" Antônio Bento, proprietário da fazenda.

– Ocê, meu branco, mi sarvou a pedido de minha negrinha e pur orde de seu patrão? Uai! Mí exprica isso mió...

– Mãe Benedita, ontem de tarde, eu apanhei dona Efigênia no mato da fazenda do meu patrão e ele agora mandou salvar a senhora do tronco. Não sei de mais nada, mãe Benedita.

Juliano acelerava a marcha do cavalo noite adentro. Por fim chegaram. Efigênia saltou sobre o carro, exclamando:

– Coitada. Foi toda cortada de chicote... Quanta perversidade!

Efigênia falava entre soluços. Antônio Bento e Juliano, junto da porta da casa, ouviam emocionados aquelas palavras e a custo contiveram as lágrimas.

– Mia fia – disse a velha – num percisa chorá... Eu estou aqui... Num percisa chorá mais...

– Pobre mãezinha, como judiaram de você... Vamos tratar o mais depressa possível desses ferimentos... Você vai ficar boa outra vez...

– Efigênia – disse Antônio Bento – vamos levar a sua mãe para dentro. Eu e Juliano a colocaremos na cama e você poder cuidar de mãe Benedita com todo cuidado que ela bem merece.

Tudo que era necessário estava ali à mão.

Na cozinha, Juliano esquentava uma boa canja que fora preparada cuidadosamente para Benedita. Antônio Bento, sentado numa cadeira junto à mesa, fazia companhia ao seu capataz.

– Estou curioso para saber como correram as coisas, Juliano. Conte-me como foi o rapto...

– Foi fácil, meu patrão – A tropa do Tronco anda toda espoletada com a presença de dona Sinhá. O coronel abandonou a fazenda ontem de manhã em companhia do vigário e a negrada está toda alvoroçada. O João, depois que levou Benedita para o tronco, quase não teve coragem de cumprir a ordem da patroa. Se ela não fosse presenciar a flagelação, a mãe Benedita teria escapado da surra.

– Como você conseguiu apurar tudo isso, Juliano?

– Foi fácil, patrão. Antes de levar a charrete para o cafezal, eu fui a cavalo até o terreiro da fazenda perguntar ao João se tinha visto o "Duque" na roça de milho novo. E daí, conversa vai, conversa vem, fui assuntando... Como o Negro Rei me visse conversando com o João, eu tratei de falar com ele, dando trela pra saber como estavam as coisas e fiquei sabendo que mãe Benedita ficaria no tronco até o dia seguinte... O resto está aí, seu Antônio Bento disse o capataz arrematando a informação.

– Agora, antes que a madrugada rompa, você deve voltar para a fazenda. Eu pernoitarei aqui e amanhã cedo, depois da tirada de leite do curral de cima, dê uma pernada até aqui. Talvez eu precise de você.

– Sim, patrão. Amanhã, logo cedinho, estarei aqui. Juliano despediu-se em seguida e retirou-se. Antônio Bento encaminhou-se para o quarto.

Efigênia não conseguira conciliar o sono durante toda a noite. As violentas emoções que sofrera desde a véspera chocaram-na profundamente. Ficara confusa diante de ocorrências tão contrastantes. De um lado, a indiferença, a frieza ou timidez de Paulinho de quem esperava tudo e, de outro, a paixão de Antônio Bento manifestada de modo tão súbito e imprevisível.

O seu espírito buscava encontrar a lógica dos fatos: desculpar Paulinho – cuja imaturidade não lhe permitira declarar-se, e justificar o comportamento de Antônio Bento – apossando-se dela como escrava.

Era um conflito entre forças sentimentais antagônicas que se debatiam num tremendo diálogo, provocando reações diversas, por vezes desconexas, mas de um chocante realismo.

A sua memória, como se fora um filme, fazia volver o passado cheio de recordações. Paulinho repontava a cada momento. Conhecera-o desde os primeiros passos e foi o primeiro colo de pessoa branca que a acalentara com ternura... Habituara-se a tê-lo sempre presente desde pequenina... depois, quando o pai morreu abatido no tronco e, juntamente com sua mãe mudou-se para a casa-grande, ele foi o pequeno mestre devotado que a ensinou a ler e a escrever... Fez-se sempre aprazível, cuidando de enfeitiçá-lo, de prendê-lo, e não raro o provocara procurando despertar nele a sensibilidade do adolescente... depois, ele foi para o seminário...foram longos anos de tédio ocultamente amargurados no casarão imenso ao lado de sua mãe e do coronel... como fora longa a ausência de Paulinho... quantas noites fora despertada por estranhos pesadelos em que se sentia violentamente abraçada por ele... depois, ele voltou. Foram seis longos meses de constante dedicação... Eram apenas: ele, ela e o coronel na casa-grande... O tempo era aplicado em aulas intensivas, que Paulinho lhe dava na sala de visitas, onde havia mais silêncio, mas nem por isso ele se aproveitava para manifestar qualquer sentimento mais profundo... por vezes insinuava-se, mas logo em seguida, aparece que temia pecar... retomava os ares de professor e continuava dando a lição com tanta austeridade que parecia um estranho... era ela, que depois do jantar, na varanda, enquanto o coronel terminava as contas do escritório, que se aproximava dele para provocá-lo... era ela, sempre ela, que puxava conversa preocupada em decifrar os seus sentimentos impenetráveis, no entanto, ela sabia que a sua ausência despertava nele desassossego, cuidados e até, possivelmente, ciúmes... quantas vezes não os provocara conscientemente indo até à senzala conversar como o moleque Antogenes... quantas vezes, só para irritá-lo, não suspendera a aula dizendo que ia à cachoeira tomar banho só para vê-lo impacientar-se... Mas, por que tudo isso se não gostasse dela?... e, por que não lhe disse algo ao se despedir na cozinha?... teria sido a presença de mãe Benedita ou ainda a timidez? Ah! A eterna timidez que herdara do coronel, e que por vezes tanto a importunava...

Efigênia pensava. Constrangida pelos estranhos acontecimentos, necessitava definir-se diante da vida que lhe oferecia novas perspectivas.

Tinha sido raptada e se comprometera a concordar com tudo que adviesse desde que sua mãe fosse salva. Ela estava ali ao seu lado dormindo tranquilamente, refeita do castigo, e com as esquimoses e contusões em via de convalescimento... não poderia furtar-se a aceitar as imposições do seu novo senhor... quando muito poderia retardar... mas, escapar, fugir, era impossível. Antônio Bento poderia ser muito bom, mas desejava-a bastante para forçá-la a aquiescer aos seus caprichos... ele a desejava como homem, não por mera curiosidade, mas porque se apaixonara...queria-a e não permitiria que voltasse para a fazenda do Tronco. Agora não seria possível fugir... teria que aceitar Antônio Bento ainda que isso constituísse um tremendo sacrifício... uma renúncia ao passado, ao amor que dedicava a Paulinho, o maior estímulo da sua vida...

Um ruído no quarto contíguo fê-la voltar à realidade.

Levantou-se e, com ansiedade certificou-se de que a porta estava fechada. Voltou para a cama, mas não conseguiu reconciliar o sono. Vestiu-se. Foi à cozinha e preparou café. Embora tivesse vontade de conversar com Antônio Bento, fingiu não ter percebido a sua presença.

Achava que a sua indiferença fosse mais útil à defesa de sua dignidade.

Temia o homem. Mas, não só temia, como se apavorava diante do pecado de tê-lo como amante...

Era esse o seu grande receio. Fora educada na religião católica e a noção de pecado se aprofundara de tal maneira em seu espírito, que temia todas as purgas do inferno... Se acaso isso acontecesse, seria apenas por sua condição de escrava...

Procurando anunciar-se com discrição, Antônio Bento abriu as janelas da copa, fazendo ruído e, em seguida, assoviou chamando o seu cavalo, que se distanciara no pasto fronteiriço à casa. Efigênia não fez caso. Esperou que ele entrasse na cozinha.

– Bom dia, seu Antônio Bento.

– Como passaram a noite? Mãe Benedita está mais calma?

– Graças a Deus, mamãe está melhor e dormiu bem a noite. Coitada, estava tão machucada, que mal podia se virar na cama.

– São uns miseráveis esses capatazes. Não sei como é possível haver gente tão má. Essa dona Sinhá é uma desalmada!

– Como sofrem os escravos do Tronco, na mão daquela mulher!

– Agora, Efigênia, a sua vida pode se transformar completamente.

– Muito obrigada, o senhor está sendo muito bom para a minha mãe.

– Não me chame de senhor, eu lhe peço. Trata-me de você. Eu gosto mais...

Efigênia sentiu-se meio contrafeita. Fora essa a última vontade manifestada por Paulinho na véspera, antes de partir. Fora a única demonstração de intimidade que dera em um longo diálogo a sós em seu quarto, quando poderia lhe ter dito tudo que quisesse e, inclusive, estreitá-la em seus braços...

– Sim – disse ela após uma longa pausa – eu tentarei chamá-lo pelo nome...

– Sim querida, eu agradeço. Está mais contente tendo a sua mãe ao seu lado?...

– Muito... nem sei como agradecer-lhe por tudo que está fazendo.

– Não fiz nada de mais... Apenas cumpri o prometido...

– Por isso mesmo é que me sinto grata ao senhor.

– Por favor – disse ele – cabe a você cumprir o que prometeu...

– Eu sei, mas ainda não tenho jeito, deixa para mais tarde, seu Antônio Bento...

– Ora, ora, sua tolinha, que custa me chamar de você... Não é muito, meu bem...

Antônio Bento levantou-se e, acercando-se, tentou beijá-la.

Sem ser áspera ou ríspida, negou-lhe a face, dizendo-lhe com polidez:

– É cedo ainda... cedo demais, seu Antônio Bento.

– Bem – concordou ele – talvez você goste de outro.

– Não, seu Antônio Bento. Nunca namorei na fazenda do Tronco. Sempre vivi pegada à saia de minha mãe, e ela nunca me deixou ir a nenhum mutirão ou pagode... sempre fiquei ao pé do fogo...

– É, foi sempre o que desconfiei.

– Do quê, seu Antônio Bento?

– Que você fosse muito vigiada por sua mãe e, quando eu vi que você vinha frequentemente ver a galinha da dona Sinhá, fiquei na espreita até poder pegar você. Achei que só assim daria certo... Efigênia, quero ser o único homem em sua vida. Por você farei tudo para vê-la feliz. De nenhum modo quero tê-la como escrava, e muito menos a forçaria nessa condição a submeter-se aos meus caprichos.

– Muito grata eu lhe fico por essas palavras. Assim eu me sinto mais confiante no meu destino...

– Eu, sei como você se sente. Mas não tenha medo que eu saberei cumprir a minha palavra de cavalheiro...

– O senhor não tem filhos?

– Não, Efigênia. A milha mulher parece doente, e embora tivesse consultado os melhores médicos, nenhum deles conseguiu capacitá-la à maternidade.

A tosse de mãe Benedita, no quarto, interrompeu o diálogo.

Efigênia levantou-se depressa e Antônio Bento, instintivamente, a seguiu.

Ambos entraram no aposento de mãe Benedita.

– Mia fia, me acude aqui, estou com as carne toda moída e tô sentindo uma dô na perna que num aguento ...

– Não faça muito esforço, mãe Benedita – adiantou Antônio Bento, aproximando-se de seu leito.

– Onde lhe dói, mãe?

– Aqui, mia fia, bem no osso da perna e risponde aqui nas costa... Foi de tanto apanhá de açoite, mia fia...

– Deixa ver – disse Antônio Bento.

– Ocemecê já taí, seu Antônio? Pro mode que já tão cedo tá perseguindo a negrinha? Tenha dó da gente, seu Antônio...

– Não estou perseguindo, mãe Benedita. Dormi aqui para cuidar da senhora e de Efigênia. Mas, não estou querendo forçar ninguém. Espero que a senhora sinta que o meu tratamento é diferente. Seremos amigos, Mãe Benedita. Agora deixa ver a sua perna... Talvez necessite de um médico e quanto mais cedo melhor...

– Talvez seu Antônio Bento tenha razão, mãe...

Benedita silenciou. Com o auxílio de sua filha limitou-se a puxar o cobertor que a envolvia, deixando à mostra, suas pernas feridas.

Antônio Bento, por sua vez, deteve-se olhando-as e, depois, dirigindo-se à pobre escrava, disse-lhe com muito afeto, procurando cativá-la, bem como à filha:

– É bom não facilitar, minha mãezinha... Mandarei chamar o médico logo que chegar o Juliano.

– Ocemecê acha que é anssim tão perigoso o causo, seu Antônio?

– Não, mãe Benedita! Mas é melhor curar do que remediar.

– Eu num queria incomodá ocemecê...

– Não é incômodo algum, ao contrário, cumpro com o meu dever – respondeu Antônio Bento, afetuosamente.

– Nem sei como vô agradecê tanta bondade...

– Logo você estará boa. Procure descansar.

Benedita voltou-se para sua filha e recomendou-lhe:

– Mia fia, dá um pouco de café... Tô com a boca seca, minha negrinha.

Efigênia foi à cozinha providenciar um cafezinho bem quente para sua mãe.

Antônio Bento sentou-se à cabeceira e começou a alisar-lhe os cabelos afagando-lhe o rosto.

– Num me abrandece o espírito, seu Antônio Bento. Ocemecê tá querendo é me comprá cum seus modo pramode agradá a fía e cativá a negra velha...

– Não, mãe Benedita... Estou apenas me lembrando de quando era criança. Minha mucamba era uma preta que me tratava com carinho de mãe e eu gostava de dar cafuné na cabeça dela até vê-la dormir... Não tenho nenhum pensamento mau. O que fiz está feito. Se não der certo ficará por isso mesmo e a senhora pode ficar descansada.

Efigênia voltou com uma bandeja com xícaras e o bule de café.

– Pronto, mãe, aqui está o seu café. Toma um pouco também, seu Antônio Bento?

– Aceito.

– Mia fia, já disse ao seu Antônio pra mode não andá perseguindo ocê...

– Já ouvi, mãe. Estou certa de que seu Antônio Bento saberá cumprir a sua palavra. No momento é tratar da senhora.

– É, mia fia, passa uma mão de arnica na perna pra mode aliviá a dô...

– Deixa mãe que eu faço uma massagem, talvez alivie bem...

– Efigênia, minha negrinha, cadê a arnica?

– Toma, seu Antônio Bento – disse ela passando o vidro.

– Bem, mãe Benedita, ponha a perna estendida sobre o travesseiro e deixa que eu faça a massagem.

(Negra Efigênia, paixão do senhor branco, p. 193-209)

 

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