Metamorfose

No ano seguinte, já no primeiro dia de aula, levava na bolsa um poema de quatro versos que dizia assim:

Foi boa para os escravos,
E parecia um mel,
Acho que é irmã de Deus,
Viva a princesa Isabel.

De imediato, não tive coragem de mostrá-lo à professora.

Cada vez que tentava, ficava gelada e o coração já ia correndo bater na garganta.

Mas no segundo dia de aula, numa hora em que ela disse que a minha letra era bonita, arranquei da bolsa o poema e lhe entreguei.

Ela foi até a mesa e sentou-se com o meu papelzinho na mão. Leu e releu. Pegou a caneta, riscou qualquer coisa por sobre os meus versos e mandou o Pedro chamar o diretor.

Imediatamente me deu vontade de urinar e vomitar. Será que havia feito alguma coisa errada? E se houvesse feito, iria para os grãos de milho nos joelhos?

Chegou o diretor seguido do Pedro.

Dona Cacilda deu-lhe o papel. O diretor leu. Ficaram algum tempo conversando baixinho e apontando alguma coisa que eu havia escrito.

Depois ele saiu e a professora devolveu-me o poema e continuou a aula calmamente sem um gesto que me explicasse o bom ou ruim dos meus versos. Mas a qualquer barulhinho, ficava eu toda trêmula, ávida por um sinal, uma explicação por mais banal que fosse.

Assim fiquei até o final da aula, mas quando a minha fila saía e passava pela porta da diretoria, o diretor saiu, procurou-me com os olhos e disse:

– Parabéns!

– Não foi nada. Obrigada.

Fui para casa feliz. Sabiás empoleirados na cabeça da alma.

 * * * 

Devia ser dia 10 ou 11 do mês de maio.

A dona Cacilda, logo após o recreio, disse-nos:

– No dia 13 agora, vamos fazer uma festinha pra Princesa Isabel, que libertou os escravos. Quem quer recitar?

Várias crianças gritaram:

– Eu! Eu! Eu!

Pluft, pluft!... Meu coração lá foi de novo pulsar na garganta. Era a hora e a vez de expor meu poema. Não podia perder a chance. Mas como conseguir coragem? E se errasse?

– Assim não dá – gritou a professora. – Levantem a mão.

Levantei a minha, que timidamente luzia negritude em meio a cinco ou seis mãozinhas alvas, assanhadas.

– Você... Você... Você...

Não fui escolhida. Tantos não é possível, explicou-nos ela. Mas eu não podia perder a oportunidade. Corri atrás dela, sôfrega:

– Dona Cacilda, eu tenho aquela que eu fiz outro dia, que eu mostrei pra senhora e a senhora chamou o diretor e ele falou parabéns e eu deixo ela mais grande...

Falei tudo sem respirar. Sem piscar. Medo de não convencer, de apertar os olhos e as lágrimas escaparem do controle da emoção. Saturei.

– Está bem. Amanhã você traz a poesia e a gente ensaia.

Acariciou meu rosto e riu chochamente.

Sua mão parecia pena de galinha e seus lábios no riso tinham muito a ver com as casquinhas de tomate caipira que minha mãe colocava no tempero do arroz.

Fui para casa meio angustiada. Já estava quase arrependida de haver insistido. O aumentar e decorar o poema não era nada. Difícil era não tremer, não chorar, não esquecer na hora.

Pensei em não ir às aulas por uns dias, inventar uma dor de barriga... Mas não podia falhar com a Princesa Isabel. Ela merecia. Se não fosse ela...

Que pecado seria maior: mentir que estava doente ou não homenagear a Santa Princesa Isabel?

Optei por ir e não ficar em pecado.

Antes tremer, chorar, do que ser castigada por Deus. Por Deus ou por Santa Isabel?

Pelos dois, claro.

Ela teria que pedir o consentimento Dele para me punir, já que Ele é o Pai, o Chefe, dono de todas as decisões.

Haveria na certa uma reunião no céu entre santos e santas, anjos e anjas... Não. Anjos e anjas não. Crianças não opinam, não decidem nada. Nem votam. Ah! Mas se eles pudessem...

Se pudessem, seria fácil. Eu mesma conhecia vários anjinhos: A Tilica 1, que morreu de lombriga aguada; a Luzia 2, que morreu de bucho virado; o Jorge 3, que morreu de cair no poço...

É. E tinha mais ainda e, por sorte, todos da minha cor. Seriam votos a meu favor, certamente. Fora a Ana, que era branca, o João Cláudio... acho que até eles...

Mas não adiantava ficar pensando. Criança só ouve, quando pode. O fato é que, no céu, todo mundo ficaria sabendo. Uma vergonha imensa invadiu-me toda, como o dia em que fui pega tentando descobrir a passagem do ovo do galo para a barriga da galinha. Credo-em-cruz!

Não havia mesmo outro jeito. O negócio era assumir logo de uma vez, tentar fazer tudo bonito e direito.

Comi rapidamente no almoço. Engoli quase inteiros os alimentos. Engasguei com as espinhas de mandiúva. Pus-me a escrever afoitadamente. Aumentei. Criei quatro novos versos:

Os homens era teimosos
E o donos deles era bravo,
Por isso a linda Isabel
Soltou tudo os escravo.

Reli os versos antigos, e achei que deveriam ficar por último, para encerrar a declamação com o Viva a Princesa Isabel.

Ao meu poema dei um título: Santa Isabel. Assim ficou:

Santa Isabel

Os homes era teimosos,
E os donos deles era bravo,
Por isso a linda Isabel
Soltou tudo os escravo.

Foi boa que nem um doce,
E parecia um mel,
Acho que é irmã de Deus,
Viva a Princesa Isabel.

Dentro de meia hora, havia decorado tudo.

Daí comecei a declamar pausadamente. Às vezes, começava do fim e voltava para o começo. Tudo certinho: nem um pulo nas frases, nem um gaguejar, nada.

No dia seguinte, coloquei meus escritos sobre a mesa para a apreciação da professora. Ela os pegou, leu, fez as correções ortográficas, como, por exemplo, colocando ns no final da palavra homens, concordou os adjetivos, etc.

E me devolveu:

– Decora, que amanhã você recita, certo?

Não contei que tudo estava na ponta da língua.

A festa seria depois do recreio, na manhã seguinte.

Já no momento em que entramos na classe, ela se pôs a falar sobre a data:

– Hoje, comemoramos a libertação dos escravos. Escravos eram negros que vinham da África. Aqui eram forçados a trabalhar e, pelos serviços prestados, nada
recebiam. Eram amarrados nos troncos e espancados, às vezes, até a morte. Quando...

E foi ela discursando, por uns quinze minutos.

Vi que a narrativa da professora, não batia com a que nos fizera a Vó Rosária. Aqueles escravos da Vó Rosária eram bons, simples, humanos, religiosos.

Esses apresentados então eram bobos, covardes, imbecis. Não reagiam aos castigos, não se defendiam, ao menos.

Quando dei por mim, a classe inteira me olhava com pena ou sarcasmo. Eu era a única pessoa dali representando uma raça digna de compaixão, desprezo.

Quis sumir, evaporar, não pude.

Apenas pude levantar a mão suada e trêmula, pedir para ir ao banheiro. Sentada no vaso, estiquei o dedo indicador e no ar escrevi: lazarento. Era pouco. Acrescentei: morfético. Acentuei o e do f e voltei para a classe.

No recreio, a Sueli veio presentear-me com uma maçã e a Raquel, filha do administrador da fazenda, ofereceu-se para trocar o meu lanche de abobrinha abafada pelo dela, de presunto e mussarela.

Não os comi, é claro. A compensação desvalia. Não era como o leite que, derramado, passa-se um pano sobre e pronto.

Era sangue. Quem poderia devolvê-lo... Vida?

Que se enxugasse o fino rio a correr mansamente. Mas como estancá-lo lá dentro, onde a ferida aberta era um silêncio todo meu, dor sem parceria?

 

* * *

 Na hora da festa, estava um trapo.

No entanto, não me preocupavam mais os erros ou acertos, sucessos ou insucessos. Era a vergonha que me abatia. Pensava que era a grande da classe, só por ser a única a fazer versos. Quantas vezes deviam ter rido de mim, depois das minhas tontices em inventar cantigas de roda... Vinha mesmo era de uma raça medrosa, sem histórias de heroísmo. Morriam feito cães. Justo era mesmo homenagear Caxias, Tiradentes e todos os Dons Pedros da história. Lógico. Eles lutavam, defendiam-se e a seu país. Os idiotas dos negros, nada.

Por isso que o meu pai tinha medo do seu Godoy, o administrador, e minha mãe nos ensinava a não brigar com o Flávio. Negro era tudo bosta mesmo. Até meu pai, minha mãe.

Por isso é que eu tinha medo. O filho puxa o pai, que puxa o avô, que puxou o pai dele, que puxou. ... eu, consequentemente, ali, idiota, fazendo parte da linha.

Caí em mim com a professora falando:

– Esqueceu? Não faz mal. Na outra festa, você recita. Logo chega o dia de Anchieta, do Soldado... Vamos sentar. Não tem importância.

Levou-me com cuidado e me fez sentar numa cadeira ao lado dos outros professores, na frente. Eu sentia muito sono e sede. Estranhei o fato do meu coração estar quieto, sem saltar para a garganta.

Apalpei o pescoço de todas as maneiras. Já ia verificar se estava no peito, mas desisti. Será que ele morreu?

“Pro inferno. Se quiser morrer, que morra”, pensei, olhando a sujeira do nariz que saiu preguiçosa e caiu sobre as pregas estreitas da sainha azul novinha, novinha.

Naquele dia ninguém correu na volta para casa.

Iam todos a minha volta, preocupados porque eu não conseguia andar depressa. Sentia-me sem peso e quando mudava o passo, achava que o chão à frente estava em desnível, longe, mole.

Quando cheguei em casa minha mãe falou:

– Seu almoço está em cima do fogão. Depois você leva o prato lá na vasca, que eu já estou indo lavar os trens.

Desvencilhei-me do material escolar e peguei o prato de comida.

Já ia saindo para jogar tudo para as galinhas do terreiro, quando pensei que, se eu levasse o prato logo, minha mãe ia desconfiar, porque não se almoça em tão pouco tempo. Resolvi aguardar. Destampei a vasilha e comecei a remexer a comida. Separei os grãos de feijão preto com o cabo da colher, joguei-os no meio das labaredas que mantinham aceso o fogo do fogão. Depois atirei a comida no quintal e fui levar o prato como minha mãe havia recomendado.

Até então, as mulheres da zona rural não conheciam “as mil e uma utilidades do bombril” e, para fazerem brilhar os alumínios, elas trituravam tijolos e com o pó faziam a limpeza dos utensílios.

A idéia me surgiu quando minha mãe pegou o preparado e com ele se pôs a tirar da panela o carvão grudado no fundo.

Assim que ela terminou a arrumação, voltou para casa. Eu juntei o pó restante e, com ele, esfreguei a barriga da perna. Esfreguei, esfreguei, e vi que, diante de tanta dor, era impossível tirar todo o negro da pele.

Daí, então, passei o dedo sobre o sangue vermelho, grosso, quente, e com ele comecei a escrever pornografias no muro do tanque d’água.

Quando cheguei em casa, minha mãe, ao me ver toda esfolada, deixou os afazeres, foi para o fundo do quintal, apanhou um punhado de rubi e com a erva preparou um unguento para as minhas feridas.

Enquanto umedecia um paninho no preparado e colocava na minha perna, dizia:

– Deus me livre! Eu canso de falar: não sobe nos muros, não brinca de correr e que nada. Entra por um ouvido e sai para o outro. Parece moleque. Mentira: nem moleque faz isto. Vê se o Zezinho...

Eu ouvia sua voz distante, brava-doce. Bálsamo.

Dentro de uma semana, na perna só uns riscos denunciavam a violência contra mim, de mim para mim mesma. Só ficaram as chagas da alma esperando.

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(Leite do Peito, 3. ed., p. 55-66)