Seu Marabô

– Mas você não vê como ele flutua? É incrível. É fasci­nante. É encantador!

– Não, não vejo nada. Só sinto que ele roda, gira, gira, e não tenho controle.

– Ah, é uma pena que você não veja. Ele é diferente, anda de lado, dançando. E gira de lado também, torto. E tira o chapéu, cumprimenta as pessoas e sorri de lado.

– E vocês não têm medo?

– Medo? Nada, de que jeito? Ele é duro, não alivia, põe a batata quente na mão da gente e você que se vire, que resol­va seus pobrema. Mas é humorado, engraçado, filosófico. Usa metáforas que todo mundo entende. Outro dia recomendou a uma moça que derretesse em um tacho de estanho o orgu­lho que lhe obstruía o peito, os olhos e a respiração. À outra falou um negócio sobre a cavalaria que ela trazia dentro do peito. Disse que cavalo cansado não ganha guerra. Precisa parar, descansar, beber água e dormir.

Disse que se o cavalo está cansado, na hora em que o cavaleiro mais precisa dele, o bicho resfolega e não responde. "Já pensou que vexame, per­der a guerra porque o cavalo tá cansado?" A mim, disse que eu era dele, que carregava o povo dele. Por isso, não deveria passar no meio de encruzilhada, sempre nas laterais, pois, "pra entrar na casa dos outros não tem que pedir licença?" Então. Era assim também para passar pela casa do povo da rua. Olha lá, olha lá! Lá vem ele.

(Cada Tridente em seu lugar, p. 21).

 

 

Construção

Primeiro era chão batido e ele não sabia como era feito. Sua lembrança da casa em obras começava do vermelhão, uma massa de vermelho intenso, à base de anilina, aplicada ao chão da cozinha. Crosta fina de cimento, areia, água e cor. O pai executava o serviço, a manutenção que cabia às crianças era feita com cera vermelha. Mãos e joelhos só não ficavam igualmente coloridos, porque eram pretos. Adquiriam uma cor cinzenta, como couro velho, curtido e sujo. Mas as unhas envermelhavam, as cutículas roseavam, e que trabalhão para limpar. Logo sábado, dia de baile. As irmãs odiavam a massa colorida e ao pai, por extensão.

Nesse mesmo estágio da obra, que se estenderia por toda a vida, aplicava-se o amarelão em dois outros cômodos, a sala e o quarto. De novo, cimento, areia, água e cor, dessa vez amarela. Dois apenas, ainda bem. Única vantagem da casa pequena. O mesmo ritual da pasta vermelha repetia-se com a pasta amarela na construção do piso. A manutenção novamente cabia às crianças, feita com a cera amarela, pior para limpar dos dedos, pois impregnava a pele e os cantos das unhas. Não raro, as irmãs, sem tempo hábil para cuidar delas, deparavam com um cantinho de cera à noite, em horas impróprias.

Houve um dia que elas estavam de risinhos na privada e ele colou o ouvido na porta para também participar do segredo. A alegria terminou quando o acontecido chegou à parte da cera, nessa hora a irmã­narradora embraveceu. Parece que o namorado foi fazer alguma coisa, que ele não entendeu muito bem, com o dedo dela e, enquanto fazia, reclamou de um gosto esquisito. Era a cera amarela. Danada, escapou da faxina feita nas mãos. A irmã virou uma arara.

Quando a situação familiar melhorou, trocaram o vermelhão da cozinha por uma cerâmica vermelha, espécie de taco mais largo, talvez menos comprido, só que não era de madeira, era a diferença. Ele nunca entendeu porque o chão da cozinha da própria casa e das outras casas da vila era vermelho. Parecia regra a cumprir, ou moda a seguir, dava no mesmo.

No último estágio trocaram a cerâmica por azulejos de estampas horrorosas, as mais baratinhas, mas não havia dúvida de que aquele era o melhor material para limpar. Água, sabão e esfregação resolviam.

Na sala e no quarto o pai assentou tacos de madeira, substituindo o amarelão. A atividade lhe dava especial prazer. Contava orgulhoso que aos nove anos, quando primeiro assinaram sua carteira de trabalho, fora como assentador de tacos, na firma do Seu Pacífico. Por aí o filho constatava a modernidade de certos conceitos, trabalho infantil, por exemplo, na época do pai não existia. No começo ele se lembrava quanto o pai ganhava por semana, mas com o passar dos anos e a mudança frequente do nome da moeda, passou a se confundir, depois esqueceu. E agora o pai nem está mais vivo para ele perguntar.

Assentados os tacos, iniciava-se outra tarefa inglória para as crianças: passar palha de aço no chão para amansá-los. Passar é eufemismo, a situação exigia esfrega com todas as forças dos músculos e atenção dos olhos para raspar uniformemente. O pai ensinou como devia ser realizado o trabalho, dos cantos para o meio, assim o malfeito pela preguiça não teria vez. Não entenderam? A lógica era de que no começo, mais descansadas, as crianças deveriam se dedicar à parte mais escondida, as laterais, ocupadas pelos móveis. A mais visível, o centro dos cômodos, ficaria para o final, porque, mesmo picadas pela mosca da preguiça, a visibilidade do espaço as obrigaria a fazer o serviço bem-feito.

Mas surge algo inusitado e as irmãs e ele até sentem saudade do amarelão. É que o amansamento dos tacos com a palha de aço produzia uma poeira infernal, um poeirão como a batizaram. Aquilo os fazia tossir, produzia coriza e engrossava as mãos. Dinheiro pra creme hidratante não se via naquela casa e mesmo pra passar óleo de cozinha ou banha de porco nas mãos era escondido da mãe. Podia desinterar no final do mês.

Mas o pior ainda estava por vir, eram os efeitos do poeirão no cabelo das irmãs, alisado por chapinha. Chapinha é coisa de hoje, a memória é reavivada pela imagem macabra do ferro quente. A mãe passava no cabelo delas uma coisa chamada "unto", mistura de tutano de boi com banha de porco, malcheiroso que só. Separava as mechas e untava com aquilo. Esquentava o pente de ferro no bocal do fogão, pegava pelo cabo de madeira e depois alisava as mechas untadas. Aquilo fazia chiiiiiiii, como pastel frito na gordura quente. Às vezes ao chiiii: se sobrepunha um grito, queimadura acidental, mau humor subsequente, pois, dependendo da gravidade da marca deixada pelo ferro de alisar, havia cancelamento automático do baile daquele sábado. Cabelo alisado por ferro quente não pode ser lavado, você sabe, e a mistura do unto e do poeirão na cabeça das meninas, além do petetê que fazia, era bomba de ressentimento e humilhação carregada no corpo.

Do chão para as paredes, mais uma etapa da construção. O reboco cascudo feito pelo pai denotava falta de tempo para passar a desempenadeira. As paredes nunca eram lisinhas como nas casas mais aquinhoadas. Mas no ato de pintá-las, as crianças eram premiadas, podiam escolher a cor do quarto no vastíssimo leque de três opções: verde-pálido, azul-esquisito e rosa. Tudo bem clarinho, porque uma caixinha de pó era diluída em um tanque de água e se passava uma única mão de tinta na parede. Contudo, era divertido, podiam apenas admirar um adulto trabalhando, sem qualquer obrigação infantil.

Das paredes para a laje, um salto nas alturas e na qualidade da participação das crianças. Dia de bater laje era dia de festa. Começava no dia anterior, quando a mãe ia ao supermercado comprar as carnes para a feijoada e deixava tudo imerso em tempero, pra pegar gosto. Catávamos quilos e quilos de feijão e arroz, descascávamos alho, picávamos cebola, cebolinha e salsa dentro das bacias feitas de lata de goiabada. Mentira, as irmãs é que faziam esse trabalho, tarefa de mulher pequena. Nós, os meninos, só rondávamos o trabalho delas.

A gente nem conhecia a palavra reciclagem, mas era isso o que o pai fazia. Ele desmanchava a costura das latinhas de goiabada – não era cascão, era marca inferior, rala e cheia de açúcar, cascão só no natal, abria elas em cima de uma pedra de mármore, batia, batia, com martelo e machucador de alho, transformava numa placa lisa, depois emendava com solda e estava pronta mais uma bacia para usar na cozinha. Secava ao sol e depois ficava um dia de molho na água com vinagre, para tirar o gosto de solda.

No dia anterior ao enchimento da laje, o pai providenciava a cerveja e uns refrigerantes no supermercado, tudo marca de fundo de quintal, para fazer economia. No raciocínio dele a criançada queria mesmo era o bigode de espuma do refrigerante e o tchiiii do gás. Estava certo no diagnóstico, mas errado na receita, porque os refrigerantes baratinhos praticamente não tinham gás, nem faziam espuma. Por fim, ele buscava cachaça encomendada no seu Zé Ataulfo, representante extraoficial de um "grande alambique", que ninguém nunca soube o nome. A localização da fábrica todo mundo sabia, a cachaça vinha do alambique da chácara do genro dele, a poucos quilômetros dali. Mas não tinha reclamação porque o produto era barato e ainda não tinha mandado ninguém para o hospital.

O pai levava aquelas compras no carrinho do supermercado, todo orgulhoso e eu, menino, fascinado pelo pai provedor, acompanhava as compras e o transporte. Depois de despejá-las em casa para a mãe ajeitar na geladeira e do pai dizer bem alto o preço de cada coisa, eu devolvia o carrinho vazio.

O dia de bater a laje, propriamente, começava de madrugada. A homarada ia chegando, alguns acompanhados das esposas, talvez uma ou outra noiva, namorada, doida para mostrar serviço e ser acolhida no clã. A filharada também vinha e os pequenos podiam brincar. Aos adolescentes, garotos e garotas, eram destinadas algumas tarefas, atribuídas a cada sexo. Basicamente, mulheres de todas as idades na cozinha e homens e homenzinhos nas várias tarefas de preparação da laje: carregar areia, brita, cimento e água para a massa; prepará-la; encher as vasilhas, carrinhos de mão, latas de vinte litros ou latinhas de cinco, de acordo com o vigor físico ou a necessidade de exibicionismo do cabra. Transportá-los em andaimes de madeira inseguros, mas ninguém caía. Transportar também as vigas de ferro, cimento, os tijolos, tudo aos gritos, que o grito era demonstração exigida de força e macheza. E dá-lhe piadinha com a virilidade alheia, questionada nas mínimas atitudes do sujeito: na careta para erguer peso, nos queixumes sobre a dureza do trabalho, nas paradas para descansar fora dos momentos coletivos de descanso, até no deslocamento da área de serviço dos homens até a cozinha, terreno sagrado do mulherio, ou nas reiteradas escapadelas ao sanitário. Em qualquer dessas situações, o ser do sexo masculino era logo colocado no rol dos de "sexo duvidoso".

Homem que era macho tinha de rir das piadas machistas, contar vantagens de conquistador, com um certo cuidado para localizar as puladelas de cerca atuais no passado, na vida de solteiro, de garanhão bem-sucedido, afinal, da cozinha, as patroas a tudo prestavam atenção. E se descuido houvesse nas narrativas de Indiana Jones do amor, podiam receber uma descompostura na frente dos amigos – humilhação terrível – e, no caso das patroas mais drásticas, podia haver greve de sexo em casa, castigo desesperador.

Bater laje era mesmo um ritual de iniciação masculina, ali as mulheres eram coadjuvantes, mas se vingavam no território da cozinha, onde também falavam de sexo. Diferentemente dos homens que contam vantagem sobre as mulheres da rua e santificam a patroa, a mulherada conta vantagens sobre seus homens. Falavam de metragens, práticas e técnicas, presentes na relação com o marido, sempre com o cuidado de colocar as virgens ou pretensamente virgens pra correr, porque aquilo era assunto de mulher casada.

A mulheradinha se fingia de besta, mas observava certos silêncios. Sabe lá se quando solteiro, o marido daquela prima não teria dado umas voltinhas com a irmã daquele cunhado e agora todo mundo junto naquela cozinha, não estaria falando de assuntos bem familiares. Oxalá fosse mesmo na vida de solteiro, mas que tinha coisa que cheirava a angu fresquinho (com caroço), isso tinha.

Tudo muito divertido e de grande aprendizado. Bater laje era uma escola, na qual se aprendia de tudo. A laje bem batida, depois do alicerce bem-feito, era condição essencial para os andares futuros que subiriam aos céus. Crescimento vertical da propriedade privada, multiplicação de tijolos e tetos do patrimônio familiar. O pai dizia que até joão-de-barro faz casa de dois andares, é passarinho humilde e com ele a gente deve aprender.

(Negrafias: literatura e identidade, p.32-36).

 

 

Melô da contradição

O menino negro estava muito triste e contava ao outro que apresentou seguidos atestados médicos à empresa para ser demitido. Assim, pretendia pagar a dívida do primeiro semestre na faculdade e trancar a matrícula, para retomar Deus sabe quando.

Mas isso é problema de todo jovem pobre que estuda em faculdade particular, não precisa ser negro para passar por isso. Tá certo, mas ocorre que ele trabalha como repositor de mercadorias em uma monumental rede de drogarias da cidade e sente-se humilhado porque a regra é que os repositores ascendam ao posto de vendedor (se forem bons funcionários e ele o era) num período máximo de oito meses. Ele já completou quinze e todos os colegas (brancos) que en­traram junto com ele já são vendedores.

Ingênuo, como todo garoto sonhador de 23 anos, ele pensou que seria promovido (recompensado) pela aprovação no vestibular de uma boa universidade e por fazer um curso ligado à sua área profissional. Que nada, o gerente foi insen­sível e ainda disse que logo, logo, ele desistiria dessa idéia de curso superior, "coisa de burguês".

Ele chorou e deu socos no travesseiro pensando que o salário de vendedor, acrescido das comissões lhe permitiria pagar pelo menos cinco das sete mensalidades do semestre, e as duas restantes, a escola negociaria.

Fez outra investida, dessa vez para tentar diminuir o can­saço e os gastos com transporte. Pediu transferência para uma unidade da drogaria mais próxima da faculdade, onde nin­guém quer trabalhar, principalmente quem goza do status de trabalhar numa loja do centro. Recebeu outro não. Aí, não lhe restou outro caminho senão pirraçar o gerente para ser despedido. Não podia se demitir porque perderia o seguro desemprego e aí não teria mesmo como quitar a dívida que o atormentava.

Ainda bem que as baladas do final de semana se aproxi­mam e com elas o aconchego das moças brancas que o acham um neguinho bonitinho, gostosinho, de tirar o chapéu. E lhe dão a ilusão de ser menos negro e discriminado, por figurar como um pretinho básico do guarda-roupas.

(Cada Tridente em seu lugar, p. 59-60).

 

 

O cobrador de ônibus e o deus-vaca

"Esse aí tá com o reino do céu garantido", comenta o cobrador do ônibus, assim que o rapaz, cujas mãos acumulam a função de mãos e pés, termina sua cantoria e o pedido de apoio para exercitar sua arte. Olho a situação e penso que talvez se trate de mais uma vítima da poliomielite. O cobra­dor espia o céu, fixa-se em mim que estava a seu lado e co­menta: "Sujeito de sorte, ele, a senhora já pensou o que é arder no fogo do inferno por toda a eternidade?". Atordoa­da, respondo: "Não, não pensei". Na certa ele estava penali­zado com as limitações físicas do rapaz cantor e resolveu premiá-Io com a absolvição do inferno. Coitado, do cobrador.

"A senhora tem religião?", prossegue, antevendo não ser a minha a mesma dele. Afinal, aquele cabelo black power e um arco-íris na roupa. "Tenho", respondo, louca para saber onde a prosa desaguaria. "Acredita em Deus?", ele continua, desafiador. "Acredito!" Não o seu, penso. "Pois é, num vê aque­le povo da Índia? Eles num acredita em Deus e adora vaca. Adorar santo já é uma ofensa ao senhor Jesus e adorar vaca, eu nem sei dizer o que é. Por isso aconteceu aquela desgraceira toda. Aquela chuva que não parava e o mar se voltou contra eles em ondas gigantes. O pastor falou na igreja e deu no Jornal Nacional também".

Compreendi que ele falava sobre os tsunami que surpre­enderam o sudoeste da Ásia no início de 2005, e atribuía a catástrofe ambiental ao fato de os indianos considerarem a vaca um animal sagrado. Santa lobotomia, Batman. Perple­xa, não sabia o que fazer, mas tentei explicar que a vaca é sagrada para a cultura indiana, assim como outros animais o são em diferentes culturas. Argumentei que na Indonésia, país muito afetado pela catástrofe, predomina o islamismo, 80% do país é muçulmano e não há adoração à vaca. Procuro sensibilizá-lo para o tema do respeito a outras religiões e gasto meu latim em vão. De nada adianta ilustrar a conversa nar­rando a existência de um templo em homenagem a Buda, considerado uma das sete maravilhas do mundo. Constituído por cinco quilômetros de rochas vulcânicas, firmemente encaixadas umas nas outras. Demorou setenta e cinco anos para ficar pronto. Falo dele com um símbolo imponente da busca humana por algo maior. Transbordo meu caldeirão de diversidade, mas de nada adianta. O rapaz é irredutivel: "Deus-­vaca na terra de Alá. Onde já se viu?".

Olho para ele com o rabo do olho, calada e impotente. Coloco o fone de ouvido e enquanto procuro uma estação de rádio que me agrade, ouço uma notícia que me devolve o ânimo. A repórter diz que o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia condenou a Igreja Universal a pagar significativa inde­nização por usar imagem de mãe de santo para ofender o Candomblé. E o tema das religiões de matriz africana prosse­gue. Fala-se na reportagem também sobre a criação de um grupo de militares praticante dessas religiões dentro da corporação, com o objetivo de educar instituições e pessoas para o respeito às expressões religiosas de matriz africana. Olho para o cobrador e me convenço de que não vale a pena prosseguir na tentativa de demovê-lo do sectarismo. Mudo a estação de rádio, fecho os olhos e finjo dormir.

(Cada Tridente em seu lugar, p. 29-30).

 

 

Cada tridente em seu lugar

Dia desses recebi carta de um leitor colérico, cheia de reclamações porque em texto de minha lavra utilizei uma imagem do tridente de Netuno como recurso ficcional com­parativo. Em sua opinião eu deveria ter usado o tridente de Exu. Mal sabe o leitor que tudo o que se fala sobre Exu está sempre amarrado a uma ponta de mistério, ensina Carolina Cunha. Ele vive em um tempo mágico. Ele próprio é mágico, transforma-se no que quiser e se movimenta num constante vai-e-vém. Assim, naturalmente se tornou mensageiro. Para bem falar de Exu - não seria louca de falar mal - é preciso ser iniciada, saber segredos que, como tais, não devem ser revela­dos. Então, caro leitor, sinto-me mais à vontade para mexer com o tridente de Netuno (patrimônio cultural da humani­dade que a mim também pertence) e, mineiramente, deixo quieto o tridente de Exu. Arma por demais poderosa que funciona por eletromagnetismo. Sou maluca de colocar um negócio desses na minha cabeça?

A carta, entretanto, evocou-me outra lembrança. A do poeta que ao me encontrar no cinema com um grupo de alunos, perguntou-me se achava O homem que copiava, um filme adequado para jovens negros.

É lógico que sim, respondi. A seguir discorri sobre o que me parecia ser o cerne da indagação dele. Seria aquele um filme adequado para discutir com estudantes negros a tensão das relações raciais travadas no Brasil? Na trama, um jovem negro, operador de uma máquina de fotocópias se apaixona por uma garota branca, caixa em um supermercado. A histó­ria se passa no Rio Grande do Sul, local onde seria pouco provável que aquela relação afetiva não fosse notada como algo fora da norma. É fato, ainda, que o autor escorrega feio ao construir o personagem-pai da mocinha como reacioná­rio, explorador da filha e abusador sexual, mas que, suposta­mente, não é racista. Afinal é estranho que um homem branco, cujo caráter já foi descrito, não dê importância ao namoro de sua única filha com um negro pobre e sem futu­ro. Não combina. Entretanto, esta idiossincrasia mesma cons­titui um grande mote para discussão, pois é mais um dos milhões de exemplos da invisibilização dos conflitos raciais no Brasil.

Mas o filme tem um mérito inegável, talvez único na produção cinematográfica brasileira. O operador da máqui­na de fotocópias (o homem que copiava) não é um persona­gem negro, mas é representado por um talentoso ator negro, Lázaro Ramos. Como o homem que copiava não tinha uma marca racial, o "normal" seria que ele fosse representado por qualquer talentoso ator branco. Jorge Furtado, o diretor, sub­verteu o limitador pressuposto da dramaturgia nacional, de que atores e atrizes negros (quando conseguem algum espa­ço) devem representar personagens propriamente negros ou papéis subalternos, nos quais "cabe" um negro.

Então, seu poeta, o filme é adequado para discutir a invisibilidade dos conflitos raciais, sim senhor.

(Cada Tridente em seu lugar, 19-20).

 

 

Usos e abusos da toga de Joaquim

Começou a navegar pelas redes sociais, e naufragou logo, uma imagem ora austera, ora sorridente do Ministro Joaquim Barbosa, associada à própria “não-necessidade de cotas raciais” para ser um homem negro bem formado, bem-sucedido e alçado ao posto de super-herói.

A mim, causava espécie escutar a presença de várias pessoas negras repetindo acriticamente o bordão, numa confusa demonstração de orgulho. Ah, o quanto é destruidora essa profunda carência de ícones, que nos leva, muitas vezes, a ouvir ruídos e a confundi-los com música, boa música.

Joaquim Barbosa, Sueli Carneiro, Luiza Bairros, Hélio Santos, Ruth Guimarães, Leda Martins, Gilberto Gil, vivíssimos entre nós, não se valeram das cotas raciais para construir a carreira, mas, seguramente, não seriam exemplos isolados se contássemos com cotas raciais desde o momento em que cada um deles passou pela universidade.

Recentemente, a ministra Luiza Bairros, alicerçada em cálculos feitos por sua equipe, prospectou a entrada de 56 mil estudantes negros, anualmente, nas universidades públicas federais a partir da Lei de Cotas, sancionada pela Presidenta Dilma. Ora, ora, seremos mais de meio milhão de graduados negros em 10 anos.

Estamos a caminho de virar o jogo. Se nós não estamos atentos a isso, eles estão. É de lamentar que muitos de nós ainda nos enganemos com o canto de sereia lançado por eles, que, outra vez, tentam nos afundar na Kalunga Grande. Se deixarmos, se não separarmos a música dos grunhidos de desespero, lá no fundo do mar, vagaremos insepultos.

(Racismo no Brasil e afetos correlatos, p. 23).

 

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