Da admiração
Cidinha da Silva
Aprontei a mochila, me despedi da vó e fui para o treino de capoeira. Nunca joguei tanto como naquele dia, só na mandinga, lembrando do meu avô. "lêeee!" Nossa mestra encerrou a roda e começou a desarmar o Gunga, enquanto a turma assentava em círculo, enxugando o suor. "A roda de hoje", ela disse, "foi dedicada ao seu Francisco Ayrá, amigo do grupo, oficineiro nas horas vagas e avô da Bárbara. Já mandamos nosso recado com o canto, quem quiser mandar mais um Ngunzo para ele, usando a palavra, fique à vontade". "Eu quero", levantei a mão. "Pois fale, Bárbara, queremos ouvir."
"São tantas as coisas para falar sobre o meu avô, um sujeito especial, vocês sabem. Não estou me gabando por ser neta, não. Era um cara admirado por todos, muito sábio e justo. Engraçado, eu me lembrei agora dos meus sete anos, quando o vô foi chamado à escola porque dei uns tapas num garoto. O pirralho me chamou de macaca. Meu avô foi lá cobrar satisfações e mastigava doze zangões, daqueles de ferrão bem venenoso, mas ouvia a diretora, como se não fosse com ele. Ela disse que aquilo não podia ser, ele deveria observar bem, pois, além de bater, era menina batendo em menino, não era atitude adequada a uma mocinha. Ela punha a mão nas minhas tranças soltas de mocinha e depois passava na saia, para limpá-las de mim. Ele viu, ouviu, pediu desculpas, prometeu me corrigir e ao mesmo tempo reclamou porque "a neta estava sendo molestada na escola". "Não, seu Francisco, o senhor não entendeu, ela agrediu um menino," "Ela se defendeu, dona Eliane O tempo fechou para o lado da diretora, meu avô continuou. "Gostaria de saber se a senhora convocou os pais do garoto para uma conversa franca, como fez comigo, e eu lhe agradeço. Não está certo bater, mas ofensas e humilhações também estão erradas, e aqui é uma escola, não é dona Eliane? Precisa ensinar o certo, indistintamente." Eu adorava quando meu avô usava as palavras sonoras do repertório dele. "E for sorte deste garoto ter apanhado da minha neta, tão pequena e levezinha. Já pensou se um menino grande pega ele de jeito? Faria um estrago. Eu vou conversar com a Bárbara, agora, a senhora faça a gentileza de encaminhar junto aos pais, a correção do garoto. Passar bem, dona Eliane"
O vô estendeu a mão para ela e saímos da sala da diretora, eu, vingada e meu avô, sério, silencioso. Minha alegria durou pouco, ele se desconectou do pensamento para me encher de perguntas: estava chateado por ter sabido do ocorrido pelo chamado da diretora, eu devia ter contado a ele. E que negócio era aquele de sair batendo nos outros? Com quais avós eu tinha aprendido aquilo? "Ah... võ, ele me bateu primeiro!", eu disse, defensiva. Meu avô, coitado, crispou o rosto de dor quando ouviu isso, deve ter se lembrado do quanto tinha apanhado e visto bater daquele jeito ao longo da vida.
Ele me deu o pente da admiração, dias antes de morrer e eu quero compartilhá-lo com o grupo e com nossa mestra. A admiração é um jeito de respeitar o louvar o que é do outro, sem invejar, sem querer tomar para si. Meu avô nos ensinou a admirar o que está fora da gente e é bonito, sempre com respeito e uma distância reverente, sem falar em inveja boa, coisa inexistente. Inveja é o contrário da admiração. Ele morreu e a falta dele me entristece, muito. Choro de saudade, mas me alegro quando percebo todos os ensinamentos deixados por ele, toda delicadeza de ensinar jogando o jogo. E isso também aprendo aqui, todos os dias, dentro e fora da roda, por isso admiração a vocês. Cada um conte sua história ao recebê-lo. entrego o pente da
"lêeee! Gira a roda do mundo. Muito bem. Obrigada seu agora também somos seus netos, ganhamos um pente um avô-ancestral" Francisco,
(Os nove pentes d'África, p. 41-44)