SONHOS DE FEL
Era 25 de agosto em Nova Vicêncio, devia ser umas duas horas da madrugada e Gerôncio me violentava mais uma vez. Ai! Como eu sentia nojo daquelas mãos ásperas e famintas tocando minha pele. O seu cheiro me embriagava de tal forma que, às vezes, eu imaginava estar grávida, tamanhos enjoos sentia dia e noite. Mas nem sempre nós fomos assim. Em algum dia de nossas vidas, o encanto do amor e bem-querer viveu entre nossos braços.
A vida ao lado desse homem se ajeitou por acaso, no verão de 1917. Eu, filha de empregados na fazenda Mato Grosso; ele, carpinteiro com loja na Rua das Pedras, loja que também servia de moradia. Parecia aquele tal "amor à primeira vista": era uma chama que devorava o peito, coração galopando aceleradamente rumo à boca e uma sensação incontrolável de enroscar as pernas no seu corpo suado e com cheiro de madeira crua. As vistas marejavam na sua chegada e na saída; era como faltar o ar do terreiro em um único segundo. Os sonhos de todas as noites eram dedicados àquela paixão ardente; nada era tão vigoroso em mim.
Até que em um desses sábados em que meu pai trazia a feira pra casa, ele voltou acompanhado de Gerôncio. Quase morri ao vê-lo através da fresta da porta da cozinha. Māinha foi logo para a sala participar da conversa. Tensa, quase cortei o dedo da mão fatiando o bife ao mesmo tempo que esticava a orelha para captar o mínimo de som. Nada conseguia escutar, apenas a batida acelerada dentro do meu peito. Não demorou muito, mainha me chamou à sala que tinha apenas quatro cadeiras feitas de pinho e uma esteira de tabu no centro, na qual eu e mãinha catávamos grãos toda manhã e conversávamos nas tardes de domingo. Painho fixava um olhar carinhoso em mim, o olhar da entrega de um presente a alguém muito especial e de confiança. Seria eu um bom presente para aquele homem tão bom? Desejava isso internamente. E Gerôncio levantava para se ajoelhar a minha frente e pedir a "mão" pra casar. Sorridentes, meus pais esperavam o "sim", que explodia em minha face, e eu agradecia a bênção deles nessa união mais que festejada.
Casamos exatamente um ano após aquele dia. Foi o tempo de Gerêncio melhorar a carpintaria e, com o lucro dos trabalhos, construir nossa casa no terreno dos fundos. Tudo minimamente planejado para mim, conforme meus gostos. Ele me perguntava em um dia como eu queria; no outro, o móvel desejado já estava lá... pronto e belo. Assim, pedi a ele uma estante para uns livros que comecei a colecionar: histórias de amor, aventura, diários das filhas da patroa de mainha dos quais ela se desfizera e jogara no porão fétido. Eu estudava naquele porão, pois aprendi a ler vendo e ouvindo a princesinha da fazenda contando suas paixonites.
Quanto a Gerônimo, eu amava o homem que se apresentava a mim durante todo aquele tempo e ele me amava. Tem sentimento melhor? Por essas terras não havia tamanho afeto e sintonia de carinho. Porém, todo sonho tem um fim e o meu foi bem rápido. Ele não era dado a leituras... malmente sabia escrever seu nome para assinar os acordos com seus clientes.
Um dia, Gerêncio ficou incomodado com o bolo de laranja que fiz. Tinha saído até bom... não entendi o berro que me deu arremessando socos no ar. Outro dia gritou comigo na frente de painho; fiquei sem chão e sem voz para detonar as palavras odiosas que mencionou. Eu poderia até esquecer, mas painho não.
Semanas depois, levou-me arrastada pelo braço ao me ver conversando na varanda de Fiinha com Graça e Vera-lavadeiras como eu. Que vexame! Ali me vi como uma criança envergonhada diante das amigas após levar uma surra de seus mais velhos, nesse caso, do marido que dizia me amar. Isso era amor? Passei a questionar dentro de mim cada gesto, cada olhar do suposto companheiro.
A partir desses trovejos de Gerôncio, fui me encolhendo diante de seus safanões, mantendo as vistas baixas às suas sombras e aturando seu peso corporal todas as noites. Mas naquela foi diferente. Eu sempre dormia sobressaltada, com receio do que poderia acontecer em mais um momento de loucura daquele homem nefasto, O estômago a revirar, a mente não mais sossegava... a vida estava embaralhada.
Naquela noite acordei com a sensação fria do alicate de construção pressionando o lóbulo da orelha esquerda. Gerôncio parecia eufórico e um tanto bêbado jogando seu corpo branco e suado sobre o meu, negro como as noites que me abraçavam naqueles momentos de solidão, na mesma cama em que há dois anos fazía-mos amor e planejávamos um arranha-céu de projetos a dois. Quem sabe um filho, fruto de nossos calores... Porém, tudo agora se dissolvia no ar como fumaça. Tudo se desmanchou como algodões-doces em uma tarde fervente de verão.
Ainda sob a dilaceração de sua fúria, tentei desviar a orelha do contínuo castigo da ferramenta, contudo a força de Gerôncio só me fazia contorcer ainda mais até cair no tapete do quarto já em "mar de sangue". Nesse momento, ele parou, arremessou o alicate contra a cômoda e segurou firmemente meus braços em cruz.
Minha força era inútil perto da sua, e de forma violenta fui levada à sala onde ele amarrou meus punhos com cordas de fazer varal, pressionando-me na prateleira de livros. Quase sufocada, com a face esfregada contra os livros, irritantemente ouvia-o repetir aos berros: Vou te matar, vagabunda! Pensa que não sei dos seus pensamentos pecaminosos com esses livros que você costuma ler!? O que tem nessas folhas de merda? Por que suspira quando olha esses diabos de papel? Isso vai acabar! Hoje vai! Vou queimar você e eles juntos, no alto do morro.
Então era isso! Era dos livros que Gerôncio tinha raiva. Era a liberdade de minha mente, ao participar daquele encontro com as histórias, que ele não suportava. Entre empurrões, tapas na face e murros no estômago, pude ver eu mesma realizando um golpe de "martelo" nas fuças daquele macho em ira que, igual a um inseto, foi parar do outro lado da sala meio zonzo.
Ainda amarrada, saí correndo na escuridão da vila, sentindo falta de ar, e com o olhar de uma coruja cacei um canto improvável de ser encontrada. Devia ter percorrido uns cinco quilômetros quando avistei a cabana da Glória, que estava abandonada havia três semanas.
[Glória seguiu em busca do filho Aroni, que foi pescar lá para os lados do Araguaia e não voltou mais o sumiço de jovens negros era comum por esses dias, alguns até apareciam banhados de sangue e dilacerados pelas matas ou na beira dos rios. Mãe é isso: vai atrás do mínimo grão de areia na pegada de sua cria. Sem destino certo. Apenas a sede do reencontro no peito e o mar no olhar.]
No interior da casa, já solta, atirei-me no banheiro e agarrei as paredes do lugar como lagartixa. Depois de alguns minutos, senti a respiração ofegante e ofensiva de Gerôncio. Imaginei-me morta naquele instante. Quiçá cortada em vários pedaços e distribuída na vila feito jornais atirados nas portas das casas alheias. Acabava o sonho de "vida feliz" ao lado daquele lobo em pele de cordeiro. Antes do dia amanhecer, segui por entre as frestas da mata fechada e, a dez quilômetros da Vila das Flores, renasci no Quilombo Sussuarana com novos passos, novos planos, outros ares. Descobri que ainda havia vida em mim. Restaurei-me junto ao meu povo e uma semente de esperança por tempos melhores cresceu em meu ventre.
(Cadernos Negros 42, pág 43-48)