Quando pinta tem cento e trinta!
Lá vai Marilina, andar radiante, perna comprida. Ela já havia sido atleta quando adolescente em um renomado clube da cidade! Isso explicava as pernas tão firmes e a marcha tão bem marcada…
Como toda mulher segura, tinha um debochado rebolado, arrastando nádegas bem desenhadas, e um sorriso infinito nos lábios. Os dentes? eram como as teclas de um novo piano a tocar, sorrindo desde o amanhecer até o entardecer…
Oh, negra mulher! Coisa bonita de se ver! Os cabelos de Marilina estavam às vezes encaracolados, outras vezes, molhadinhos, mais para lisos, pois seus fios eram finos e soltos. Noutras vezes ela os arrepiava com um pente-garfo, muito usado pela raça negra, e colocava um laço de fita que a deixava muito bonita.
As cores usadas por Marilina realçavam a cor da sua pele, trazendo para quem a visse um sentimento de esperança misturado com alegria. Gostava de roupas de cores alegres, combinadas, realçando-as com acessórios e bijuterias, harmonizando com bolsas e sapatos num fino acabamento!
Bisneta de escravos, neta de capixabas e filha de negro com parda, pai e mãe professores e músicos, a menina já tocava bem seu violão aos dezessete anos, trazendo para si um grande número de jovens, adolescentes que a seguiam para cantar acompanhados do seu gracioso violão, que tocava com o swing com que todo instrumento que tem dono "black" sabe gingar...
Tinha muitos sonhos! Mas sua mãe a prendia muito, pois já percebia que poderia voar muito alto, então queria interromper algumas das suas atividades e tirou-a do atletismo. Como Marilina chorou!
Completou dezoito anos. Ingressaria na Faculdade. Sonho? Era fazer Música ou Artes Plásticas. Já pintava telas desde seus dez aninhos de idade. Arte a fascinava e sua família a incentivava sempre, elogiando seus trabalhos, firmando assim sua decisão pelo curso de Educação Artística com habilitação em Desenho Geométrico, posteriormente habilitação em Música. Conquistou uma bolsa de estudos de 75%, após ter contado para a direção da Faculdade as dificuldades que enfrentava em sua casa, pois Marilina era filha de pais separados. Seu querido pai havia ido embora de casa, separando-se da sua mãe, que ficou com seis filhos para criar sozinha. Sua mãe Isaura dizia: Meu dinheiro não dá pra pagar a faculdade! Mas Marilina, muito ousada, falava: Vou arranjar um jeito, mas vou me formar em nível superior! E assim fez... Conseguiu a bolsa (desconto) e se formou, resultando assim em uma excelente, dedicada, professora de Geometria, sendo a primeira dos irmãos a ter formação superior.
Em uma escola particular no centro da cidade onde residia, ela começou a lecionar Geometria. Lá estudavam filhos de professores, filhos de médicos, advogados, políticos, empresários, e diversas pessoas de alto poder aquisitivo, e por isso eram extremamente seletivos e, sentindo-se incomodados com a presença de uma professora negra no colégio, a única, sentiram- se no direito de persegui-la, aplicar um bullying em relação à pessoa e ao trabalho da tão dedicada Marilina. Quando ela entrava no sexto ano para ministrar as aulas de Geometria, os alunos colocavam os pés em cima da mesa, tiravam os tênis, os colocavam pendurados na lousa... Que afronta! Era impossível começar a aula sem abrir uma discussão, que sempre acabava em ofensas por parte dos alunos, tendo-se sempre que chamar a direção da escola para apaziguar a turma. Sempre perdiam cerca de meia hora, sobravam vinte minutos para tentar dar aula... Sempre uma frustração para Marilina! Saía de uma sala e, antes de entrar em outra, passava no banheiro para chorar e pensava: "O que é que estou fazendo aqui, meu Deus? Estudei tanto...". E seguia. Entrava em outra sala, sempre um desafio. Entrou num sétimo ano e encontrou dois bilhetes em cima da sua mesa. Guardou-os em sua bolsa. Deixou para ler somente na hora do intervalo os bilhetes achados. Grande foi sua admiração quando abriu o primeiro bilhete, que dizia: "Lugar de preto é na cozinha".
O coração de Marilina disparou, tun-dun, tun-dun, tun-dun... e foi aumentando o andamento das batidas. Resolveu então abrir o segundo bilhete. Neste estava escrito: "Gosto de negros, mas meus pais não gostam.... As lágrimas da professora umedeciam seu rosto sem ela poder controlar. Seu sentimento era de indignação, pois sempre foi uma mulher super amada por todos e bem sociável. Nunca havia passado por uma situação de tanta rejeição assim. Na verdade, nem acreditava que num mundo tão moderno, numa cidade tão evoluída, pudesse estar acontecendo tamanho preconceito.
Ela chamou a coordenadora de curso e compartilhou o que estava acontecendo, disse que não conseguia dar aulas, não conseguia concluir o conteúdo programado, os alunos a afrontavam; enfim, relatou tudo o que ocorria já há três meses de sua jornada naquela unidade escolar. A coordenadora calmamente disse: Tenha paciência! Eles são adolescentes! Isso não é preconceito! Isso é coisa da sua cabeça... Eles estão estranhando porque nunca teve aqui na escola uma professora negra. Geralmente os negros são sempre os funcionários com outras funções e nunca professores. Eles estão estranhando, mas daqui a um tempo se acostumarão! Será só uma questão de paciência da sua parte, professora!, falou com ar de desprezo.
Marilina, mesmo indignada, prosseguiu com sua caminhada educacional, pois não costumava desistir com facilidade dos desafios que lhe eram propostos.
Mas com o passar dos dias as coisas foram se afunilando.
Os alunos riscavam a lousa toda antes de ela entrar na sala, para que ela perdesse bastante tempo apagando-a. Riscavam seu veículo. Quando ela marcava prova, eles diziam que ela não tinha marcado, para contradizê-la, e a denunciavam aos pais, fazendo com que estes fossem ao colégio reclamar e denunciar as aulas de Marilina. Enfim, tramavam o tempo todo.
Ela vestia-se como os adolescentes: camisetas, calças jeans, tênis. Mas mesmo assim arranjavam motivos para rirem das suas roupas. Até que ela teve a brilhante ideia: ir conversar com a dona da escola, pois a coordenadora também tinha filhos na escola que eram alunos de Geometria, e não estava disposta a fazer nada por Marilina.
Chegou até a dona da escola e a mesma lhe disse: Infelizmente não posso fazer nada. Na sala de aula quem resolve é você! Veja até onde você aguenta. Se não conseguir, não adianta insistir... O objetivo aqui é dar conta do conteúdo programático. Se não está atingindo a meta, melhor não forçar... Para os adolescentes é muita coisa, ter que aceitar você, ter que assimilar Geometria, é muita coisa de uma vez só... Só tenho isso a dizer... Você resolve, Marilina! Esta casa estará sempre de portas abertas…
Para a professora ficou tudo muito claro! Era ela quem estava sobrando naquela situação. Nas décadas de 80 e 90, ainda não eram tão divulgadas as leis que condenam a discriminação racial. Ela sentia-se totalmente desprotegida. Triste, cabisbaixa, desanimada, a professora de Geometria saiu da sala da dona do colégio. Linda negra, inteligente, otimista, mas naquele momento sentia-se a última das criaturas! Queria encontrar alguém que lhe desse um forte abraço e balbuciasse em seu ouvido "estou com você, conte comigo".
Disse à coordenadora que não viria mais dar aulas. Pegou seu carro, foi correndo para casa, correndo para encontrar seu esposo, seu amigo acolhedor, Carlos, um homem branco com quem se casara havia trinta e dois anos, que estava com ela em todos os momentos. Abraçou-o, chorou, mas estava tão sensível que teve uma paralisia facial. Carlos levou-a imediatamente ao hospital.
Ficou na medicação... Não ficou com sequelas. Seu belo rosto voltou à linda feição natural. Descansou por quatro meses até chegar a virada do semestre e logo conseguiu entrar numa grande escola, mas desta vez com excelente cargo de regente, representante musical de eventos da empresa, ficando ali até a data de se aposentar. Nessa empresa conquistou muitos títulos e destaques, abrindo-se portas para amplos horizontes em sua carreira profissional.
Após se aposentar, Marilina resolveu trabalhar não mais em escolas, mas foi trabalhar no ramo imobiliário. Entrou numa grande empresa imobiliária. Ela sempre conquistava empresas de destaque por causa de seu brilhante carisma e desenvoltura.
Quando chegou a essa empresa e seu gerente passou pelos setores apresentando-a, "pessoal, esta aqui é nossa nova funcionária: Marilina", uma moça ergueu os óculos, olhou-a por cima das lentes e disse:
- Marilina? Você foi minha professora de Geometria no sexto ano do ensino fundamental!
Admirou-se! Olhou para a moça e disse:
- Uauuhhh! Muito prazer! Me relembre seu nome, por favor.
A moça disse:
- Me chamo Carolina. Professora, não sei se lembra de mim, mas em nome da minha turma, quero te pedir... (começou a chorar) ...professora, soluçou, com lágrimas, quero te pedir PERDÃO! Tenho vergonha do que a minha turma fez com você naquele tempo. Mas saiba que absorvi as coisas que você ensinou e hoje sou engenheira civil graças a você. Me senti motivada ao ver como você ensinava com amor Geometria... amava o desenho geométrico, amava ensinar... Você me motivou. Obrigada, professora Marilina!
Abraçaram-se, emocionadas, Marilina balbuciou:
- Diferenças se atraem! Preto e branco? Só há diferença na cor da pele... Somos todos gente... Seres viventes! Tem muita coisa boa em nós! Por isso, por maior que seja a turbulência, terá alguém sendo salvo. Sempre tem alguém aprendendo algo conosco, bom ou ruim; por isso é melhor ficarmos com o que há de bom para compartilhar. Mesmo sendo injustiçados, sejamos justos e lutemos rumo à vitória. Mesmo nessa dificuldade houve colheita!
Admirável e forte mulher! Seguiu em frente; hoje, grande e vitoriosa, mãe de três filhos: um administrador de empresas, outra finalizando Medicina, o mais novo cursando Engenharia, marido Teólogo. Ela aprendeu muito com as pessoas que disseram a ela "não", pois descobriu que diante de um "não” havia inúmeros "sins". Marilina ainda está viva! Hoje tem 53 anos. Aparência? Jovem ainda... ninguém acredita! Porque essa raça "quando pinta tem cento e trinta".
Cadernos Negros 38, p. 17