Na cidade de Piracicaba, interior de São Paulo, morava a família do professor Abasi. Esse nome africano significa "rigoroso". Eram negros, a esposa chamava-se Anaya. Tinham cinco filhas e dois filhos, a mais velha chamava-se Ada; o filho mais novo, Asad. Todos tinham nomes africanos e moravam numa casa de sete cômodos localizada nos fundos de uma escola. Junto com sua família, Abasi lecionava cursos profissionalizantes de cabeleireiros, na movimentada cidade do interior de São Paulo. Sua escola era muito procurada pelo público interessado no ramo da beleza, mas quando observavam que os donos do estabelecimento de ensino e os professores, em sua maioria, eram negros, os alunos preconceituosos desistiam de estudar com eles. Davam sempre uma desculpa e não concluíam a matrícula, deixando-os assim decepcionados com a marca, tão impregnada, que a escravidão negra deixou no Brasil.

Mesmo após mais de cem anos de abolição, as relações raciais ainda se mostravam muito desequilibradas, fazendo-se notórias no dia a dia. Contudo, persistiam com a escola de cabeleireiros. Capacitados no trabalho que faziam, se empenhavam, e unidos participavam de algumas ações que combatiam discriminações étnico-raciais. Tentavam dar oportunidade para o acesso e para o desenvolvimento das potencialidades socioculturais, valorizando as iniciativas que promoviam o respeito às diferenças. Aproveitavam o espaço que tinham para fazer reuniões com grupos, a fim de contribuírem na mudança desse cenário brasileiro. Davam aulas, tratavam da performance de noivos, modelos, faziam tratamentos afros e de cabelos lisos, eram bem dedicados.

 O professor Abasi era bom empreendedor, porém tinha um grande problema, que chegava a afetar sua parte psicológica e comportamental: tinha mania de trocar os móveis do lugar, muitas vezes arrastando-os até de madrugada, para sair da rotina. Também tinha o hábito de mudar de endereço, partindo do lugar com toda a família, que se entristecia por ter que deixar seus amigos, a escola, professores, funcionários e a empresa. Além do mais, com as trocas de endereços adquiriam grandes problemas financeiros, pois tinham custos com as mudanças, que muitas vezes eram de um bairro para outro, de cidade ou de um estado para outro. Os móveis se desgastavam, perdiam-se especialmente os guarda-roupas, e armários desmontáveis estragavam na remontagem. Enfim, tinham muitas perdas materiais e psicológicas.

 Os filhos lamentavam a maneira que eles levavam a vida, com constantes mudanças, sendo que Asad, o irmãozinho mais novo de 10 anos, já estava com dificuldades de sociabilidade e não conseguia se envolver nos grupos do colégio e na vila onde morava. Ada, sendo a primogênita, sentia-se responsável pelos irmãos. Ficava muito incomodada, pois também perdia suas paixões e tinha sempre que recomeçar em cada lugar, inclusive apoiando seus irmãos nas readaptações. Na vida escolar, ela já havia repetido cinco vezes a sétima série e três vezes o oitavo ano do ginásio, o fundamental II na década de 1970. Amava seu pai, mas preocupava-se com ele; percebia que ele não era focado nos interesses dos filhos, mas sim nos próprios interesses pessoais, resultando numa família sofrida. Sua mãe, Anaya, cujo nome africano significa "olhar para Deus", era uma mulher cheia de fé, orava muito pela família e muito se preocupava porque sentia a pressão da discriminação racial na vida dos filhos; era muito inteligente, estudiosa e se colocava como a coluna estrutural da casa. Por ouvir os filhos clamarem a ela por intervenção, vivia aconselhando o esposo para fixar moradia. Ada acolhia seus irmãos como uma galinha acolhe seus pintinhos. Os menores a apelidaram de Mana Black.

 Passaram-se muitos anos! Ada concluiu o ensino fundamental II aos 25 anos, o segundo grau aos 30, sempre superando as injustiças e diferenças raciais. Ela começou a trabalhar na recepção de um hospital e a namorar João Pedro, o enfermeiro-chefe que a levou para conhecer sua família, mas que, logo no outro dia, entristecido, comentou que o pai não queria a continuidade do namoro por ela ser negra. O suposto futuro sogro não queria que seus netos fossem negros e ficaria constrangido de apresentá-la à sociedade sendo de outra raça, porque a família dele era de pele clara. Isso fez com que as frequentes visitas de João Pedro à casa de Ada diminuíssem até resultar no término do namoro.

 Ada, mais uma vez, frustrou-se, porque essa questão discriminatória a acompanhava desde a infância. Sempre foi assim! Mesmo seus pais tendo uma pequena empresa, ministrando cursos, sendo líderes, eram excluídos. Pensava: ainda vou estudar, ser grande e ter autoridade para mudar isso! Seu grande sonho era ser psicóloga. Amava observar o jeito das pessoas e tinha grande curiosidade em saber ainda mais sobre o comportamento do seu pai, que tanto mudava de endereço e os móveis do lugar. Queria também saber por que a mente humana discriminava e excluía os seres diferentes, rejeitava o obeso, o magérrimo, o preto, o ruivo, ο deficiente, o nível intelectual e social etc. Ela não tinha recursos financeiros para estudar, mas queria lutar para conquistar sua formação. Casou-se aos 35 anos com um homem 10 anos mais novo e, mais uma vez, se viu preocupada em realizar os sonhos daquele jovem antes de realizar os dela. Foi mãe aos 42 anos e agora seguiria a ordem de realizar as prioridades da sua filha. Aulas de balé, inglês, educação básica... Passaram-se 10 anos, o pai de Ada faleceu, a mãe já estava bem idosa, aposentada, e morava com ela. A família já havia mudado para a Grande São Paulo, seus irmãos agora estavam crescidos, casados, mas não perderam o costume de, em qualquer necessidade, procurar a irmã mais velha para se aconselhar e ganhar seu abraço.

 O tempo passou para Mana Black, mas o sonho não tinha idade! Certo dia seu esposo, que já estava com 47 anos, resolveu pesquisar como eram os procedimentos para financiar um curso universitário para eles. Ele cursaria marketing e Ada, com 57 anos, cursaria psicologia. Pela pesquisa, era algo possível para ambos. Prepararam os documentos, levaram até as faculdades e deram entrada na inscrição. Era surreal! Fariam o curso dos seus sonhos! Era uma mistura de felicidade e sentimento de incapacidade. Ada perguntava-se: Será que serei capaz de passar nas provas? Alcançarei o diploma? Concluirei Psicologia com 62 anos, meu Deus do céu... E assim fizeram, iniciaram os estudos.

 Ela teve total apoio do esposo e dos irmãos em todas as tarefas da faculdade. E por não ter muita habilidade no computador todos se empenharam em ajudá-la, envolvendo-se nos grupos, nas redes sociais, nas dicas de trajes mais modernos para rejuvenescê-la. Ada, Mana Black, ficou vestida de universitária! Seu esposo se formou em marketing, enquanto no mesmo ano sua filha ingressou na faculdade no curso de ciências contábeis. Após cinco anos de luta perseverante, Ada concluiu a tão sonhada psicologia e, muito disposta a cumprir sua carreira, enviou muitos currículos para conseguir uma colocação. Depois de procurar por dois meses, arranjou emprego em uma clínica de repouso para idosos em um bairro próximo à sua residência. Ficou muito feliz com a conquista e se preparou para seu primeiro dia de trabalho. Trajava-se bem, gostava muito de se maquiar, mas foi orientada a se vestir com simplicidade na clínica para não chamar a atenção dos internos. Ada conduziu-se ao trabalho com todo o ânimo! Ao chegar, se apresentou à recepção e uma funcionária muito simpática abriu sua ficha, vestiu-a com o jaleco branco com o logo da empresa, caracterizando que faria o serviço de saúde, e saiu pela clínica apresentando-a como nova funcionária. Mas, por uma falha de comunicação por parte da recepcionista, não a anunciava como psicóloga, e sim dizia: esta aqui é a Ada, nossa nova colega de trabalho, a partir de hoje trabalhará conosco! Todos respondiam: Seja bem-vinda, Ada! E assim passaram por todas as repartições, até que chegaram à cozinha, onde estavam a copeira Cida e a faxineira Neide. A funcionária apresentou Ada, que veio sorridente, vestida com o jaleco branco. Dona Cida disse à recepcionista: Pode deixá-la aqui que servirei um café quentinho, pois acabei de fazer. A recepcionista a deixou com as colegas e saiu, mas a faxineira, dona Neide, a olhou com discriminação e julgamento, classificando-a, e disse: Fique à vontade, colega! Pega aqui... E entregou uma vassoura para Ada. Disse ainda: Pode começar seu trabalho.

 Ada ficou perplexa; pegou aquela vassoura, não sabia o que dizer. Não tinha iniciativa em falar que o tempo mudou, que o negro assumiu um novo lugar na sociedade, nas novelas e filmes, que tem um novo diploma em suas mãos, que os negros são engenheiros, professores, psicólogos, dentistas, pilotos, diplomatas, presidentes da república, advogados, médicos etc. Ada estava sem jeito de falar com dona Neide, queria dizer que a profissão de faxineira era muito importante também, mas ela poderia estudar pois era capaz de alçar voos mais altos e conquistar uma profissão ainda melhor.

 A psicóloga varreu todo o quintal da clínica, recolheu o lixo e colocou no latão. Sentia uma imensa vontade de chorar. Segurava o choro entalado na garganta porque não suportava mais essa condição humilhante. Depois de diplomada, não pensou em passar por isso. As duas mulheres ficaram observando o trabalho da nova colega. Quando Ada terminou de varrer o local, entregou a vassoura para dona Neide, e com as lágrimas a correr pelo seu rosto disse: Neide e Cida, eu sou a nova psicóloga da clínica de repouso. Acompanharei os idosos todos os dias no horário das oito às catorze horas e terei alegria em ver esse quintal limpo, tomar um café quente como tomei hoje, porque isso demonstra carinho e compromisso com o trabalho, além de conservar a boa autoestima dos pacientes. Essas coisas fazem bem aos internos desta casa, me incluindo. Que fique esta lição para você, Neide: se ao me conhecer tivesse calçado os meus sapatos, teria conhecido o calor dos meus pés e saberia o quanto já caminhei. Calcularia o peso da bagagem que trago comigo e a sabedoria dos meus anos vividos. Você julgou minha aparência pelo seu primeiro olhar e perdeu, pois não conheceu minha essência! Não podemos permitir que esse veneno destruidor chamado preconceito racial nos destrua, mas, ao contrário disso, vamos construir novas pontes entre nossas diferenças de pele.

 Assim seguiu Mana Black, superando seus desafios, brilhante em sua profissão, realizada como psicóloga, mulher, segura de si, grande símbolo da emancipação, que enxerga o passado com outros olhos e transforma o presente, sonhando sempre com o futuro.

 

(Cadernos Negros 40, p. 24)