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Textos de Maria Esther Maciel, selecionados dos livros:

   

· O Livro de Zenóbia (Ed. Lamparina, 2004)

· Triz  (Orobó Edições, 1998 e 1999)

· Dos Haveres do Corpo (Ed. Terra, 1984)

 

 

 

 

Outros poemas da autora  (2000-2003) 

 

 

 

De O Livro de Zenóbia, 2004:

 

AS IDADES DE ZENÓBIA

 

 

 

 

Aos dezoito anos, Zenóbia tinha olhos ávidos e não usava óculos. Os cabelos, de um preto instável, pendiam em breves ondas sobre os ombros. Seu corpo magro lhe impunha uma fragilidade que não tinha. Sorria sempre como se escondesse a face sob as sombras.

 

Aos trinta e dois anos, Zenóbia tinha olhos óbvios e ainda não usava óculos. As maçãs do rosto, de um rosa rubro, quase que encobriam o nariz miúdo. Os cabelos, reclusos. Uma linha – quase ruga – trazia à testa um ar de austera brandura. Mas nenhuma dureza no conjunto, nenhum escuro.

 

Aos quarenta anos, Zenóbia tinha olhos sóbrios e passou a usar óculos com aros de tartaruga. Os cabelos, curtos. O risco na testa, agora um sulco. Seu vulto era raro. O sorriso esquivo:  seu ponto de fuga. Uma incerta elegância a tomava, quase absurda

 

Aos cinqüenta e oito anos, Zenóbia tinha olhos sólidos, sob os óculos de lentes turvas.  No susto da idade aprendeu que ainda era cedo e quis experimentar tudo. Nos cabelos cinza, nenhum sinal de pejo. Imune ao peso do mundo, ela parecia não ter culpa ou medo.

 

Aos setenta e quatro anos, Zenóbia tinha olhos estóicos por detrás dos óculos de hastes curvas. Trazia o cabelo de nuvem rente à nuca. E apesar do luto, não perdia o lume. De tudo, mesmo das coisas soturnas, sabia extrair o sumo. Sua vida era o resumo de seu nome. Todos diziam que não morreria nunca.

 

Aos oitenta e dois anos, Zenóbia parece ter setenta e quatro. Os olhos, sob as lentes sem aro, estão ilágrimes. Os cabelos, ralos, de um branco insone. Já não há dor ou noite para a sua alma, é claro. Na aura da idade, já sabe quase tudo. E todos já pensam que ela é um milagre. Ou um sonho.

 

*

 

 

MIRABILIS E BONINAS

 

1

 

Plantas de raízes drásticas eram cultivadas por Zenóbia em 1976. Eram doze as espécies que cresciam no jardim estranho que criara em sua nova casa. Delas cuidava como se fossem uma dádiva, uma beleza ideal ou seu nada.

 

2

 

Tanta dor teve Zenóbia quando seu primeiro cão morreu que escreveu cem vezes seis vezes o nome dele no chão do quarto. Eram quatro para as onze quando completou o quadro. Foi dormir quase sem culpa ou cansaço. Sonhou com um pássaro sem asa.

 

3

 

Em 1987, Zenóbia conheceu na rua uma mulher que vendia palavras. Eram todas inventadas. Encantou-se com “ilágrime”. Comprou-a, sem alarde. Porém, mais tarde, soube que essa era uma palavra roubada.

 

4

 

Alicia Mirabilis foi o nome que Zenóbia usou quando publicou o seu livro sobre os milagres de Santa Clara. Já ao escrever sobre Tereza d´Ávila, escolheu o nome Notylia. Descobriu-o quando pesquisava orquídeas numa ilha que inventou no dia de sua maior alegria.

 

 

 

*

 

 

Veja também textos de O Livro de Zenóbia na Revista Zunái

 

*

 

Do livro Triz, 1998:
 

     AULA DE DESENHO
 

Estou lá onde me invento e me faço:
De giz é meu traço. De aço, o papel.
Esboço uma face a régua e compasso:
É falsa. Desfaço o que fiz. 
Retraço o retrato. Evoco o abstrato
Faço da sombra  minha raiz.
Farta de mim, afasto-me
e constato: na arte ou na vida, 
em carne, osso, lápis ou giz
onde estou não é sempre
e o que sou é por um triz.

                *
 
 
 
         NOTURNO 
                

                (a T. S. Eliot )
 

O dia é noite no poema:
Sombras, pedras, luas secas
encobrem a estação das flores.
Sobre o deserto 
memory and desire
ainda restam:
ecos entre as cinzas 
deste verso.

Will it bloom this year?

Na terra triste do poema
enterro o fim e o infinito:
me faço silêncio, eclipse.

              *
 
 
  PAISAGEM COM FRUTAS
 

Duas peras sobre a mesa
esperam a tua fome.
O dia é verde
e o vento tem cores provisórias.

Sobre o muro
um pássaro mudo
de olhar escuro
perscruta a tua sombra

Ele sabe
que ninguém sabe
em que azul 
ocultas 
teu absurdo.

         *
 
     

MANUSEIO

Tépidas
essas mãos
que divagam
devagar
por meus relevos
óbvios
e demoram
fundo
no obscuro
ponto
onde o corpo
se abisma
e silencia,
absurdo.

      *
   

   ECLIPSE
 

A lua desliza 
sob as sombras 
do sol 
        que não há:

luz de escuros
véu  para o olhar
que não vê 
                 senão 
a cor lilás 
da noite 
             que reluz 
num verso 
             de Éluard.

 

                   *
  

                    PRECE
 

Dê-me o esquecimento, meu pai.
Dê-me uma noite sem sombra 
ou sobressalto, um sono inteiro
um instante sem rumor.
Dê-me teu silêncio, meu pai.
A solidez das pedras, o rigor das coisas 
a solidão sem dor.

                                 *
 
 
     DESTERRO

         

Desabitado o corpo

resta a sombra

do anjo sem nome

 

O reino do longe

é aqui: na terra

insone, onde a pedra

consome a falsa raiz.

 

                    *

 

          AMOR

 

Na véspera de ti

eu era pouca

             e sem

sintaxe

eu era um quase

         uma parte

sem outra

            um hiato

de mim.

 

No agora de ti

            aconteço

tecida em ponto

              cheio

um texto

com entrelinhas

          e recheio:

 

um preciso corpo

um bastante sim.

 

            *

 

     OFÍCIO

 

Escrever

a água

da palavra mar

o vôo

da palavra ave

o rio

da palavra margem

o olho

da palavra imagem

o oco

da palavra nada.

 

                           *

 

 

 

   Do livro Dos haveres do corpo, 1985:
 
 

CONCEITO 

 

Teu corpo:

 

um porto

que eterniza

meus navios

 

um parto

que traduz

o meu avesso

 

a parte

que arremata

meu desejo.

             *

 

CLANDESTINIDADE
 

Permanece em mim 
como um segredo
e que ninguém escute 
teu silêncio na minha boca
nem a linguagem de teus olhos
que em mim se inscreve
como poema

Torna-te clandestino 
em meu país sem nome
e desenha em mim
o teu enigma
teu reverso
e teu verso sem tradução

Te exila em minha teia
me define com tua senha
perenizando em meu corpo
o teu mistério –
entre cortinas,
no refúgio exato dos lençóis.

                       *
 
     

PRESENÇA

a Altino Caixeta de Castro
 

Não vim para ficar:
não sou senão minha possibilidade de volta
minha indizível presença
que se resvala
no espanto de ser

Vim 
provisoriamente
desafiar o século
anistiar meu susto
traduzir no tempo
este absurdo de nós

Não cheguei tarde
porque tarde é para os incrédulos
e os fantasmas que não se vingaram em vida

E porque nem tudo está falado:
o mundo ainda é uma esfinge
que devora os mudos
e os simplesmente chegados.

                      *

 

Outros (2000-2003)

 

SOBRE UM FILME DE WONG KAR-WAY

 

 

 

O corpo e seus possíveis.

O dentro que, na pele,

 vira flor.

Os cheiros, a  memória

do que, de tão breve,

                    não fica

senão  como sombra

                      líquida

quase cítrica

                     desse amor.

 

   (2001)

 

*

 

           BLACKHEATH

 

 

 

A poesia me chama entre as árvores

de folhas incompletas.

O vento é frio, apesar de terno.

Corvos mancham o azul sem peso

desta tarde que não começa.

 

O trem também me chama.

E não vou.

(2000)

*

 

     REGALO

 

 

Quando meu pai

voltava da roça

trazia, além da alegria

garrafas de leite cru.

 

Às vezes, cestas de ovos

mangas maduras

polvilho, açafrão em pó.

 

Trazia o cheiro das coisas

sem malícia. A memória

dos pastos.

 

O azul.

 (2002)

*

 

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*
 
 
 
 

 

Maria Esther Maciel

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