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O LIVRO DE ZENÓBIA, de Maria Esther Maciel (Rio de Janeiro: Lamparina, 2004) ________________________________________________ O SOPRO
SALVA-VIDAS DA SENHORA Z (Apresentação de O
Livro de Zenóbia, de Maria Esther Maciel) Nelson de Oliveira
1 Não estão lá, meu nome e minha
história. Não figuram no capítulo dos amores perfeitos de Zenóbia. Isso me
surpreende (principalmente na meia-noite de cada plenilúnio). Porque fui o
primeiro e o mais importante, não fui? Da arqueologia aprendi todos os
macetes, mas foi Zenóbia quem me exumou. Foi ela quem encontrou minha cripta.
Foi ela quem reuniu meus ossos e soprou ânimo no meu crânio. Zenóbia, vida atribuída por Zeus. A
ressurreição dos mortos nem chega a ser seu principal talento. O amor e o
horror, perguntem a ela de onde brotam. Vão lá, perguntem! Fui o primeiro a
escutar sua cantilena e mesmo assim não pertenço a este livro. Tocado pela
voz vaidosa da sereia assassina, hoje não falo nem escuto. Apenas leio. Eis o
teatro da crueldade: Zenóbia cultiva êxtases no seu jardim furta-cor, mas
jamais reparte as delícias com os surdo-mudos. Estou sendo injusto? É óbvio,
arrancaram-me um molar! Porém eu perdôo tudo. Perdôo as ervas daninhas e as aves
em perigo. As receitas e as cidades raras. Perdôo sim. Porque sem os óculos e
sem os olhos finalmente me vejo nelas. 2 Caro leitor, descalce os
sapatos, descanse da azáfama diária. Voe. Voe alto. Reconheça-se nas figuras
amarrotadas deste álbum de família, desses cadernos desbotados. Ah, se meu
fusca falasse, se minha cama voasse: o espantoso não moraria apenas nas telas
de cinema. Peralá, quem disse que o espantoso mora apenas nas telas de
cinema? Tolice. O livro de Zenóbia no
país das maravilhas (há outros títulos) é a representação mágica do
mundo. Já não me lembro se eu o li acordado ou dormindo. O sonho e a insônia
se confundem nas suas páginas virgens. Agora me recordo: eu o li enquanto
dormia. Foneticamente falando, meu esqueleto foi reorganizado por ele. Ah,
Zenóbia, você e sua deliciosa mania de ordenar o caos em breves listas!
Insanidade temporária, quantos advogados foram necessários pra fazer valer
essa alegação? Zenóbia, seu coração eu conheço de cor. Nele é guardada a
sadia insanidade da infância, da criança tão louvada pela própria Loucura no
elegíaco Elogio. 3 Durante minha vida cacei essa
menina de Tanglomanglo à Cochinchina. Morri na tentativa: de rir, de chorar.
Meu sarcófago foi enterrado nos meus próprios erros. Zenóbia me trouxe de
volta, pôs nas minhas mãos suas memórias em forma de livro e ordenou: “Vai,
espantalho. Espalha minhas palavras aos quatro ventos.” Abracei o livro e
fui. Vim. Não estão aqui, meu nome e minha história. Não figuram no capítulo
dos amores perfeitos de Zenóbia. Tudo bem, não me desespero por isso. Que
honra poderia ser maior do que apresentar ao honorável público sua família,
seus sonhos, seus peixes prediletos? Ah, Zenóbia, Zenóbia. Tua delicadeza no
manuseio da nossa vã filosofia move prédios e comove montanhas. Tenho medo de
que você faça com os ossos dos leitores o mesmo que fez com os meus. Tenho
medo e rezo por isso. Vai, Zenóbia, mostra o teu esplendor. Faz do sapiens
príncipe. Transforma novamente em gente o cidadão engravatado. Sopra nele pra
sempre o sonho sonoro dos teus poros. _____________________________________________ DEPOIMENTOS SOBRE
O LIVRO DE ZENÓBIA
ZENÓBIA E
HILDEGARDA
Ana Marques Gastão Viam de olhos fechados por
dentro das palavras a chama vacilante na argila das páginas. Nostálgico
esforço o da amizade: primavera de intuições.
Zenóbia sabia: o belo, só por si, morre. No sonho,
jazia num corredor deserto, gélido, e caía por
entre ratos em debandada, pássaros sem asa,
já longe dos graus de ascensão do movimento erótico, exemplar no lamento.
Aquele que segue o rasto do sangue não
necessita de estar próximo daquilo que
evoca. Num lampejo dourado, Hildegarda deu a mão a Zenóbia. E atravessaram,
cintilantes, a invisibilidade das águas mortas.
*
ZENÓBIAS
Donaldo Schüler Primeiro foi a estranheza do nome. Que recebeu vida do alto, diz
pouco. A não ser que a queiramos como musa, filha de Zeus e da Memória. Há a
estrela na testa! Filha da Memória ela efetivamente é. Memória, não só do
passado, também do futuro. Zenóbia salta de uma extremidade a outra com
agilidade de fada. Isso quando não se instala no alto de uma goiabeira, lugar
em que respira livre para imaginar, poetar, ser. Salta com ritmo. Freqüenta
palavras invulgares, tiradas de receituários, tratados, mapas, almanaques,
álbuns, alfarrábios... Veste-se de imagens, de sonoridades insuspeitas. De
tanto viajar por dicionários e livros, busca um país sem palavras, sem
ritmos, sem sons. Da última vez que vi Zenóbia, ela residia num aceno e
chamava para campinas sem relógios, sem fronteiras – Alhandra.
*
ILÁGRIMAS PARA ZENÓBIA
Lúcia Castello Branco Quando fui apresentada a O Livro de Zenóbia e convidada a
escrever sobre a personagem, o meu primeiro susto foi encontrar, ali nas
páginas do livro, não exatamente uma personagem, mas uma figura. Zenóbia, com o Z de seu nome, apontava, desde suas
primeiras palavras (ou seus primeiros silêncios), não para as leis que fundam
a representação — com o convencional destaque para as construções verossímeis
—, mas para as leis da poesia que, afinal, se condensam nas fulgorizações dos
nomes e das coisas. Daí por diante, foi pelo fio
dos nomes que segui os encadeamentos da narrativa de Zenóbia. Pois as figuras
sempre foram, para mim, “tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que
chamamos, porventura abusivamente, a vida real.” Foi assim que, pela
fulgorização do nome — “o devir de cada um está no som de seu nome”, nos
ensina Llansol— conheci Zenóbia.
E assim ela me pareceu tão visível e minha como a vida real. Apesar
disso, creio que eu não saberia dizer nada de Zenóbia. Ou quase nada: sei,
por exemplo, que ela amava as listas, as receitas e os peixes perplexos. Sei
que ela tinha livros de cabeceira e apreciava orquídeas e bromélias. Mas não
sei se sei mais sobre Zenóbia depois de ter lido seu livro. De toda forma, posso dizer que a experiência de ler O livro de Zenóbia me transportou para
um mundo de coisas delicadas absurdamente reais. E que de lá retornei um
pouco zenóbia. Desde então, tenho vivido ilágrime. É desta ordem a experiência literária? Talvez. Só sei que, abençoada pelo fulgor dos nomes, espero agora pela noite de lua tímida em que, nas páginas de um livro, venha eu também a nascer, límpida e sem impostura, à luz de uma lamparina.
*
O
LIVRO DE ZENÓBIA
Há
livros que podem ser lidos antes de escritos. Fulguram, ritmicamente, na
espera silenciosa que antecede os riscos no papel. O livro de Zenóbia é assim. Livro necessário, para o qual se
aliam, com rigor atordoante, as principais potências da palavra. São mônadas
poéticas, que formam séries narrativas, que se entrecruzam na fluidez
especulativa do ensaio. Daí a capacidade de ora ultrapassar, ora fazer
retroceder a própria ação da escrita. Essa usina de refinamento de partículas
verbais, que converte rarefação em densidades flexíveis, miudezas em aventura
do espírito, que cria seres mitológicos de tão humanos, já operava, desde
sempre, como fonte do desejo que move a todos que amamos a literatura. A nós,
O livro de Zenóbia, belo e vital,
se abandona.
* DAS DELICADEZAS
DE ZENÓBIA
Tereza
Andrade Às vezes, um livro
nos dá a certeza de que nenhum destino é tão insuportável. Pode-se acompanhá-lo
com uma taça de vinho tinto, pensando nas possibilidades do não-revelar-se,
do velar-se frente ao espelho. Zenóbia serve torta de abóbora com
canela e gengibre num prato vermelho. Pergunto-me: que bem posso não aguardar
do destino? Temperá-lo com ervas de
cheiros, lavar as insídias com suco de jabuticaba , curar as desditas com
néctar de pêssegos. Licor de flor para as palavras
não-ditas, melão com melissa para as malditas. Café com cardamomo para as
não-escritas. Deixar o olhar oblíquo.
Elegância absurda. Venha voar comigo, as aves
ainda não desapareceram. É cedo.
Dá para experimentar tudo. Traga seus livros preferidos. Cultivemos
orquídeas. Há bens que não podem ser roubados de nós, mesmo que por um
instante. A
thing of beauty is a joy forever.
*
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