As vozes de Cabeza de Palo
Yurgel Pantoja Caldas
Professor da Universidade Federal do Amapá e
doutorando em Teoria da Literatura na
Faculdade de Letras da UFMG
Ernesto Baca faz parte dessa nova
geração do cinema argentino que trata o filme não apenas
como uma forma de narrativa visual, mas, mais do que isso, busca ampliar o
horizonte simbólico da história através do uso de
imagens-emblema que ganham sentido na própria dinâmica da
montagem. Cabeza de palo
(2003) pode ser uma síntese desse tipo de cinema que está sendo
elaborado na Argentina: um longa-metragem que não possui falas, mas que
instaura outras formas de linguagem, e um protagonista (motorista de
ônibus que “vaga” pela cidade entre um centro arruinado e uma
periferia decrépita, sem parecer que trafega em uma linha
específica) que participa de outras micro-histórias, uma delas a
gravação de um filme pornô cujo título é “Cabeza de palo”.
Estranho, perturbador e simbólico, o filme logo chama a
atenção pela ausência de diálogo, anunciada pela
clássica figura da enfermeira com o indicador sobre os lábios,
determinando um silêncio da voz no hospital que se espraia pela
narrativa. Nesse caso, outras vozes vão ter que contar a história
que, grosso modo, trata de sexo, drogas e violência: uma das
“vozes” é o ônibus que, caindo aos pedaços,
precisa constantemente de reparos, como um paciente no leito do hospital. Outra
“voz” é o próprio corpo dos personagens, quase sempre
em sutil tensão que cresce a níveis de violência
explícita, como na cena em que dois skin heads golpeiam um rapaz no meio da rua, e em outra na qual
o motorista faz sexo com sua esposa quase de forma animalesca (e a mulher
permanece impávida, já esperando o momento sugestivo e banal).
O filme é rico e emblemático, e ganha uma chave interpretativa
logo em seu início, quando a esposa do motorista vai consultar sua sorte
com uma cartomante, que manipula o tarô de Marselha. A carta que cabe
à consulente, e que surge num brevíssimo segundo diante dos olhos
do espectador, é “Os Amantes” (arcano VI, que corresponde a
“Os Enamorados”, no tarô mitológico), que tem no amor
seu tema central por resgatar o episódio conhecido como
“Julgamento de Páris”. Designado
por Zeus para ser o árbitro de um concurso de beleza – cujas
concorrentes são, nada mais, nada menos que
Hera, Afrodite e Atena – Páris acaba
escolhendo Afrodite como a mais bela do Olimpo. Como
prêmio, corrompido pela promessa de possuir como esposa a mais bela
mortal, Páris recebe Helena, esposa do
espartano Menelau. Tal conflito daria início
à guerra de Tróia, cidade que terminaria arrasada pelo
exército espartano. Mas o que nos interessa na carta do tarô (mais
do que esse trajeto da mitologia à história) são as
leituras simbólicas que podemos fazer para encontrar em Cabeza de palo algumas respostas
para muitas inquietações, ou encontrar sentido em cenas que, numa
primeira olhada, soam como incoerentes.
Vejamos: a carta tem a figura de três pessoas (sendo que
uma delas deve escolher seu par amoroso) sobre as quais paira Eros apontando
sua flecha encantada para um dos três amantes, ao sol que ilumina a cena.
Trata-se da representação de um momento de tensão, pois
uma escolha precisa ser feita. No caso do motorista de Cabeza
de palo: com quem ele deve ficar na
gravação do filme pornô? A mulher loira ou a negra? Ou,
para onde ir com seu ônibus? Que caminho seguir: o da direita (que em
concepções arcaicas representa a via virtuosa) ou o da esquerda
(que em tais concepções representa o vício)? No filme, ele
escolhe sempre o caminho da esquerda: não é gratuito o fato de o
farol esquerdo estar sempre mais luminoso que o da direita.
No tarô – deixando de lado, mas nem tanto, a clara
referência sexual do título do filme principal, que se reduplica
no título do filme pornô, nele embutido – o naipe de
“paus” tem como elemento o fogo, que é o transformador das
coisas, e sua condição é a volátil (nem
sólido, nem líquido). Isso talvez explique a insistência de
imagens energéticas no filme: os faróis do ônibus, as
linhas elétricas de transmissão de energia, as lâmpadas, os
espelhos dos prédios e de um filme projetado sobre a
colonização americana, o parque de diversões iluminado, o
isqueiro manuseado pelo motorista, a fogueira que surge acesa ao pé de
um poste de energia em pleno dia claro (uma saturação
simbólica que, no entanto, não é excessiva), a
própria cena da filha do motorista que, ao tocar num fio elétrico
desencapado, perde a vida...
Além do fogo, o naipe de paus é simbolizado pelo
“bastão”: objeto de trabalho de Páris
que, criado como pastor, se utiliza do cajado para
conduzir seu rebanho. O bastão surge no filme em cenas como a do
espancamento do jovem pelos skin heads
com um bastão na mão; ou no momento em que o motorista é
fechado por um carro vermelho que tenta manobrar e atrapalha o percurso do
ônibus: para “resolver” o problema, o motorista saca do porta-luva um bastão de
ferro (elemento já transformado pelo fogo) e só não chega
às vias de fato porque o motorista do carro vermelho segue com seu
veículo, liberando a pista para a passagem do ônibus.
Com isso, Cabeza de palo
vai além do que pode sugerir a chamada “carta de
cabeça”, que ocupa a posição 3 na
disposição das cartas em forma de cruz céltica. Para
além de descrever uma situação sobre o presente imediato
do consulente (sexo, drogas, violência), o filme aponta para uma
reflexão sobre espaços, caminhos, fronteiras e a
incomunicabilidade humana.
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