A poesia não está nas palavras,
está no
mundo
Boris Schnaiderman
por
Brenda Marques Pena
Boris
Schnaiderman completa 90 anos de idade neste ano de 2007. Ensaísta
e professor universitário, ele foi o responsável pela criação do
curso de língua e literatura russa da Universidade de São Paulo
(USP), no qual participou da formação de uma geração de
tradutores. Ajudou a divulgar no Brasil poetas como Púchkin e
Maiakóvski, cujos poemas traduziu em parceria com os irmãos
Augusto e Haroldo de Campos. Tradutor de mais de 20 obras
clássicas da literatura russa, ele é conhecido também por seus
trabalhos de crítica literária. Boris Schnaiderman iniciou seu
trajeto como tradutor em 1944 com a publicação de Os Irmãos
Karamazov, de Dostoiévski. Traduziu, também, escritores russos
como Tolstói, Tchekhov e Gorki. O grande intérprete da cultura
russa para a língua portuguesa nasceu numa pequena cidade da
Ucrânia, em 1917, ano da Revolução Russa, e se mudou para o Brasil
quando era criança. Seu trabalho intelectual foi reconhecido em
2003 pela Academia Brasileira de Letras com o Prêmio de Tradução.
"O tradutor, na verdade, é co-autor da obra na língua de chegada",
defende Boris Schinaiderman no livro Tradução: ato
desmedido, último trabalho dele que será publicado pela
Editora Perspectiva. Durante uma conversa sobre poesia no
apartamento do tradutor em São Paulo, Schinaiderman falou do
processo de tradução coletiva experimentado por ele, os irmãos
Campos e Décio Pignatari e da importância de utilizar todos os
meios possíveis para a difusão da poesia hoje, assim como fazia
Maiakóvski.
Brenda
Marques Pena é jornalista e poeta com mestrado em Teoria
da Literatura pela UFMG.
Brenda Marques Pena -
Como foi a experiência de traduzir os escritos de Maiakóvski? O
senhor acredita que seja possível a tradução de poemas desse
projeto?
Boris Schnaiderman - Em princípio, a tradução é
impossível, mas ela tem que ser feita. Aliás, como afirmou José
Ortega y Gasset no estudo magistral, Esplendor y miseria de la
traducción (Madrid: Espasa-Calpe, 1943): "O homem só
realiza algo realmente grande, quando faz algo no campo do
impossível". A tradução é uma atividade paradoxal por excelência.
Ao lermos, num texto brasileiro, a palavra "floresta", logo pensamos
na floresta amazônica, um mundo de vegetação luxuriante e
diversificada, ou nas queimadas que a devastam atualmente,
enquanto um alemão, quando lê wald, vê mentalmente uma
floresta européia regular e uniforme, com as árvores agrupadas por
espécies. O trabalho que realizei com Haroldo de Campos mostra um
caminho para a tradução que, no meu ponto de vista, passa pela
transcriação, (termo utilizado por Haroldo). Nós mostramos isso ao
traduzir Maiakóvski. A tradução criativa é sempre possível, mas
tem que ser feita com muita ousadia e coragem.
E quanto se trata da
tradução intersemiótica?
Não é possível fazer a tradução intersemiótica sem ousadia,
preocupado em não alterar o original. Alguns filmes foram
realizados assim e só têm valor didático, pois como obra criativa,
quase sempre dão em uma "droga". Um exemplo de tradução
intersemiótica interessante é o filme mexicano A pérola,
baseado na novela de John Steinbeck. Na minha percepção, ele é
superior ao original. Os mexicanos conseguiram ver a cultura de
dentro. Um bom tradutor tem que extrair as características da
cultura e se aproximar do universo da língua. Ele tem que ser um
autor criativo capaz de criar realidades de acordo com a língua de
chegada. Não adianta traduzir Shakespeare linha a linha,
gramaticalmente e filologicamente correto. Essa tradução é
importante em um primeiro momento, mas não basta.
Os irmãos Campos
encontraram dificuldade em assimilar os textos poéticos em russo?
Uma noite os irmãos Campos e Décio Pignatari foram à minha
casa com as esposas. O Haroldo logo pediu para ter aulas de língua
russa comigo e o Augusto se matriculou no curso de russo da USP.
Então, eles estudaram a língua. O inglês, o francês e o italiano
eles sabiam para se comunicar, mas de um modo geral, eles
estudavam as línguas para abordar os textos e ter acesso aos
poemas. Quando começamos a trabalhar, o Haroldo me levou a
tradução de um poema de Maiakóvski. Ele tinha assistido na época a
três meses de aula em um cursinho de língua russa onde ele
aprendeu alguns rudimentos da língua. Um dos grandes poemas de
Maiakóvski escrito na ocasião do suicídio do poeta Sierguéi
Iessiênin foi traduzido pelo Haroldo com o pouco conhecimento de
russo que ele tinha e com a ajuda de textos auxiliares. Conferi a
tradução com o original e mexi muito pouco, havia pouca coisa a
observar. O trabalho de Haroldo de Campos resultou em uma
belíssima tradução para o português que figura hoje no livro
Poemas de Maiakóvski (ver fragmento do poema).
Traduzir Maiakóvski foi
um processo de criação coletiva?
Cada poema foi criado a quatro mãos e o resultado, como até
mesmo os portugueses reconhecem, foi o melhor que se tem na língua
portuguesa, em termos de poesia. A troca de experiência com outros
poetas é muito importante no processo de criação poética. Nós
trabalhávamos em uma grande harmonia. Certas soluções nós
encontrávamos juntos por telefone. Eu lembro quando o Haroldo leu
para mim o poema Carta a Tatiana Iácovlieva, escrito em
1928. Esse texto poético foi dedicado a uma russa, radicada em
Paris por quem Maiakovski se apaixonou. O poeta se suicidou na
década de 30, mas o poema só apareceu na década de 50. O
final que Haroldo de Campos encontrou para o poema é uma beleza em
português:
Venha cá pro abraço cruzado dos meus grandes braços desajeitados.
Você não quer? E dorme então à parte.
No hall dos vilipêndios marquemos mais um X
De qualquer modo um dia
vou tomar-te sozinha ou com a cidade de
Paris.
Quando o Haroldo conseguiu esta solução, me ligou numa
exaltação, num júbilo! É a alegria que se tem com a grande poesia.
Esse X não existe no original e, no entanto, dá uma ressonância e
uma presença física no papel que é uma beleza! Se Maiakovski
escrevesse em português, com toda certeza empregaria esse X, ele
não usou, mas a gente usa, está no espírito do poema.
Apesar de Maiakóvski ser
um dos futuristas que apoiavam entusiasticamente a revolução
russa, ele também foi perseguido. Por quê? Como o senhor avalia a
atuação do partido político na criação poética da época?
Havia um grupo de poetas que aceitaram a revolução
bolchevista de braços abertos, os outros eram vistos com uma
desconfiança muito grande pelo partido que era muito conservador
em termos estéticos. A Rússia era um país onde a poesia tinha um
peso muito grande, tanto que era o único lugar no qual se fuzilava
por causa de um verso. Um poeta importante como Nicolai Gumilióv
foi fuzilado. Mas, de um modo geral, o clima não era tão opressivo
como a partir de 1929-1930, com a ascensão de Stálin. Para a
cultura, esse período foi terrível. Era proibido, por exemplo,
escrever um romance que não se enquadrasse nas normas da
literatura do século XIX. A poesia tinha que ser aquela mais
tradicional. A prevenção contra as vanguardas já existia desde os
primeiros tempos da revolução. Com relação à poesia de Maiakovski,
houve uma contradição com o gosto arcaico dos dirigentes.
A poesia concreta demorou
a ser assimilada pelo senhor?
O
que conhecemos por arte moderna, hoje, era arte de esquerda na
Rússia. Eu demorei a assimilar a poesia moderna por causa da
minha formação tradicional como autodidata. Eu sou engenheiro
agrônomo por formação, então eu vivi no meio de pessoas que eram
alheias à literatura. Eu não tinha contato com intelectuais da
minha idade. No início, eu via a poesia concreta com muita
desconfiança. Os irmãos Campos, principalmente o Haroldo, me
ajudaram muito a conviver com o moderno nas artes. Em 1961, os
irmãos Campos, Décio Pignatari e o grupo paulista de poesia
concreta estavam preocupados com o salto participante. A onça
precisava dar o salto. Eles eram considerados alienados e o
momento pressionava por uma atitude mais revolucionária. Nessa
época, eu era autodidata em literatura e tinha uma formação muito
tradicional. Coincidentemente, eu estava me voltando para a
modernidade. Então, minha vontade de me abrir para a modernidade
encontrou a deles de alcançar o salto participante e assim nasceu
nossa colaboração.
Como o senhor vê a
difusão da arte poética hoje? A apropriação dos meios pelos poetas,
como fazem os concretistas e os autores de poesia sonora, é
importante?
Claro que a poesia tem que tomar formas variadas hoje.
Maiakóvski era um grande apologista desta prática de se aproveitar
de todos os meios de difusão possíveis. Ele utilizava o rádio como
meio e era um entusiasta da propaganda. O poeta russo defendia que
os russos tinham que aprender com os publicitários ocidentais e
que a propaganda comercial era um grande caminho para a poesia e
para o poeta que tinha muito a aprender, dizia o poeta russo no
início da década de 20, quando isso era considerado uma heresia
completa. Hoje em dia, para nós, já não é mais novidade.
Maiakóvski também é autor de roteiros de cinema que não foram
filmados. Ele era revoltado com os burocratas do cinema, mas tudo
o que conseguiu fazer foram filmes comerciais, ainda que ele tenha
afirmado uma vez: "Eu não vejo diferença em produzir cinema e
poesia, pois eu estou fazendo poesia e vocês vão filmar meus
roteiros". Woodie Allen em A rosa púrpura do Cairo utiliza
um processo de um roteiro de Maiakóvski. A presença do poeta era
muito importante, ele tinha um "vozeirão" imponente. A visão da
poesia do século XX é subverter os versos, como faziam os russos
da arte de esquerda e essa subversão se dava muito pela
performance. "A poesia não está nas palavras, está no mundo. Está
em tudo: na música, na pintura, na beleza do universo".
A SIERGUÉI IESSIÊNIN
(1)
Você partiu,
como se diz,
para o outro mundo.
Vácuo. . .
Você sobe,
entremeado às estrelas.
Nem álcool, nem moedas.
Sóbrio.
Vôo sem fundo.
Não, lessiênin, não posso fazer troça,
Na boca uma lasca amarga não a mofa.
Olho -
sangue nas mãos frouxas,
você sacode
o invólucro
dos ossos.
Sim,
se você tivesse um patrono no "Posto"(2). -
ganharia um conteúdo bem diverso:
todo dia
uma quota
de cem versos,
longos e lerdos, como Dorônin(3).(...)
(...) Pare,
basta !
Você perdeu o senso? -
Deixar que a cal mortal
lhe cubra o rosto?
Você, com todo esse talento
para o impossível;
hábil como poucos.
Por quê?
Para quê?
Perplexidade (...)
(...) Rimas gastas
empalam
os despojos, -
é assim que se honra um poeta?
-Não te ergueram ainda um monumento -
onde o som do bronze ou o grave granito? -
(...) "Nem palavra, amigo,
nem so-o-luço".
Ah, que eu saberia dar um fim
a esse Leonid Loengrim!(4).
Saltaria
- escândalo estridente:
- Chega de tremores de voz!
Assobios nos ouvidos dessa gente (...)
(...) Por enquanto há escória de sobra.
O tempo é escasso -
mãos à obra.
Primeiro
é preciso
transformar a vida,
para cantá-la -
em seguida.
Os tempos estão duros
para o artista:
(...) Que o tempo
cuspa balas
para trás,
e o vento
no passado
só desfaça
um maço de cabelos.
Para o júbilo
o planeta
está imaturo.
É preciso
arrancar alegria
ao futuro.
Nesta vida
morrer não é difícil.
O difícil
é a vida e seu ofício.
(Tradução de Haroldo de Campos)