A decadjncia das coisas: objetos, arquivos e gjnero em
Silvina Ocampo. Las dependencias de Lucrecia Martel
Alvaro Fernández Bravo, Universidade de San Andrés / CONICET, Argentina
Nação e cinema. Eu fui convidado a
participar deste painel para falar de nação e cinema. A primeira
pergunta que surge é: Qual é a imagem da nação que
o filme apresenta? Que representação da Argentina o filme torna
visível? Uma resposta poderia ser: uma nação de
ricaços vadios [holgazanes], que viajam para a
Europa ou Nova Iorque e não trabalham. São diletantes e bons vivants,
dedicam-se à literatura como quem joga golf,
fazem almoços sociais e não têm problemas financeiros.
“Me encanta verte trabajar”, fala Silvina a Jovita Iglesias, sua
empregada espanhola que depois escreveu um livro contando as intimidades de
seus patrões (publicado pela prestigiosa editoria Tusquets).
Também o mundo dos empregados espanhóis evoca uma outra
configuração da sociedade argentina e portenha de classe alta: a
presença de empregados estrangeiros, imigrantes europeus fugindo da
guerra na Europa, empregados pela burguesia. Trata-se, evidentemente, de um
mundo premido, passado, murcho.
Acho que o filme mostra um interesse pelo mundo dos ricos, mas com uma mirada
que evita clichés,
e se concentra nas relações interiores e os climas abafados. Esse
olhar não faz um julgamento político tradicional, do tipo luta de
classes, onde os ricos são vistos como exploradores. Aparecem melhor
outras configurações como as relações entre homens
e mulheres marcadas pela desigualdade:
Bioy Casaresocupa um lugar
paternal e opressivo, se autoadjudica
responsabilidade pela carreira de Silvina (“Yo, en parte, soy un poco
culpable de que Silvina se
dedicara a la literatura”) e a
mesma Silvina sempre se mostra ligada a outros dos
quais depende para sobreviver: empregados, marido, secretaria, irmãs.
Também as relações entre mulheres fazem parte do filme,
assim como as relações entre homens. Muitos dos testemunhos
são de escritores gays, como Juan José Hernández, mas
também Manuel Puig e Enrique
Pezzoni, pelo qual Jovita
se apaixona, naturalmente sem ser correspondida, são citados. Como ler
isso?
Voltando então para a questão de classe, vemos que
outros elementos ingressam para definir as relações humanas. Acho
que o filme nos faz sentir um pouco de piedade pela vida dos ricos, que
são apresentados como seres indefesos, dependentes dos empregados, incapazes de se valer por
si mesmos, que é como aparece retratada Silvina Ocampo, um pouco presa de
sua própria posição de classe. A enfermeira que cuida
dela, quando fica doente, e da qual ela quer escapar, permite pensar
também nessa posição de dependência pesquisada no
filme.
Estudos recentes da obra da Silvina Ocampo, que começa a ser resgatada hoje de seu lugar
oculto, algo apagado pelas figuras masculinas do grupo Sur,
começando pelo seu próprio marido, Bioy,
como o livro da Adriana Mancini, co-roteirista do filme, mostram a
relação entre Silvina e seu marido como
uma relação complexa, marcada também pela rivalidade, que
no filme só é mostrada entre Silvina e
sua irmã Victoria, a editora da Revista Sur. A marca feminista do filme acho que poderia ter sido mais
visível e radical, ainda que o lugar das mulheres enquanto dependentes
seja bastante notório. Assim, as falas de Jovita
e de Elene Ivulich parecem
um pouco complementares dos lugares dos personagens masculinos: Juan
José Hernández e Ernesto Schoo
são escritores e jornalistas, falam e se comportam como homens do mundo,
enquanto que Jovita e Elena
são mulheres subalternas, empregadas, assistentes de Silvina,
mais próximas do mundo das dependências, das áreas da casa
destinadas ao serviço, com as quais a própria Silvina
se identifica. O deslocamento de Silvina seria uma
forma de fazer mais complexos os binarismos de classe, introduzindo o elemento
de gênero para pensar a formação da subjetividade. É
a própria Silvina quem fala ser sua
própria empregada (mala) na viagem a Europa, quando tem que passar as
roupas para ela e seu marido.
Decadência. O filme apresenta uma imagem da nação decadente, tema
que aparece também no filme La ciénaga, um longa-metragem de Lucrecia Martel. Como falou Gonzalo Aguilar, a
decomposição, é um tema que teria recebido
atenção do novo cinema argentino, formado por estes diretores
jovens, muitos dos quais (incluída Lucrecia Martel)
filmaram seus primeiros filmes com menos de 30 anos de idade. Eles se
interessam pela decomposição social mas
rejeitam uma resposta fácil para entender o processo que a Argentina
atravessou nos últimos anos. Filmam olhando, como nos filmes dos
irmãos Kaurismaki, nos resíduos e
restos não assimilados da modernização buscando sua
composição interior, neste caso o interior da elite ilustrada.
Quando debatemos este filme com os membros do grupo A tela e o texto, eu falei
que achava certos paralelismos com a novela Um só coração
aqui no Brasil: trata-se da intimidade da elite modernista portenha, um setor
social que, de certa forma, já não existe mais, mas que foi
central na formação do campo intelectual de Buenos Aires nos anos
40 e 50. Silvina Ocampo, a
família Ocampo (e o próprio Bioy Casares, com seus ternos e gravatas) são um
pouco isso: seres anacrônicos e decadentes, que ficam isolados numa vida
fora do tempo.
A palavra dependência,
no título do filme, na Argentina é um significante complexo.
Alude aos quartos dos empregados, “las dependencias de servicio”,
como se chama ao quarto da empregada nos avisos de apartamentos à venda
dos jornais. Também faz referência a um significante
político empregado pelo peronismo: “liberación
o dependencia” foi o lema dos Montoneros, uma consigna da esquerda peronista nos anos 70. A dependência era
acusada de ser causa do atraso do país, da qual a nação
deveria se liberar. A dependência, então, é um termo
carregado de conotações negativas e incômodas para muitos
argentinos. Os escritores protagonistas deste filme: Silvina
Ocampo, Adolfo Bioy
Casares, Borges – que não aparece, mas é uma
presença constante – foram todos antiperonistas.
Inimigos das consignas peronistas e membros de uma elite que cresceu olhando a
Europa, talvez um pouco dependente em termos culturais. No entanto, é
difícil encontrar a presença da política: o filme
não faz referência alguma ao peronismo, e o termo
dependência parece, em princípio, esvaziado de
conotações políticas. Acho que não é assim.
A política é que se deslocou para outros espaços: as
relações pessoais, os vínculos entre homens e mulheres, o
âmbito privado e as pequenas ações cotidianas onde a
câmara olha. Silvina é profundamente dependente: de seu marido, dos
serventes, dos amigos, da família.
As coisas. O retrato da burguesia paira sobre as
coisas, a que dão identidade: móveis, quartos, apartamentos
luxuosos e decadentes, cantos do apartamento, roupas (as calças da Silvina compradas na Europa - depois Jovita
começou a coser para ela, são assim um emblema da
decadência dessa oligarquia que, talvez com a chegada do peronismo,
começa a não viajar tanto e comprar roupas na Europa e tem que
ficar no país fazendo sacrifícios...), livros. Eu achei
interessante como o filme se focaliza nas coisas, na casa, nos objetos
pertencentes a Silvina. Essa
mirada nos objetos faz parte da mesma inovação compositiva do cinema de Lucrecia Martel,
que evita clichés e foge dos primeiros planos
ou tomadas amplas e abertas. Se vêem tomadas de
mãos, pedaços de corpo, fragmentos que evitam a totalidade. A
cidade também é mostrada só em pequenos pedaços:
janelas, jardins, parques, fachadas de edifícios, todos
espaços delimitados e cerrados.
O arquivo. Resulta interessante, nesse sentido, pensar
no uso do arquivo. O filme oscila entre o documentário e a
ficção ou a poesia. Os textos de Silvina
iluminam suas obsessões: a natureza, a Pátria, as
relações perversas, tudo isso, e particularmente a
ambivalência das relações afetivas (tema de grande interesse
na filmografia de Lucrecia Martel) é central
no filme e atravessa a composição do personagem de Silvina. Assim, as fotografias, as velhas filmagens feitas
nas viagens à Europa, combinam com testemunhos contemporâneos (em
cores) e tomadas em preto e branco que são
talvez as mais interessantes: tomam fragmentos literários de Silvina Ocampo para construir o
componente mais criativo, que se combina com o material do arquivo. Assim, os travellings pelo apartamento, mostram a casa e os textos
para reconstruir a atmosfera onde Silvina imaginou os
seus contos e poemas.
Documentário e ficção constroem um retrato
onde são apresentadas fotos de Silvina. Achei
interessante a foto de Silvina com a mão sobre
o rosto, assim como outras (com óculos de sol, fotos de suas pernas),
onde é difícil localizar a própria Silvina1: seu rosto
fica afastado e sua imagem é produto de um tecido feito por materiais
heterogêneos – testemunhas, objetos, fotos velhas – onde
não está ausente a especulação que é a
matéria da memória.
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1 En otra foto se ven sus piernas.
En alguna se la ve con
óculos. Seu rostro não é exhibido com muita freqüencia.
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