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Lingüística e Filosofia da Linguagem
Livro Conceitos de Lingüística Fabular
Vida: 1960, 1961

CONCEITOS DE LINGUÍSTICA FABULAR – Parte II

 
 

Kriterion. Vol. XIV, n° 55-56, 1961.

 
 

1.

O autor planejara, como trabalho seguinte, um comentário, pedisseqüente, ao Curso de Lingüística Geral, de Saussure. Por falta de ensejo, não o pôde reduzir a matéria legível. Tendo sido assim, volta hoje, abusivamente, com algumas reflexões fundamentais. A escusa que alega está em dizer que a perspectiva, sendo nova, melhor se deixará ver com repetições, a exemplo do que acontece quando se variam tomadas fotográficas do mesmo objeto.

Da comprida insistência, renovadora de enfados, apresenta aquela escusa de Pascal, ao desculpar-se de ter sido mais longo por não ter tido tempo de se fazer mais curto.


2. FÁBULA

No princípio era o OBJETO. Havia o sol o monte o rio a planta a ave o peixe o quadrúpede o homínida. Mas eram coisas ainda sem nome, adhuc sine nómine res, porque ainda não existia o SUJEITO.

Um dia, na paciência genésica das origens, dois homínidas começaram a manifestar, pela voz, a representação de uma idéia. Eram eles Primo e Secundo. Aí começaram a ter nome o sol o monte o rio a planta a ave o peixe o quadrúpede. E o homínida se fez homem, et humo factus est, ao se fazer SUJEITO, frente a frente com O OBJETO.

A esse objeto ele foi transformando em "reais", internados no espírito, o seu espírito de Sujeito. E esses reais eram repercussões dos procedimentos do Objeto. E essas repercussões eram associáveis a vozes com que a fala de Primo, dirigida a Secundo, foi sendo capaz de veicular as imagens do Universo.


3.

Nasce o homem, não como Primo, o ser que sabe, mas como Secundo, o ser que aprende. Como Secundo vivencial, recebe a vida e, como Secundo fabular, a notícia dela. Quando chega a Primo, já está cheio de imagens feitas, cheio de um real não seu, mas de seu clã.

No encontro direto com o Real, temos a Vivência. Nos encontros com Primo, a convivência.

A Vivência implica reações do ser fundamental, repercussões que atingem o homem biológico, tingidas de matiz inefável. Coisas assim como as que devem ter passado entre o poeta e a fera que lhe impedia subir a encosta: al cominciar dell'erta... la vista che m'apparve dun leone.

Em horas assim, a máquina biológica dispara energias de fuga, embora talvez reduzidas a apenas um frêmito, quando Secundo, já condicionado, possui recursos de reação aprendida.

Soma de vida e espírito, o homem não é capaz de filtrar bem a Vivência, este circuito repercussivo que se dá entre o Sujeito e o Objeto. Faltam-lhe também ensejos de autonomia: chegado à idade de consciência, chegado a homem, vê-se, por inevitável condição, modelado à imagem do meio. Homem isento, que ficasse imune à morfologia social, não seria um homem, seria um bruto, sem consciência.


4.

Pode imaginar-se um homínida emitindo sons, à hora teatral de seu encontro com o objeto, sincronizando alguma reação de procedimento com alguma espontânea reação vocal. Depois, no tempo, sob efeitos de uma iteração socialmente cooperativa, a reação vocal foi adquirindo capacidade veicular. De emissão condicionada à presença material do objeto, a emissão vocal foi passando a signo condicionador da presença mental do objeto.

Pela reação fabular, o homem iniciou a sua via de hominização, desenvolvendo um segundo sistema de estímulos: além de o provocar a coisa presente (signo aderido), fez-se também provocável à representação mental da coisa ausente (signo liberado).

Na área da reação vocal em presença da coisa, foi sendo criada a fala pragmática, uma fala circunstancial e adjacente, parcamente fabular, mais visual que auditiva, cheia de um procedimento mais teatral que nocional. Era o começo, ainda inseguro, da intenção de mostrar o que tinha no espírito, o primeiro exercício de exprimir-se, interpretando o mundo.

Na área da reação fabular sem a coisa presente, foi sendo criada a fala teórica, a fala propriamente dita, a fala de um ser que cogita e move no espírito as imagens do mundo.


5.

Na paciente marcha da subida, o exercício da fala teórica foi abrindo vias de seu enriquecimento. Entrando em regime de motivação, ao proceder por semelhança e contraste, a morfia fabular ganhou a linha de força da analogia, sucessora da criação fonossêmica. Superada a fonossemia, estava superada uma primeira fase, espontânea e plástica, mas infiel e pobre, que tentava reproduzir, articulada em sons, sugestões auditivas de objetos nomeados.

Com o exercício da fala teórica, o progresso hominizante pôde insistir nas lembranças tradicionais, ordenando vivências que eram distribuídas na duração. Deste modo, e devagar, foi sendo criado o espaço e o tempo, essas duas categorias subtis, que ainda hoje escorregam subtis, entre dedos filo sóficos.

Não poderia caber, uma tal fecundidade, na emergência fugaz da fala pragmática, sintonia vital de um fazer cheio de procedimento e teatro. A hora da fala pragmática é uma hora de estrutura infrafabular, anterior ao molde constituído por sujeito e predicado. É sinal dessa estrutura o que ainda hoje se reflete na frase imperativa, que só tem predicado, e na frase expansiva de certos moldes, que nem predicado tem.

Mas a fala teórica, vinda em hora de lazer, pode gastar reflexão e estesia, ou no recordar de um feito ou no planejar de um faciendo.

Finalmente, no dia em que se visualizou como fala escrita, começou a estender pelos séculos o diálogo da humanidade.

Veículo da reflexão, a fala teórica hominizou o homem, repartindo os favores de um entendimento que ela, se não cria, manifesta.

Redistribuindo os frutos de uma experiência participada, ela ensejou a mudança de sentido, no sentido da tensão entre Sujeito e Objeto (hominizacão).

Sobre homem não-aristotélico, de Sujeito mal instalado e medroso, o Objeto exerce atrações de simbiose, feito um centro de gravidade. O homem aristotélico, porém, ao invés de sair para o Objeto, começou a trazê-lo para dentro de si, elevando o Sujeito a centro criador, onde o mundo, existindo por re presentação, é pensado por reflexão e manifestado por fala.

Ordenando o Objeto, cujas forças naturais servilizou, a humanidade conseguiu cultura, isto é, sibiliberação progressiva. Só não tem conseguido mais civilização, isto é, inteligência social, porque está atrasada na ordenação do Sujeito.


6.

Poderia ter sido esta, a escala da ascensão hominizante:

1. o a bimanização do quadrúmano, favorecendo a autonomia dos membros anteriores, livre a mão do homo faber para tactear a forma e a ductilidade das coisas;

2.° a verticalização da postura, ensejando a, visão horizontal, que tacteia longe o mundo, e a redisposição craniana do cérebro, registro das aferências sensíveis, internadas pela retina do homem que olha, homo íntuens;

3.° a sintonização de idéias e vozes condicionadas, veículo do comércio mental e ocasião de socialidade para o homem fabular, homo loquens.


7.

O dom fabular discriminou a espécie. O homem progrediu porque aprendeu a manifestar-se. Não lhe bastariam procedimentos como o dos brutos, cuja continuidade interior não se mostra, razão por que lhes conhecemos a reação vital, mas ignoramos a vivencial. Adstrita a expansões instintivas, a vida irracional carece de expressão liberada, para suas representações. Quando muito, uma simbolização automática de procedimentos, como os da abelha. Ao bruto, falta-lhe uma expressão socialmente instituída. Falta-lhe o recurso fabular.

Quanto ao homem, transformou o real em objeto portátil e meneável. Trocando a presença da coisa pela presença mental do símbolo, ficou livre daquela servilidade aborrecida, para os que vivem aqui-e-agora, sob a coação presencial do estímulo aderido. Liberado o estímulo em representação mental, em energia potencial, o homem foi descobrindo a economia das respostas. A expressão fabular disciplinou o instinto a inteligência a razão a consciência.

8.

A fala veicula representações, mas só a vida as faz compreender. O entendimento inter-individual não é de origem fabular mas de origem vivencial. Secundo entende Primo, não pelo que diz mas pelo que é, com a mesma inteligência com que entende um cão ou qualquer irracional.

Mas a fala, se não cria, manifesta o entendimento. Ganhou em energia reflexiva desde que transformou, em poder analógico e simbólico, o poder mímico animal. Desde que trocou o gesto de apontar no gesto de falar; o servil e estreito, condicionado à presença, pelo serviçal e portátil, veículo da ausência.

É de Cassirer a gradação que vai de mímico a analógico e simbólico. Aceitamos tal imaginação por acharmos que o homem deve ter sido: primeiro, sensível e fonossêmico, repetidor de sugestões auditivas; depois, expressivo e plástico, desenhador fabular de intuições; finalmente, descobridor de relações e ordenador do mundo.

Hegel já anunciara essa deveniência, numa declaração que se traduziu bem ao francês: "Ce que nous sommes nous le sommes devenus". O que somos, nós o ficamos sendo.


9.

O homem, desde que nasce, vem banhado, como Secundo vivente, nas repercussões do Real, e nas melodias da fala materna, como Secundo fabular. Inserto no Real que o rodeia e nutrido nos reais que lhe transmitem, vai crescendo. Entre a função de Secundo, em que nasce, e a de Primo, a que chega, medeia a digestão espiritual da vida. É um ruminar de falas, que dilui e destina os valores achados, transfeitos em valores veiculares da fala ventura.

Esse ruminar contém atos de operação vivencial; ou melhor não são atos de operação mas atos de paciência, atos de vida infusa. Ocupado não mais que no existir, alheio a plano ou previsão, chega um dia em que Secundo se vê Primo, ao se ver dono da habilidade fabular e dono de uma filosofia da vida.

Difere, porém, desse ruminar espontâneo, o cuidado de quem busca a posse racional da língua, através de atos de operação, atos de consciência reflexiva, no curioso e maduro esforço de superar a posse meramente vivencial.

Quem estuda o patrimônio fabular imerge num limbo de fantasmas potenciais, através de sutil anamnese. Tal exercício requer plenitude homínica, plenitude das faculdades aristotélicas. Empiricamente tentado, ao longo de dois milênios, espera ele ainda melhor metódica, pois ainda espera uma libertação que o salve da mítica vocabulista.


10.

A fala é de Primo e a língua é de Secundo.

Diz o Curso (de Saussure) que a fala existiu primeiro e que a língua se aprende ouvindo,(p.37), mas diz também, (p.1O5), que a sociedade só conhece a língua como um todo hereditário, cuja origem não se perquire.

[Nota do organizador: Curso é o nome de que o Autor se vale - aqui e alhures - para se referir à obra de Ferdinand de Saussure, Cours de Linguistique Générale, Paris: Payot, 1960 / Tradução brasileira: Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, EDUSP, 196.]

 

Não tem sentido essa metódica renúncia, que foi nociva à Escola Francesa. O assunto origens era assunto vedado, estatutariamente, pela Société de Linguistique de Paris; e dela fora secretário, em 1882, Ferdinand de Saussure.

No positivismo do mestre, o enunciado língua e fala tem sentido de precedência, haseado na observação de que o indivíduo vem sempre depois da língua. O preconceito de que a língua é social e a fala é individual, fechando-lhe a boa via, deu em colheita de enganos, quando apoiou conclusões nessa afirmação da precedência, uma generalidade que devia refinar e reduzir a seu termo. A verdade é que um indivíduo, portador de língua, preexiste a outro, futuro portador, mas a língua não pode preexistir ao indivíduo. A língua do pai já existia antes da língua do filho, mas essa não poderia existir antes deste. Se passou, como passa, do pai ao filho, só passou a ser língua do filho depois que este a criou no espírito,, vivencialmente, nutrindo-se de tudo que nutre, em cada um, o seu Sujeito.

Além de não preexistir ao indivíduo, a língua vem sempre depois da fala. Saussure o disse. Mas, vendo o social na língua e o individual na fala, não viu que a língua é um patrimônio socialmente criado no indivíduo. Se houvesse reparado nisto, seu binômio seria expresso na ordem natural - a fala e a língua.

Na verdade, preexiste o homem, com sua capacidade. Preexiste Secundo, na geração menor, descendente de Primo, na maior. Filtrando falas deste, cria o outro a sua língua. A fala é de Primo e a língua é de Secundo.

Quem desmonta falas ajunta língua. Não a língua, essa vaga referência enganosa, mas a sua língua. Nas falas se mostra a língua e nelas a tem de ver o lingüista. A lingüística da língua pela língua é uma falaz inversão do século XIX, descobridor de externidade social, autogênese, autonomia, sibi-sistência, não num ser mas num procedimento ou recurso, internado na alma e no tempo do homem.


11.

A língua nasce da fala e a fala nasce como outra fala, vazada no molde veicular da expressão. O estímulo fabular é por frases. E não por palavras, como supõe o Curso, (p. 28), ao iniciar o desenho do circuito fabular, imaginando que um conceito dispara, no cérebro, a sua imagem acústica.

Uma frase não é feita de vocábulos associados, mas ao contrário: os vocábulos é que foram feitos de frases dissociadas. Conceitos como frase, palavra, sílaba, fonema, são concreções de exame tardio, no esforço de tomar consciência da língua. São frutos reflexivos de uma análise homínica, passo de nível aristotélico, largamente posterior à sedimentação fabular daquele exercício que cria frases e não elementos. Muito antes da consciência da língua está a língua, um todo complexo mostrado nas falas, quando sai da boca, na hora do dizer, o que nascera no espírito, à hora de ouvir. Quem fala emprega estruturas feitas e não estruturas faciendas. Refletindo em tais estruturas, tratadas por anatomia, a consciência da língua nos revela que o sintagma se compõe, de vocábulos e morfemas. Revela-nos, pois, que o vocábulo saiu da frase e não a frase do vocábulo.


12.

O homem antigo deve ter sido um animal cerrado sobre si, atento ao vital, escasso no vivencial, ativo no instintivo. Imerso na circunstância do Objeto, devia ser um Sujeito mal instalado e medroso. Ante os efeitos de um real ainda não construido na consciência, era uma caixa de repercussões inassimiladas, em cotidiano regime de "alteração", dentro de um hic-nunc-ismo estreitamente vizinho da irracionalidade.

Entretanto, na longa dieta condicionante, socialmente vivida e fabularmente veiculada, foi sedimentando-se na espécie a matéria de sua hominidade. Primeiro atingiu a cota pré-aristotélica, nível do homem de razão folgada, um ser muito concreto e aditivo, inabstrato e fantasioso, mítico e simpático. Sua teoria do real não queria entender o Real mas somente propiciar aqueles ocultos poderes que influem o bem e o mal, accessíveis ao procedimento mágico, ao vigor de uma fórmula bem recitada. A fala, sobretudo operatória, tinha dois fins: inserir a vontade cotidiana (traduzida na voz dos mais velhos), no jeito de fazer um faciendo; inserir os anseios do grupo nos desígnios dos poderes sobre-humanos. Era uma fala pragmática e simpática.

Na base desse homem anterior, carregado de vivências mal refletidas, a intelecção helênica foi modelando o tipo do homem aristotélico, o homem de razão ativa, o homem que ordena o real com intuição no objeto. Exibida em lúcidas levezas da fala teórica, desenvolveu-se a cogitação filosófica. Desenvolvendo-se o regime da fala escrita - essa mera visualização da fala teórica - foi ampliado o ensejo da transmissão fabular, tornada capaz de vencer o espaço e o tempo.


13.

A fala coloquial, dirigida a Secundo presente, é uma fala presencial.

A fala escrita, dirigida a Secundo ausente, é uma fala ausencial.

A fala presencial, apoiada no favor das alusões teatrais, das subvenções mímicas e tonais, pode ser econômica no seu contexto fabular, despendendo pouca língua. Ajuda-se de oportunidades, recorre a subentendidos, vale-se de inteligências ocasionais.

A fala ausencial, privada de presenças, reduzida à visualização do seu texto, obriga-se ao dispêndio fabular, compensando com vozes, nos limites do possível, a carência dos contextos teatral e mímico. São estes os dois contextos da riqueza coloquial: no primeiro, a interpresença de Primo e Secundo, a presença das coisas, inclusive talvez a da coisa do assunto; no segundo, a fala de corpo dos atores - o gesto (que sublinha ou dispensa a palavra) a veicularidade semântica da melodia prolatória, etc.

Projetando a virtude do milagre helênico nas áreas do tempo mediterrâneo, a fala escrita fez do latim o veículo da hominização ocidental. Sem ela, a Europa teria ficado a vegetar na sibi-mesmice rasteira do nível pré-aristotélico. Com ela, a evolução confronta falas que vão de Rui a Cícero. levanta estados de língua, arma planos sincrônicos em que vai ordenando, no tempo e no espaço, a perspectiva diacrônica. E a lingüística, balizando áreas, evidenciando sucessões, estendendo a continuidade, chega ao poder de configurar a imagem da língua indo-européia, com quarenta séculos de comprovação ou indício.


14.

O ato fabular instalou sociedade entre Primo e Secundo. Instituída a fala foi instituída a sociedade, institutriz do homem, que ela nutre na reserva de suas imagens e imaginações tradicionais.

Avalia-se o grau de hominidade do indivíduo medindo-lhe, na superação do biológico, a vantagem da sua cota patrimonial, referida à cota da plenitude social. Na ciclagem biológica do meio, está um efeito que varia com a idade do indivíduo: infante, criança, etc. Na cota da plenitude social, vê-se o nível da energia espiritual, a densidade plástica do esforço comum, na tarefa de superar o cotidiano.

Através da transmissão fabular, Secundo, quando chega a Primo, já está cheio de condicionamentos. Sobre a consciência reflexa, que imerge na simbiose, a consciência reflexão, uma superestrutura homínica, socialmente constituída. Nela se representa o real de Primo. o real fabular, um condicionamento de repercussões, uma certa imagem do Real, não o Real em si. Este, o homem não consegue definir. Mesmo o seu real, o seu mundo, não é o homem que o define e sim a humanidade, na lenta filtragem das lentas vivências.


15.

No ato verbal da comunicação está a matéria da lingüística, pois da fala vem a língua; ex fábula lingua. Essa translação axial tem de ser feita, passando a lingüística a ser fabular, em vez de ser vocabular. É tempo de a ciência desprender-se do seu velho fisicismo e dessa enganada primazia da língua. É tempo de mudar a hierarquia, ordenando, como termos do binômio, a fala e a língua.

Empenhado na verificação do real e na riqueza de seu racionalismo empírico, o século XIX se deixou absorver pela quantiação do universo e da vida. Animado de progresso mecânico, embora sem melhor progresso ético, pensou que estava chegando ao núcleo do mistério.

Seu tepor racional influiu nocivamente na lingüística, inspirando o evolucionismo de Scheicher bem como o neo fisicismo de Leipzig. Aceitando nisto o fisicismo helênico, a nova ciência continuou a tratar o vocábulo como nome da coisa e como centro da língua, conceituada esta como um dom natural, regido de leis suas, leis mecânicas.

Armou-se aparência de um bom silogismo: se a língua é um dom natural deve ser estudada como objeto natural. Mas a língua não é um dom natural e sim criação do homem.


16.

Conhecer é ordenar a representação mental do objeto, aferencialmente internado no espírito. Nos limites da aferência sensível, até o animal homem o homem conhece, embora sem meios bons de conhecer a pessoa homem. Conhece o homínida, o antropóide básico e não conhece o homem. Vê a máquina biológica mas não sabe que é que faz do homem um homem.

Explicando o animal, a antropologia imaginou momentos evolutivos como a estação vertical, a bimanização, a transformação craniana, a sintonia fabular.

Partindo do bímano ainda sem fala, ens álalum, é de imaginar que só atingiu o plano humano depois que aperfeiçoou sintonia entre um signo fabular e uma imagem da coisa, passando de animal expansivo a animal expressivo; o ens álalum trocado em homo loquens.

Desde esse dia, o dom natural da linguagem, exercido em falas, começou a frutificar em língua. Foi sendo criado o que Pavlov chamou de segundo sistema, sobreposto ao primeiro; neste, comumente biológico, o animal reage ao estímulo da coisa presente (signo aderido); naquele, o homem aprendeu a reagir ao símbolo mental da coisa ausente (signo liberado).


17.

Após o início da habilidade fabular (várias centenas de milênios) o homínida alcançou, ontologicamente, o plano antrópico da existência. O exercício entre Primo e Secundo foi sedimentando patrimônio e a humanidade foi criando a língua e a hominidade; a reação biológica ao estímulo da coisa foi sendo aliviada em reação ao símbolo da coisa; a emergência vital da presentacão foi sendo melhorada em possibilidades vivenciais de representação, noticiável em falas.

Enquanto a experiência vital, biologicamente peculiar e intransitiva, apenas admite contiguidade gregária e mimicismo de procedimentos, a experiência vivencial é um ensejo de criação de procedimentos, uma promessa de lucro à sociedade. Em vez da resposta biológica, primária, a variante sobrebioiógica, secundária. Em vez da experiência reflexa, a experiência reflexiva, com sua teoria dos procedimentos, fundida no cadinho das vivências.

Internada a repercussão do mundo no recinto antrópico do eu, aí se foi ela ordenando, à luz da consciência, em exercício de conhecimento. Sobre a base comum, foi erguida uma estrutura espiritual. Sobre o paléio-encéfalo desenvolveu-se o neo-encéfalo. Surgiu dentro do homínida a pessoa do homem.


18.

Absorvida na quantiação, a metódica do século XIX olhou a menos a qualidade da tradição filosófica, sonhando diluir a ética na fisiologia. Dizia junto à mesa o anatomista: "Rebusquei o corpo, escalpelando, e não achei a sede da alma". Entretanto, mais discreto, confessava Du Bois-Raymond, em 1872, o nosso "ignorábimus".

Era uma declaração de quem não via jeito de submeter o espiritual à aditividade quantiável do mundo físico, numa ciência desarmada de escala para a pessoa do homem, sua consciência, seu espírito.

A euforia da exatidão contaminou a lingüística, posta em busca de métodos naturais e relações físicas necessárias. Quis afirmar a lei, sob figura de lei fonética, ao ver-se ante a espontânea transformação prolatória do exercício articular, sob o limitado acaso dos deslizamentos, no deslizamento dos talvegues fônicos.

Esse mau início naturalista impediu que fosse vista a criação humana, o cunho intencional moldado no espírito, no mundo interno da representação e da vivência, laboratório de emoções vontades e fantasias.

A única lei natural que rege a evolução fônica está na lei da capacidade prolatória, campo e limite do aparelho de fonação.


19.

Se conhecer é ordenar no espírito o cognoscendo, isso quer dizer que existem dois campos - o campo de fora e o campo da consciência, o campo do mundo e o campo do homem. Fora, no campo do mundo, estão as coisas naturais, capazes de repercutir sensoriamente, à hora dos encontros vitais, no foro interno do homem, no engenho das vivências, elaborador de representações mentais. Dentro, um endocosmo de repercussões elaboradas, a imagem vivencial dos reflexos de fora.

Campo do homem, campo da consciência, campo do eu, campo do Sujeito; campo do mundo, campo de fora, campo do não-eu, campo do Objeto.

20.

A lingüística do século XIX, querendo fazer de seu assunto objeto natural, não estava preparada para duvidar se ele devia entrar no campo do Sujeito ou do Objeto. A ciência geral ainda não se recompusera do susto de haver imergido o homem na evolução. Continuava espantada de o ver subindo, na escala zoológica, em lugar de o ver descendo das mãos de Deus. Refocilando um pouco no sadismo de se afirmar animal, de se reincluir no rebanho, o homem esqueceu-se um pouco de que já era homem, ordenador do mundo. Esta, pois, a razão de a lingüística não haver duvidado: a metódica do século não discriminara os dois campos. Tudo era matéria e objeto. Não havia a ciência do Sujeito e a ciência do Objeto.

Hoje, porém, meditando no assunto, o lingüista pode ver que a língua não é, por exemplo, um real biológico, esperando soma entre as coisas, mas um valor mental, um recurso da expressão do homem. Não é matéria nem corpo, mas sintoma de um procedimento. Não é objeto de ciência física ou de ciência biológica, mas de uma outra ciência, muito atrasada ainda, a ciência do homem espiritual, a ciência da pessoa do homem, a ciência do Sujeito.

Ser cognoscente, ordenador do Objeto, o Sujeito pode também conhecer-se, ordenando-se e medindo-se, dentro do homem biológico em que existe.

O homem biológico, base física do Espírito, mede-se como objeto, pois é máquina vital; mas o Espírito, que nele existe, mede-se como Sujeito, ser cognoscente.

Medir um Sujeito é balancear-lhe as representações mentais e as vivências. O mais grave é que nenhum Sujeito pode medir bem outro Sujeito, pois só se pode medir a si mesmo, por anamnese. Sobre o outro, fazemos atribuições de analogia, mediante sinais do seu proceder e amostras do seu exprimir-se. Isto fazemos, porém, avisados de que o homem é um animal mentiroso, residualmente regido por impulsos do disfarce biológico. Além do mais, algumas exibições emergentes, do outro, estão longe de conter a imponderável substância da sua continuidade vivencial.


21.

O jeito que o Sujeito tem de se medir e pesar é pensando. O pensar é por frases. A frase vem de um recurso expressivo chamado língua. Portanto, a língua é recurso de um procedimento mental do Sujeito.

Quem pensa ordena um mundo internado no espírito, feito de repercussões do mundo de fora. É assim que pode preparar uma atividade, planejando, num procedimento vivencial, o venturo procedimento vital.


22.

A língua não é um real integrável no mundo e sim um valor integrado na consciência.

A fisiologia da fala, capitulo da biologia animal, é serviço definitivamente secundário para a lingüística. Não vamos dizer que o progresso da fonética foi inútil, pois que ela tem sua beleza e tem, sobretudo, um vantajoso sentido didático. Infelizmente, porém, ela não passou de hipertrofia metódica, fruto de um pecado original. Um pecado que marcou o mecanicismo neogramático, passou por Saussure, agravou-se em Trubetzkoi, e veio espraiar-se no fonologismo de Copenhaga mais o fonemicismo dos antimentalistas.

O que a lingüística salvou da falência está no seu incansável trabalho de campo, sua formidável colheita de falas, seu paciente exame de morfias, diacronicamente mostradas, na perspectiva histórica. Pensando que ordenava "línguas", ajuntou no celeiro um grande cabedal de "falas".


23.

A língua é um recurso criado pela humanidade, paulatinamente enriquecido, ao longo da vagarosa marcha hominizante. Amostra-se nas falas do homem, um ser histórico por definição.

Quem interpreta falas interpreta o homem, visto como Sujeito. Quem analisa falas filtra uma língua, patrimônio de moldes e morfias que o tempo afeiçoa, em ritmo com a energia espiritual do grupo.

Se vigora no grupo a mente aristotélica, será grupo enriquecido no esforço de ordenar o real, na preocupação do Objeto. Se tem mentalidade para-aristotélica, será de gente mais recolhida sobre si, mais internada com o Sujeito, como acontece entre orientais. Mas ainda existe o nível pré-aristotélico, a mentalidade do nativo tribal, homem de especificação retardada, com o Sujeito ainda não desprendido do Objeto, submisso a uma agarrada tradição oicológica e mítica, adjacente às dimensões do aqui-e-agora, privado de imersão histórica, o mesmo que não ter dimensibilidade espácio-temporal.


24.

Só o homem aristotélico pode chegar ao nível do homem histórico, já adiantado no caminho de se realizar, mediante o esforço do que tem sido: uma expressão espacial em busca de tradução temporal.

Por isso também, só a língua do homem ocidental oferece imersão histórica, imersão no tempo. Digo a língua e não as línguas, referindo-me à língua indo-européia, historicamente rastreável, sobretudo na linha mediterrânea, em recessão de quarenta séculos, a partir dos atuais dialetos até àquele entroncamento de convergências que, já na área do homem sem história, ainda apontam, como seta de sentido, à redução metódica. Para trás, inescrutáveis, escondem-no multimilênios de tradição fabular.


25.

A ciência da língua é uma ciência do espírito. Interessa à psicologia, pois a fala é um veículo da alma. Interessa à sociologia, pois a fala socializou o homem. Interessa à história, pois a fala é uma expressão do homem, fazedor de história. Interessa finalmente à filosofia, síntese de explicação do real, feito de repercussões do Objeto no Sujeito, pois a fala interior mostra ao homem tais vivências.


26.

Estrato homínico.

No seu plano elementar, a vida é feita de automatismos biologicamente instalados no indivíduo, sob dieta de adaptação ao meio. Consta de predisposições cíclicas, num teor de procedimentos hereditários previamente perfeitos no seu alcance: vindo o estímulo, vem a reação não aprendida. Um indivíduo biológico não parece um ser que vive mas apenas um mecanismo animado, um veículo da vida que nele existe e nele se realiza, com um programa que é dela e não dele, um programa que ascende, lento e longo, do protozóon ao bípede reflexivo.

Confronte-se com a do inseto a memória do homem. A memória do inseto é específica, hereditária, acabada. Para o estímulo venturo, já tem feita a resposta, cheia de virtualidade mecânica, pois já está realizada, embora esperando realização. Na memória do homem, porém, existe uma virtualidade condicionada a realização realmente futura, mabilizável na hora do estímulo, com reagentes vivenciais emergentes.

Prefigurar um procedimento do homem é coisa que não cabe em esquemas exatos mas em áreas alargadas por franjas de oscilação. O caso é como na história daquele bispo francês, que era homem da Igreja mas também homem da Corte. Nesta, um dia, o apertou um outro cortesão com uma forte pergunta. Primeiro lhe recitou São Mateus, 5.39, naquele passo em que Cristo manda oferecer a face esquerda a quem haja golpeado a direita: si quis te percússerit in déxteram maxillam tuam praebe illi et álteram. Em seguida, perguntou àquele cristão e bispo o que faria, se chegasse a tal situação como a prevista no Evangelho. E este respondeu: "Sei o que devia fazer mas não sei o que faria."

Na memória do homem, recamando o estrato biológico dos condicionamentos vitais, cresce e pode crescer o estrato social dos condicionamentos vivenciais. Sobre o plano dos automáticos reflexos, está o plano da reflexão, área das elaborações reminiscentes.

Em termos de vitalidade, o mundo é um estímulo que atrai ou repele. Em termos de vivencialidade, faz-se Objeto posto ante o Sujeito, como figura residual e causa graduada de empatias, simpatias e antipatias ou, por outras palavras, de comunhão, contacto e repulsa.

Como Secundo vivencial, enquanto vai internando repercussões, o homem vai também gerando o seu pathos individual. Como Secundo vivencial e fabular, elaborando representações, vai gerando o seu ethos, espelhado na visão tradicional que a sociedade lhe infunde. Assim a humanidade, num ritmo crepuscular de ascensão, foi afeiçoando a sua hominidade, com reflexos, no mundo de dentro, das repercussões do mundo de fora. O homem vive desse mundo, instalado no plano do Eu, mas em secreta simbiose com o plano do Id. A transiente emoção primária do seu pathos, ele devia sobrepor, como seguro regime, o seu ethos, feito de beleza moral, infelizmente mal entrevista e menos eficaz, pelo fato de a vida, caprichosamente inconstitucional, insistir no conluio distribuindo com o Id os poderes do Eu. Junto à pouca firmeza das imagens da consciência, vige a mal discriminada franquia das imagens oníricas, razão de o poeta afirmar que somos feitos de sonhos: We are such stuff as dreams are made on. (The tempest, 4.156).


27.

Esse mundo configurado no espírito é que entra na sintonia fabular, com dupla representação: a de quem fala e a de quem ouve. A imagem que Primo expõe, apenas se expondo, não passa ao mundo interno de Secundo; não chega até lá o alcance da fala emitida, mas só até a porta do ouvido. Na fala emitida, o veiculado é um sentido Primo. Na fala recebida, cede lugar ao sentido Secundo. Por isso é que o ato fabular é apenas sintonia. Emite mas não transmite.

Por isso também, o ato fabular tem de ser posterior a alguma experiência que haja instalado, nos interlocutores, a imagem sintonizável. É, pois, um ato revivencial.

Suponhamos que os interlocutores estejam mentando um mesmo objeto, de ambos conhecido. Um cão por exemplo. Embora do mesmo objeto, a sintonia fabular conterá duas representações, a de Primo e a de Secundo, anteriormente infundidas, cada uma em sua vez, em atos individuais de vivência. No caso de Secundo desconhecer o cão mentado por Primo, a sintonia fabular perderá em dimensão e densidade, levando Secundo a supor, no lugar do cão mentado, um cão análogo. Se Primo descrever bem o seu cão, Secundo lhe poderá construir a imagem mental, a ponto de, no futuro, o poder identificar, isto é, "re-conhecer". Isso, não porque Primo o descrevera, e sim porque Secundo tivera força de analogia, ao construir a imagem mental. Caso lhe faltasse conveniente experiência analógica, teria falhado a descrição e a sintonia.

O ato fabular é lamentavelmente imperfeito: a fala recebida não tem as dimensões da fala emitida. Secundo acorre, não para a imagem de Primo e sim com a imagem de Secundo. Felizmente para a sintonia, tais imagens podem ser muito análogas, firmadas na iteração vivencial do cotidiano.


28.

A fala é uma expressão do homem, não do mundo: traduz a repercussão e não a coisa. Nem nomeia a coisa, mas imagem dela.

Essa imagem da coisa é imagem múltipla, repercutida em milhões, tempo em fora. Imagem recamada, pacientemente tradicional, serviço de muitos Primos em muitos séculos.

Essa imagem tradicional é repercussão de um Objeto que existe e persiste, lá na sua lei e feição, enquanto vai mudando ante ele o Sujeito, este fruto vivencial que o tempo sazona, incerto e lento, com seiva de hominidade.

Ilustremos a idéia com um exemplo. Se a mesma sinfonia de Beethoven, no mesmo disco enfadonho ao primeiro ouvir, começa a fazer-se arrebatadora com a enésima audição, não foi, de certo, o Objeto que mudou.

Vejamos outro exemplo. Nas "Histórias da terra mineira", leitura escolar da infância de há meio século, havia a história daquele vindiço que, no arraial do Tejuco, hospedado por uma família, aí se encontrou sujeito, após o jantar, à inesperada fortuna de ver jogar-se um gamão cujos tentos eram certas pedrinhas mui brilhantes, amontoadas entre os parceiros, displicentemente. Tentado de tais tentos, mas disfarçando, pediu-os de presente. O dono da casa, imaginando ser alguma leve mania de viajor, fez dação à mancheia locupletando uma cobiça que anoiteceu ali mas não amanheceu, tendo madrugado à francesa, pela janela.

Tal proceder, não de hospes mas de hostis, mostra que tinham estado, ante o mesmo Objeto, e por mudança do Sujeito, dois sujeitos diversos: um tejucano que via pedrinhas e um aventureiro, a cujos olhos faiscavam, vivos, os diamantes.


29.

Mediante a sintonia fabular, o homem aprendeu a manifestar-se, progredindo em hominidade, trocando por socialidade a velha gregariedade animal.

Através de um exercício multimilenar, filtrou espontaneamente, das falas passadas, o recurso da fala ventura.

Esse filtrar de falas, extraindo língua desde a infância, devagar, foi trabalho paciente, através das gerações, através dos tempos, na marcha para cima. Labor teimoso de hominidade, não podia ser tarefa de um momento ou de um grupo. Quem quiser imaginar o que custou imagine a distância que veio intercedendo entre a fosca sensação de um pitecantropo e a clara expressão mental de um Demóstenes.

Tudo isso passou dentro do homem, no plano vivencial do espírito, acima do plano meramente biológico, por graça e milagre da sintonia fabular.

Na base do ser humano está o animal que reage a estímulos vitais do primeiro sistema. Essa reação, entretanto, foi sendo recondicionada e melhorada, por força do segundo sistema - a reação ao símbolo da coisa. O irracional, servo do meio, a ele se adapta ou desaparece. O homem, senhor do meio, a si o adapta ou o anula. Vivendo no mundo de fora, ele vive do mundo de dentro.


30.

A língua é um patrimônio, filtrado de falas, que serve a falas. É um patrimônio de valores internados no espírito, junto aos conceitos, em socialidade, isto é, capazes de se associarem, para o ato fabular, quando saem juntos, em forma de frases. Em estado de língua, o elemento é um valor potencial, capaz de veicular. Em estado de fala, faz-se atual, veiculando efetivamente. O elemento na língua é uma lembrança. Na fala, um valor da expressão.


31.

Associando conceitos com signos fabulares, o homem, vivendo no mundo de fora, aprendeu a viver do mundo de dentro, o seu endocosmo.

O veículo da configuração endocósmica é a fala. Ter idéias é pensar e pensar é falar. É um falar que não se manifesta, um falar consigo mesmo, ora reflexivo e dirigido, ora espontâneo e sibi-dirigido, fluindo em curso despercebido e contínuo, macio e surdo, isento ao vigiar da consciência.

Entretanto, fala que mereça o nome é a fala social, a fala que abre sintonia entre Primo e Secundo, fala em que a este se mostra a língua daquele. Se não houvesse fala, não haveria jeito de a língua se mostrar.

Esse poder manifestar-se por fala é peculiar do homem. Falta, no bruto, a riqueza simbólica. Somente o homem, capitalizando lucros, armou a simbolização fabular, e roteou sob o crânio a carta do neo-encéfalo - esta espécie de segundo pavimento e planta do espírito. Aí mora a capacidade fabular e a língua, obreira eficiente da especificação hominizante.


32.

A lingüística tentou grave injustiça, ao querer extraditar e deduzir a língua ao pavimento inferior. E enganou-se ao querer distribuir ao campo do Objeto o que pertence ao campo do Sujeito, o campo do homem como pessoa.

A língua é um recurso da fala e a fala, expressão do homem, é coisa do próprio homem. Ela tem de ser estudada por auto-análise, por exame do espirito sobre si mesmo, num exercício especular em que o Sujeito se faz objeto e reflexo do juízo que busca. Mesmo a língua de quem nos fala tem de ser estudada não em si, mas em nós, por transferência analógica. Não em si ou em quem fala, mas no foro de análise que é o nosso foro mental. Aí se examina e classifica: a fala, quem fala, e a língua de quem fala, sendo às vezes não menor trabalho o trabalho de ajustar sentido entre o modo de ser e o modo de dizer, entre o jeito do homem e a sua fala, a sua imagem de alma.


33.

No pavimento térreo, planta biológica, fica o aparelho de fonação, de importância lingüisticamente adjetiva. Quando ele reage automaticamente, como em voz de susto, isso é coisa do primeiro sistema. Entretanto, se funciona com intenção fabular, então recebe comando de um centro colocado no segundo pavimento.

O aparelho de fonação funciona bem, mesmo para quem não o entende, parecido nisso a um telefone. Estudá-lo é um exercício da tranqüilidade cognoscitiva, ou da vantagem didática, mas não é um exercício de lingüística.

É um aparelho que já vem feito, embora não predestinado à fonação fabular. Exercitado em tempo, que é desde a primeira infância, adapta-se aos talvegues fônicos de qualquer língua.

Só funciona em correspondência com o aparelho auditivo, prova de que a língua vem depois da fala. Um surdo-mudo é mudo não por incapacidade prolatória mas por inércia: no seu tempo de receber a língua, esta não lhe pode entrar pelos ouvidos, emitida em falas dos outros. Sem fala ouvida não há língua recebida. Até menino de seis anos, que já falava, se fica surdo, acaba involvendo e ficando mudo, se não o educam.

Uma vez adestrado, o aparelho de fonação ganha habilidade espontânea, marcado de invisíveis talvegues fônicos, por onde flui a fala nativa, ainda que feita de sons que pareçam difíceis para bocas aloglotas. A posse fônica de uma língua é cheia de ciúme exclusivista: um aparelho já ocupado reage negativamente às solicitações de prolação não vernácula. Por ser de ocupação não madura, o da criança reage menos que o do adulto.


34.

A idéia da adestração prolatória, criadora de tal vegues fônicos, vem ligar-se a idéia da evolução fabular. Evolvendo a fala, evolvem as morfias da língua. Anote-se bem: evolução das morfias da língua e não das línguas.

Só a imersão temporal dá sentido à lingüística e só a língua indo-européia lhe tem fornecido matéria bastante, por ser um patrimônio fabular de socialidade historicamente classificável.

Na área do espaço, a lingüística pode recensear estados de língua, mas um estado de língua não é a língua. Num inquérito horizontal (sincrônico) pode arrolar-se o patrimônio vigente, suponhamos da língua portuguesa (denominação não técnica). Mas será uma resenha imperfeita: primeiro, porque não se pode esvaziar o conteúdo fabular de cada indivíduo; segundo, porque não se pode nivelar as diferenças individuais. O patrimônio, além de não ser constante nem homogêneo em cada um, não é igual em todos. A posse fabular será boa em Caio e ruim em Tício; superficial em Mário, adstrito ao cotidiano, e profunda em Lúcio, observador da tradição, esmiuçador do passado, ledor dos mestres a quem retoma, para a luz, valores esquecidos ou mudados... Como explicar, fora do tempo, o atual dos dialetos ocidentais, de patrimônio sempre refundido, a partir do Renascimento, sob largas injeções de grego e latim?


35.

Para a lingüística, não chega recensear um estado de língua. A fim de entender o hoje, sucessão do ontem, cumpre receder no tempo, sotopondo estados.

Na origem de nosso patrimônio, plurifracionado em dialetos que cobrem o mapa, está a língua indo-européia, historicamente rastreável, submissível a uma síntese de panorâmicas abrangências. Basta seguir a costura diacrônica das sucessões, rotear estados, marcar linhas dialetais e demarcar interferências.


36.

Diz-se que a língua é um sistema de sinais. É uma definição que, sendo genérica, paga juros ao vício de se definir a língua por um conjunto de vocábulos, apesar de ela ser muito mais, pois é um acervo numeroso de moldes.

Também se diz que a língua é o sistema peculiar à fala de um povo: a língua portuguesa, a francesa, a latina. Esse definir prendeu a idéia "língua" às contingências da contingência grupal, dentro de um seclusismo sem realidade e um pluralismo sem conteúdo. O português, o francês e o latim não são três línguas mas três dialetos, três estados de língua da língua indo-européia.

Eliminando-se o conceito "línguas" em favor do conceito "língua", até a fraternidade se favorece: em vez de se travar nos particularismos grupais, poderá nutrir-se no sentimento da continuidade da espécie, vista na continuidade do patrimônio fabular.


37.

Na carta histórica dos dialetos pode vir, junto à perspectiva das morfias, o sentido evolutivo da mudança e o sentido interferente das mutações, fruto de horas traumáticas. Dentro da lição geral, vige a constância da economia prolatória ou mecânica, em coordenação com a economia fabulatória ou psíquica. Além disto, frutos da condição humana, surgem os distúrbios parasitários do engano e da fantasia, hóspedes intromissivos, no rápido espaço entre a boca de Primo e o ouvido de Secundo. Finalmente, acima, dominante, em permanente exercício, reina a lei da analogia, princípio e força da criação imaginal e das figurações plásticas do espírito. Por analogia é que a língua cresce, inclusive na recepção mutuária das aculturações, quando o dialeto, abalado o nível da estabilidade, recebe externos contágios, porta e ensejo de mutações.


38.

Ex fábula lingua.

Inserido nas leis da vida pelo plano biológico, o homem o superou com o seu plano espiritual, criando a sua estrutura de homem histórico, instalando um maquinista na máquina de vida que é o animal.

Em presença da coisa, que tem preso um sentido, reage o bruto. Mas o homem, sofreando reações internadas e liberando o sentido, aprendeu a reagir, para além do sentido presencial, também ao sentido da representação.

Em presença, da coisa, dois irracionais podem sintonizar uma reação. Dois racionais, mesmo na ausência, podem trocar inteligência, veiculada em signos fabulares. É a comunicação mental de que só o homem é capaz. Para isso forjou a lingua. Primeiro o signo vocal se emitia expansivo, envolvido no contexto presencial; depois, foi desprendendo-se da presença, liberado por replenação vivencial, que encheu de "representação" a sintonia fisiológica das emissões. Vozes veiculares, intercambiais, fizeram-se valores fiduciários da comunicação. A fala criou a língua.


39.

Na transmissão social está o recurso da integração social do indivíduo, que por ela recebe as idéias e dela filtra a língua, um patrimônio marcado de necessidade dialetal, visto ser expressão do que muda, no tempo e no espaço. Está sempre possível a forma seguinte ou o seguinte sentido, numa constante urgência metamórfica e metassêmica. Não há normas para o ritmo da mudança. Temperando a imprevisibilidade, funcionam efeitos, ora da ilhagem espacial, com distanciamentos étnicos, ora de precipitações sociais. A sensibilidade à diferença admite séculos de perspectiva, entre os momentos do dialeto, que ora vige e fulge, na plenitude, ora senesce e mirra, em decadência; segue às vezes e persiste, sob a misericórdia dos fados, ou cede à invasão e desaparece, como foi, na expansão romana do latim, com falares itálicos e célticos.


40.

Ante nossos olhos, a língua é sempre anterior ao indivíduo, que a recebe nas falas do clã. Passa, tradicional, do homem feito, geração docente, ao homem que se faz, geração discente. Começa na sociedade familiar e continua na sociedade nacional. Primo I transmite a Secundo I que, integrado em Primo II transmite a Secundo II. Na hora em que Secundo, promovido a Primo, começa a falar, pode começar também uma ocasião de mudança, vinda na instabilidade do social, pois o homem afina o que diz nas repercussões que a vida lhe imprime nas matrizes da alma.

A língua é anterior ao indivíduo no mesmo sentido em que um homem é anterior a outro homem. Da geração dos ascendentes, portadores da língua, nasce, em procriação familiar, a geração dos descendentes, recebedores da língua, em procriação fabular. A língua passa aos recebedores mediante as falas dos portadores. As falas recebem-se mas a língua se filtra, vivencialmente, no espírito de Secundo.

O importante não é a anterioridade da língua, mas a anterioridade do portador. Isso não viu a metódica vigente empenhada em explicar a fala pela língua, em vez de explicar a língua pela fala.


41.

A lingüística tem insistido em ver na fala o aspecto individual da comunicação humana, atribuindo à língua o aspecto social. A sugestão é antiga e Saussure a fixou no binômio língua e fala, vendo, nesta, o produto individual, e naquela, o produto social.

Conclui-se do caso que tem faltado à escola reflexão, não havendo meditado em que produto é particípio passado e em que a função social deve buscar-se é no particípio presente. O que produz a língua é a fala, procedimento social. Do producente fala - manifestação inter-individual e pois social - nasce o produto língua - estado intra-individual e pois fora do social.

Toda vez que um indivíduo fala, está submetendo as formas da língua às possibilidades de uma alteração. Assim começa o mudar de uma forma: ou ela se torce na má transmissão que sai da boca de Primo ou ela se torce na má recepção que entra no ouvido de Secundo. Na verdade, está fundada no preconceito vocabulista, mas sem apoio na observação social, a intangibilidade sugerida pelos neogramáticos de Leipzig, ao negar a eficiência do poder individual.

O comércio fabular é um ato de socialidade, um exercício a dois, com ensejo de propor e ensejo do aceitar. Está certo e mais do que lógico, dizer que um indivíduo não muda a língua; mas também está certo dizer que o indivíduo muda a língua. O que está errado é supor que a língua seja uma realidade sibi-sistente, regida de leis peculiares, subtraída ao poder do indivíduo. Isso é imaginá-la autônoma, isso é reduzir o fenômeno fabular a um reflexo de baixa tensão, a um reflexo natural de coisa inata. Ora, a língua não é um reflexo natural e sim uma reflexão forjada pelo homem, desde aquele dia em aue aprendeu a condicionar dentro de si, juntamente com a representação de uma idéia, o signo intencional que a veicula.


42.

O animal tem certos dons inatos ou biológicos:

1°. A capacidade fisiológica da aferência sensível, que lhe carreia excitações que vão do meio estimulante aos centros vitais. A vida é uma equação com esse meio vital. Vindo o estímulo dele, os reflexos equacionais promovem a resposta. O homem, porém, convertendo o reflexo em reflexão, recondicionou a resposta, inovando o sentido do estímulo e explorando as energias do meio.

2°, A capacidade, entre os procedimentos corporais, dos procedimentos de imitação e dos procedimentos de exercício. Num procedimento de exercício, o indivíduo repete, fingidamente, um procedimento vital. Por meio dessa função lúdica, ele reproduz, em situação não real, estruturas de uma reação que a vida um dia pode exigir-lhe. No procedimento de imitação, em que copia feitios vistos, o animal exibe o poder da sua função mímica.

3°. A capacidade fônica, empregada no exercício de emitir vozes expansivas.

No animal racional, por mistério da espécie, desenvolveu-se uma definida autonomia do espírito, através de progressiva liberação da vida mental. Mediante isenção da servilidade hic-nunc-ista, o homem aprendeu a guardar a reação para outro lugar e hora, álibi et ólim, depois de transformar o reflexo do meio em reflexão sobre o meio, através de vivências exercidas no internato do espírito. Assim, posto em frente ao Real, foi conseguindo desprender o seu Eu e erguê-lo como Sujeito, ordenador do Objeto.

Na marcha desse trânsito imemorial, marcha de hominidade, o viático foi a manifestação fabular. Essa é a razão de se dizer que a fala hominizou o homínida.

Certo dia, muito incerto, na antemanhã da espécie, Primo começou a imitir uma intenção na voz que emitia. Podia ser também que o fenômeno houvesse começado em Secundo, ao descobrir uma intenção na voz de Primo. Seja como for, o certo é que o homem transformou a voz em veículo da representação mental. Acondicionou uma intenção no que eram antes meras vozes expansivas, um antigo produto da capacidade fônica animal. Sincronizada com essas "vozes", ainda secundárias, usava da "fala de corpo", jogo espontâneo de atitudes e gestos, tomados à capacidade mímica e lúdica. O ato de fala é um procedimento teatral.


43.

Assim começou a nascer a língua, no dia em que o ato de emitir a voz, em lugar de ser uma reação expansiva, começou a ganhar força de reação expressiva. Essa voz, em lugar de ser uma voz provocada pela presença material da coisa, foi passando a ser uma voz provocadora da sua presença mental. Ao esquema de um procedimento vital, presencial, impulsivo, sucedeu o esquema de um procedimento vivencial, ausencial, reflexivo.

Como fruto da sintonia fabular, veio a superação da gregariedade, elevada a socialidade.

De certo que as primeiras sintonias eram pobres falas pragmáticas, muito pouco fabulares, muito sincronizadas com procedimentos vitais. Eram vozes modestas, modestamente afogadas no vigor das adjacências teatrais, postas como substância de um contexto fabular ainda sem liberdade. Mais tarde, no progresso dos milênios, veio a melhoria da fala teórica, uma fala capaz de ser toda reminiscente, produzida em outro lugar e hora, numa sintonia de representações tão somente mentais.

Estabelecida a suficiência vocal do contexto fabular, o comércio da fala pode desenvolver a sociedade, fazendo melhorar o nível da hominidade da espécie, mediante a tradição de uma experiência enriquecida, cambiável e fácil, portátil e ágil.

Admitido no poder de manifestar a sua representação mental, único entre os seres biológicos, então o homem se fez homem. Aprendeu a fiscalizar nos outros homens, não só o curso vital da existência, que se traduz em procedimentos, como também alguma coisa do curso vivencial, que se traduz nas falas.

Depois do mistério da vida, cresce ante nós o mistério desse hiato especificador, inserindo distância entre o homem que se exprime e o rebanho dos brutos, intransitivos e mudos. Estes, só no vital podem ser observados. O que haja de vivencial no orango ou no chimpa, fica trancado lá dentro dele, por falta de manifestação fabular.


44.

A infundição da língua num indivíduo resulta de uma lenta saturação fabular, socialmente ministrada. Secundo vai conquistando devagar a capacidade de ser Primo. Um dia se vê dono de um recurso que espontaneamente lhe ocorre, quando quer exprimir-se. É a posse da língua, uma posse habitual a que se acomodou. Por isso, quando fala, não costuma pensar que possa estar mudando alguma coisa, pois costuma pensar que está apenas repetindo o já ouvido. Na verdade, porém, embora repita, matiza talvez a expressão com algum efeito pessoal, inter-individualmente transmissível. Portanto, mesmo sem querer, o indivíduo influi mudança. Esta pega ou morre, conforme a sorte. Se o destino é pegar, ela, proliferando na transmissão inter-individual, acaba sendo mudança que o tempo confirma e empossa.

A paciência individual às formas do idioma tem explicação no fato de a língua ser um condicionamento vivencialmente instalado. A iteração condicionante implica a idéia de hábito, e o hábito é uma segunda natureza. A língua é, pois, uma constante repetição, principalmente quando é língua de um grupo fechado a efeitos de aculturação. A mudança que surge e faz ver-se, na distância do espaço e do tempo é que se vê. E costuma ser fruto não da intenção mas da contingência. Mesmo nas horas sociais de aculturação e bilingüismo, horas marcadas de algum prestígio alodialéctico, o nativo, ante a língua pátria, com reverência caroável, sente impulsos, não de mudar, mas de enriquecer o vernáculo.

Procederá como Cícero, influído pelo grego; ou ainda Camões, sob o influxo do latim. Ou faz transvocabulação, importando o vocábulo e o sentido, ou faz diassemiação, imitindo sentido novo em já usado vocábulo. Assiste-o, nessa hora, a analogia vernácula, prudente niveladora de morfias, presente e regente como um gênio da língua.


45.

A língua é um sedimento mnésico da criação fabular. Sua evolução obedece, não a leis da língua, mas a tendências dietárias de uma economia que o plano espiritual insere no plano biológico. São leis do espírito, e não dela, as chamadas leis da língua.

O aparelho de fonação, animalmente biológico, é apenas aproveitamento secundário de uma aparelhagem fisiológica. O exercício fabular criou nele uma habilidade prolatória intencional, respeitando os naturais limites da capacidade articulatória. A estilização da morfia sonora abriu distância notável entre o signo fabular e a mesmice iterativa da voz animal. Basta lembrar que ainda hoje são os mesmos, iguais aos do tempo de Homero, os signos vocais de um rouxinol ou de um touro. O homem porém, animado de energia intencional, estilizou vozes que modelou em morfias veiculares; e foi roteando, no aparelho, os numerosos talvegues fônicos de que dispõe uma língua.

Tem seus limites, quanto a fonemas, a faixa prolatória de cada dialeto. Uma boca adestrada em sua língua resiste às solicitações de talvegues alodialécticos. A prova, no entanto, de que sua habilidade é universal está no fato de um infante poder educar-se em qualquer língua.


46.

Essa conceituação está longe daquela conceituação neofísicista, que via regularidade mecânica nas mudanças.

Anote-se que a evolução das formas de uma língua deve ser estudada no lugar de origem, quer dizer, na fala. Embora contemplável no vocábulo, como resultado, a mudança o atingirá durante o ato de fala. Existe, na metódica, uma tímida fonética sintática. Mas (podemos dizer) se a lingüística, em vez de morfia vocabular, cuidasse mais da morfia fabular, já teria explicado melhor vários efeitos fônicos e semânticos, ao ver como repercutem, na forma e no sentido, emergências do molde frástico e do molde melo-rítmico, afeiçoadoras ocasionais da economia sintágmica e da economia prolatória.

A evolução da morfia fônica fabular, que se reflete na vocabular, provém de deslizamentos prolatórios; são deslizamentos de talvegue, produzidos pela ação individual e propagados pela ação inter-individual.

É um deslizamento não cuidado, um deslizamento espontâneo, que a adestração poderia endereçar. Veja-se como a escola reforma, no homem do campo, o armazenado roceiro de suas morfias fabulares. Imagine-se ainda em que funduras lesionais haveriam de estar os dialetos europeus, se não fosse a recapitulação cultural do Renascimento.


47.

Aos limites habituais da faixa prolatória cumpre somar as imposições da analogia, a grande niveladora, que o comparatismo inicial do século XIX tachava de corruptora, mas que os neofisicistas de Leipzig empossaram em sua modesta corregedoria, cedida pelas leis fonéticas.

Examinada em projeção diacrônica, a substância fônica da matéria fabular revela o sentido de uma iteração analógica. Do latim ao português, a morfia romana conceptu já era uma promessa de conceito (pós-românico) bem como fácere prometia fazer.

Entretanto, só a história discreta, paciente e minuciosa, pode dar uma informação autorizada, rastreando cada vocábulo, enfiando-lhe formas, armando-lhe a ficha de identidade. Só ela, examinando a economia prolatória do milênio ibérico, atravessado de tantos movimentos sociais, poderia saber quais efeitos, individuais e grupais, conseguiram ir de fácere a fazer, em vez de acabar em morfias como hacer fare faire.


48.

Catalogar valores fônicos da língua é serviço que melhora a posse do conhecimento bem como o trabalho de educar. Entretanto, mergulhar no foneticismo, tem sido um engano da lingüística. Os elementos de interpretação da língua não estão no plano fisiológico e sim no plano do espírito, que é o plano de sua criação. Aí nasceu e tomou forma, regida de analogia e de economia. Para as morfias da estrutura, o nivelamento analógico. Para os dispêndios prolatórios, o nivelamento econômico, redutor de abundâncias e contrator de massas. Essa economia, sendo psíquica, influi poupança mecânica.

Perturbando a nivelação analógica e a economia prolatória, podem funcionar, durante o ato de fala, certas reações dispendiosas, nutridas por impulsos de clareza, de ênfase, de criação.


49.

Um vício vocabulista.

Relativamente ao Objeto, a fala é uma alusão manifestada pelo Sujeito. É, portanto, um vício vocabulista, sem promessa metódica, o hábito de partir da coisa para entender a palavra. A fala não traduz a coisa mas a vivência. No estado arcaico e pouco homínico da espécie, a coisa era um estímulo de procedimentos vitais. Depois, com o progresso, fez-se ensejo de vivências, quando o homem, sofreando as reações do proceder, começou a ver na coisa, ainda ausente e apenas lembrada, um estímulo do pensar.

Da coisa parte-se para um procedimento vital ou um procedimento vivencial, fabularmente manifestável. Da vivência parte-se para a fala, para a palavra, para a língua.

Se a função fabular é uma função de vivência, a lingüística deve remarcar seus conceitos, examinando a fala como expressão do homem e não como expressão da coisa.


50.

Um ato de fala é um todo vocabular inserido num todo não vocabular. De começo, devia ser uma fraca ingerência vocal, sincronizada com um forte todo procedimental. Mas já era, como depois continuou sendo, um contexto auditivo, apoiado em contextos visivos: o contexto fabular, imerso nos contextos teatral e mímico.

Na fala pragmática ou executiva, a alusão pode ser mais visual que auditiva. É uma fala em que dominam as presenças: a presença de Primo, a presença de Secundo, a presença das coisas, a presença das atitudes e gestos, dícticos e plásticos. Um ato de fala pragmática chega a ser tão pouco fabular que, ainda hoje, após milênios, pode ficar reduzido a procedimentos visuais, pode ficar reduzido a gestos.

A riqueza da fala não começou nas "vozes" mas nas atitudes. Seu colorido de hoje, não o recebeu só das palavras, pois foi sendo filtrado, vagaroso, da energia cooperativa dos contextos. Sob a sugestão das presenças, primeiro deve ter sido o gesto, sublinhado pela voz. Depois, foi a voz sublinhada pelo gesto. Depois, ainda, aumentado o cabedal auditivo com a replenação da fala teórica, o gesto foi sendo reduzido a adminículo espontâneo e até dispensável.

Essa replenação culminou com a fala escrita.

A fala escrita é uma fala ausencial, privada de recursos mímicos e teatrais. Consta só de contexto auditivo. Um contexto, além disso, menos autêntico, por estar congelado e indireto, pois a fala escrita é uma fala auditiva visualizada. Na fala coloquial, Primo fala e Secundo ouve. Na fala escrita, Primo visualiza e Secundo lê, ressuscitando a fala.

Na boa fala escrita, Primo tem de compensar as ausências, recobrindo lacunas teatrais e lacunas auditivas, mediante a serventia dos vocábulos situadores e das convenções visualizantes. Por isso é que a gente acaba escrevendo, não como fala, mas como os outros escrevem.


51.

A interpretação da fala ainda admite dois outros contextos, entre si relacionados: o contexto pessoal de Primo e o contexto social do seu meio.

O contexto pessoal, condicionado em cada indivíduo, é um aperfeiçoamento distributivo do contexto social. Vai ele variamente a cada um, segundo aquele transfundir que passa da geração docente à geração discente.

Imagina-se a diferença de possibilidades, imaginando a diferença dos níveis sociais. Veja-se o patrimônio transmissível, na tradição de um grupo histórico, aristotélico, raciocinante, em comparação com o de um grupo tribal, não aristotélico, vegetativo.

É mínima a promessa de hominidade do grupo tribal, infralógico e travado, mítico e simbiótico. Falta-lhe a dimensão temporal, o batismo específico da imersão histórica, definidora da hominidade. Cada indivíduo é uma fraca unidade, superficial e rasa, mal autônoma, cheirando àquela sua gregariedade colonial de magma recente. Tem uma capacidade quantiadora que oscila na esfera dos números dígitos. Sua perspectiva do mundo, repete a linha do horizonte visual, entre tangentes espaciais que a distância aumenta e que a fantasia povoa de mitos. Funde-se-lhe a vivência na permanente crase do Sujeito e do Objeto.

Nos limites de tal patrimônio do espírito correm os limites do patrimônio fabular, decoador de uma língua fantasiosa e mágica, inabstrata e elementar, descritiva e paratáctica, aspectiva e aorística. Um ato de fala do homem arcaico é um ato de ator, cheio de cena e drama. Ele submerge, no visivo do teatral e do mímico, o fraco poder auditivo do contexto fabular. Não é um ato de transmissão reminiscente, mas de repetição vivencial, rico de iterações procedimentais.

Essa infância do patrimônio expressivo ressoa com a infância da capacidade mental. Gera uma língua de escassez, fraca na estrutura frástica e na elasticidade relacional, embora rica no pormenor aspectivo, aquela minúcia com que são vistos seres e procedimentos, sob a urgência de uma cotidianidade mais vital que vivencial. O espírito não generaliza. Não tira das árvores a noção de árvore e nem dos peixes a noção de peixe, pois fica detido, individuante e simpático, ante cada árvore e cada peixe. Tão pouco generaliza uma noção de procedimento como andar, variando o vocábulo com que nomeia cada aspecto de tal movimento.

De um tal estado de língua, pré-gramatical e pobre, ressumbra um jeito para-idiomático e hipomorfêmico. No apoio das presenças e dos gestos, estrangula-se-lhe a energia fabular. O que domina é o recurso visualizante, mais a intenção melódica, vindo por último a estrutura fabular, esse elemento maior da expressão amadurecida.


52.

É lenta a marcha que vai da fala simpática à fala classificatória; da fala propiciatória, de nível mágico, à fala teórica, da ordenação racional. Além disso, todo nível seguinte contém residuação de níveis anteriores: o homem, teimosamente recapitulante, é um sedimento de estratos multimilenares.

(Explicando um pormenor de sua costura, dizia uma costureira: "Vira esta ponta pra cá e vira esta ponta pra cá". Dizendo duas coisas, ela repetia uma só morfia fabular, apoiando-se no desenho melo-rítmico e na concomitância díctica) .

Tal pobreza de contexto auditivo corresponde à modéstia da ascensão espiritual, segundo um racionado nutrimento de vivências comunicáveis. Afora o ensejo de parcas falas pragmáticas, vige a discreta reminiscência de alguma sabedoria elementar,

Para reminiscências pobres, língua pobre. Ainda que seja rica de situadores (dícticos), padecerá de lesão hipomorfêmica, vista a insuficiência de seu campo anafórico, isto é, de seus meios de remissão ao espaço fabular. A disponibilidade anafórica é um fruto maduro da fala teórica e ausencial, que supõe mais nível de hominidade. Na fala presencial, basta a funcão díctica, na tarefa de apontar ao espaço teatral.

(No nível aristotélico, é fácil de anunciar que "o homem matou o coelho". Existe a referência anafórica do artigo e existe a lembrança vivencial que dispensa pormenorizações aspectivas. Na fala de um índio ponca, a mesma frase teria a seguinte estrutura: "homem, ele, só, de pé, de propósito matou, jogando frecha, um coelho, ele, vivo, agachado". - Percebe-se o cuidado aspectivo, as minúcias de procedimento e situarão. Em meio a tal generosidade visualizante, até se adivinha a sincronia dos gestos).


53.

O homem não-aristotélico vive imerso nas adjacências do aqui-e-agora. É um ser hipocrônico, iterado na estreiteza de suas dimensões. Falta-lhe aquele sentir da sucessão que encadeia passado presente e futuro. Seu verbo, morfemicamente aspectivo, é pobre no vigor temporal.

Semelhante estado de língua poderia fornecer amostra do que é sincronia, caso valesse o que diz o Curso, p. 127, quando manda eliminar dela os sinais de duração, ficando só a perspectiva do momento: "la synchronie ne connait qu'une perspective, celle des sujets parlants."

O homem não-aristotélico é um homem do instante. Mas acontece que hipocronia não é ucronia. Acontece também que o método sincrônico é um jeito de fingir como parado o que se move no tempo. A realidade vivencial é um procedimento que não pára; ela não é estática mas dinâmica. Não existe a sincronia saussuriana, com sua intemporalidade, a não ser por artifício.

Por artifício é que se detém, reflexivamente, um fluxo vivencial, individualmente sentido e socialmente pressentido. Basta conformá-lo na imagem de um "simultâneo diacrônico" para lhe ficar bem o nome de "sincronia". Configurando momentos sincrônicos de um simultâneo diacrônico, arma-se um estado de língua. Mas tal trabalho, de mérito empírico, não chega para explicar a língua. Esta, no seu todo, corresponde a uma sucessão de momentos, que só no tempo se define. Diacronia.


54.

Quem mede uma quantidade de língua, em dado lugar e tempo, está medindo o que existe em cada um dos indivíduos da grei. Está medindo um contexto pessoal, nutrido por um contexto social. Esse balanço é quase possível num grupo não-aristotélico, visto ele ser pequeno, fechado, parco no tradicional, impaciente ao não-tradicional. Mas como balancear uma língua de cultura?

No grupo não-aristotélico, vigoram as contingências da transmissão oral e da contigüidade tradicional, pois o veículo é só a fala de boca, e só a geração dos pais é geração docente.

Influi ainda, como limitação, a curta faixa de sua temporalidade aorística, logo embebida na penumbra do pretérito. Junto ao agora, sem janelas do amanhã, cai a sombra do ontem, limbo de mitos.

(Seja dito, entre parênteses, que só um desânimo de saudade biológica, de recapitulação filogênica, poderia subscrever a declaração de serem felizes os povos sem história.)

Que patrimônio de homem pode ter o homem arcaico, apertado na sua intemporalidade, e oprimido da tirania de seus fantasmas? O que hominiza o homem é o seu poder de criar um mundo, no internato de sua consciência. Dentro dela reina o Sujeito, nutrido pela base espacial do ser biológico, mas configurado em duração, que é matéria do tempo.

O homem ocidental, tipo do homem histórico, foi criado pela civilização mediterrânea, mediante o trabalho de estar sempre revendo o passado, capitalizando assim a experiência da espécie. Encontrou garantia dessa revisão na fala escrita, progressivamente ampliada no vigor de seu domínio. Na tradição da oralidade, o mais que se vê é a terceira geração falando com a primeira. Na tradição da fala escrita, fica aberto o diálogo das séculos. Rui pode conversar com Camões com Vergílio com Homero. A língua torna-se um cabedal que se colhe no tesouro dos milênios. Está sempre recirculando, pela fala de alguém, algum valor fabular de outras eras. Há sempre alguém ouvindo homens do passado.

Enquanto o nativo tribal se aperta na faixa de sua in temporalidade, o homem aristotélico, revendo vivências da espécie, vai adensando a profundez pertemporal de sua hominidade.

Por isso é que não se pode balancear bem uma língua de cultura, imensurável nos patrimônios individuais, em tesouros peculiares como o de um Rui, síntese feraz de gerações, ambulante compêndio diacrônico, revalidador de Fernão Lopes, João de Barros, Camões, Vieira, Bernardes; aluno feliz da facúndia mediterrânea, estilizada por vinte séculos de devoção histórica.


55.

Diz que tem por objeto, a lingüística sincrônica, um estado atual de língua. Recomenda-se que não tome banho histórico, pois há de estudar-se com isenção de tempo. Sem história, porém, como explicar o patrimônio fabular de um ser diacrônico por definição? A hominidade do homem não está no ser biológico, meramente animal, e sim no ser fabular, antigo ingeridor de tempo, vagaroso recinto evolutivo de reais. O homem é um animal reminiscente. Vive imerso numa duração que o libertou de muitas equações biológicas, por saber reintegrar-se na permanente atualizabilidade do pretérito.

Se a fala é uma expressão do homem histórico, a língua (recurso da fala) pela história é que tem de ser explicada. Veja-se por exemplo a língua indo-européia. Ela tem sido diacronizada por uma repetida aculturação mediterrânea. Começando na racionalidade helênica, transfundiu-se no império romano e preservou-se na espiritualidade cristã. Depois disto e com isto, a humanidade ocidental, a partir do século XV, pôde reduzir a um momento presente toda a riqueza fabular de dois milênios.


56.

Pensando que via a língua como coisa em si, o positivismo fez dela uma espécie de meio atmosférico, admitindo-a como um bem comum que não é de ninguém. Identificando-a como um produto social, pelejou por esquecer que ela se produz no indivíduo, onde se interna mediante falas, juntamente com as idéias que as falas carreiam.

Quem deseja recensear uma língua, tem de medi-la nos portadores; mas acontece que varia em cada um, tanto na quantidade como na qualidade. Não é de supor que se prefira, como cota de medir, a cota elementar da rudeza inurbana.

Quem avalia uma língua atual, arrola o que se usa no momento; mas quando começou a ser atual um atual que se usa? Na massa dos valores que hoje circulam estão valores que antes circulavam. O português do século XX já era português no século XV. E diz o Curso, p. 235, que o francês é indo-europeu em quatro de seus quintos.

A língua é um valor que se move com o homem, no tempo e no espaço. É uma coisa que é, que deixa de ser e que vem a ser. É uma coisa que não pára, que não toma estado. Quem lhe finge algum, metodicamente, não lhe deve suprimir os anteriores, pois não há bom compreender se não é por recessão histórica.

A chamada lingüística sincrônica é um artifício de alcance limitado: ordenar um momento da língua, arrolando-lhe haveres em uso, é bom ato de preparação, mas ainda não é lingüística. Serve bem à gramática normativa, ocupada em função didática, mas não chega para uma ciência que pretenda fidelidade, ao tratar de seu objeto, inteiramente evolutivo e histórico, todo imerso no tempo do homem. A lingüística não pode ser sincrônica. A lingüística tem de ser diacrônica.


57.

O lingüista, para entrar na consciência de quem fala, deve ignorar a diacronia e suprimir o passado, porque a história só faz atrapalhar. Assim diz o Curso, p.117.

Na verdade, porém, a mesma infusão da língua, em cada indivíduo, é um procedimento diacrônico. Nasce o homem, não como Primo, que sabe, mas como Secundo, que aprende. A língua que recebe, coisa feita em Primo, no entanto para ele é coisa facienda: constrói a posse de vagar, na medida em que assimila as falas recebidas. Vem chegando-lhe aos poucos, no diário vulgar, a feição cotidiana do espírito vigente. Ora é a sintonia rotineira da fala pragmática, mais vital que vivencial, ora é o teor gnômico da fala teórica, justificação de uma experiência em que Primo se explica ao explicar um real. Quando o meio é bem hominizado, existe a riqueza da fala histórica, a fala escrita de todo lugar e hora. Veicula-se nela, para além da feição emergente, do instante, a feição diacrônica da humanidade. Na riqueza da fala histórica, por entre persistências e mudanças, pode ser visto o que ela traz - a figura de um patrimônio mental - e pode ser visto o que ela é, na morfia de sua expressão. Junto à alma do povo a alma da língua.


58.

Pressupõe o Curso a conveniência de se entrar na consciência de quem fala. Em verdade, porém, não se confere língua entrando na consciência dos outros, mas permanecendo na própria consciência.

Além disso, ninguém pode entrar na consciência de ninguém. Trata-se de um internato indevassável. Todo homem é ume ilha, embora esteja ela disfarçada pela contigüidade social, pela simpatia biológica e pelo mimicismo assemelhador.

por analogia vivencial é que Secundo imagina o que pode ser a consciência de Primo, usando de suposição gratuita e desgarantida. Julga-se possivelmente um homem pelo que faz e não pelo que tem na consciência, pois ela é o centro do eu recôndito, o impenetrável recinto isento, provido de janelas para ver fora mas sem abertas para o ver de fora.

Dizer que a fala é espelho da alma é um dizer de sentido aleatório. Reflexo da alma serão os procederes. Falar não é garantia. Além do mais, o compreender de Secundo é por confronto de semelhanças: entende pelo que já tinha consigo e não pelo que Primo lhe mostra. A fala emite e não transmite. É sintonia, não comunica. Ela não gera o entendimento, que tem origem, não fabular mas convivencial.

É na própria consciência, pois, que o analisador imagina o que pode estar passando na consciência de quem fala. Um valor de língua não é alguma aparência externa mas um reflexo interno. A língua é um estado de consciência, embora falemos em estado de língua, por um modo de dizer. A idéia que sugere não é de estado e sim de procedimento, meio, recurso.

Quando Secundo admite que a fala de Primo é correta ou então bem achada, isto não é sentimento que lhe venha de fora, com a fala do outro, mas lhe sai de dentro, pela sua lembrança.

Quem estuda a língua não olha para fora e sim para dentro. O esforço de extrair a língua da sede mental em que está foi um pecado metódico do vocabulismo novecentista. Ele negou-lhe uma situação intra-individual que é sua e quis atribuir-lhe, a mais de uma socialidade que não é sua, um evoluir isento, em que o indivíduo não influi.


59.

A metódica vigente, resumindo a língua no vocábulo, revela dificuldade em defini-lo e costuma atribuir-lhe mais do que ele tem.

Visto na sua evolução, o ato de fala deve ter começado mais rico de elementos visuais que de elementos auditivos. Com o progresso, foi invertendo-se a proporção da riqueza, mas a língua nunca chegou a ser reduzida a um recurso de vocábulos. Nem mesmo para idiomas fortemente vocabulizados, como o inglês ou o chinês.

O vocábulo, na fala, por menos que o pareça, vem sempre morfemado. Sozinho, ele não entra na frase. Na aparência tão vocabular de um "sim" de resposta, existem condições bastantes para diferençar do vocábulo "sim" o sintagma "sim" de uma frase monossintágmica.

Diga-se, aliás de passagem, que tal tipo de frase tem seu molde perfeito, completo. Imaginar-lhe partes ocultas ou preencher-lhe supostas lacunas, como faz o logicismo, é trabalho que vale como interpretação, mas não é análise de estrutura, não é análise da língua.


60.

Benedetto Croce, identificando a intuição e a expressão, menoscabou a vivência, essa infatigada usineira que opera na usina do Eu, destilando hominização. Vem na matéria-prima que usa o teor do restilo que obtém, ao tratar qualidades individuais e sociais de Secundo, este condensador dos impactos vitais com que o percute a existência, este resumidor de interpretações que a notícia fabular lhe ministra.

O real que circula entre os homens é um fruto vagaroso dos milênios, uma filtragem de repercussões, individual e cooperativa. Instalando-se em cada homem, veiculado por notícia tradicional, o real em cada um se modaliza, pois cada um é Sujeito e juiz.

A produção do real socialmente admitido não é obra do homem e sim da humanidade. Não é obra de um tempo e sim da diacronia.

Cada homem é um ser histórico ou diacrônico, constituído em síntese de tradições, em reserva de reais configurados. Cada indivíduo é uma informação do seu meio. Até se poderia dizer "enformação", pois o meio é uma fôrma.

Hominizar-se é adquirir individuação e pessoa. Hominizar-se é "euizar-se". Para o conseguir, vai cada um enchendo de representações o celeiro do segundo sistema, enquanto estiliza necessidades vitais, mobilizadas como possibilidades vivenciais.

Ao dominar certas urgências biológicas do primeiro sistema, o homem superou a irracionalidade; economizando repercussões reflexas, prorrogou-as em elaboração reflexiva. Trocou o estímulo da coisa, imanente, presencial, em estímulo ausencial de representação e lembrança. Reduziu o mundo circunjacente a um mundo de idéias, disponível e útil. A atividade mental criou seu endocosmo.

Por seu endocosmo, o homem confere as imagens do mundo de fora. Quando olha fora, não está olhando para ver mas para verificar.

Intuir e exprimir-se não se igualam. A intuição nova é causa de surpresa e dá alteração nos hábitos do Sujeito. O que então exprimir não será expressão do intuído, não será expressão do seu ver, mas expressão do sentir que o turbou. Só depois do internamento aferencial e da elaboração vivencial é que poderá vir a expressão do intuído. Se a intuição é velha, dá-se iteração intuitiva, cuja finalidade não é ver mas verificar. Para a expressão do que seja, vale-se da expressão que lhe ocorre, tomada no armazém patrimonial das lembranças.

Acontece, porém, que nenhuma expressão traduz o intuído, pois só traduzem repercussões. A fala não exprime o que passa no Objeto mas o que passa no Sujeito. Traduz o homem, não a coisa.


61.

O ato de comunicação, ato de fala, tem três con textos: contexto teatral, contexto mímico e contexto fabular. O contexto teatral consta de espaço e de presenças: a presença de Primo, a presença de Secundo, e a presença das coisas. O contexto mímico constitui-se na ação teatral de Primo: teor fisionômico, atitudes, gestos. O contexto fabular consta de frases.

Dos três contextos, dois são visuais e um, auditivo. Em termos de hominidade, representa enriquecimento a progressiva replenação do contexto auditivo e a conseqüente baixa dos contextos visuais.

Na fala pragmática, domina o ensejo dos contextos visuais. É uma velha fala eficiente, armada em teatro vital. É feita de sintonia executiva, não é fala de notícia. Acompanha procedimentos e fica inserida no drama encenado. É tão natural a sintaxe das presenças e dos gestos que o contexto fabular pode dispensar-se, às vezes.

Na fala teórica, tomou importância o auditivo. A fala teórica é uma fala reminescente, uma fala de notícia, fala de outro lugar e hora. Sujeita à emergência de qualquer contexto teatral, sem presença das coisas do assunto, foi trccand:) em gestos analógicos o que era díetico e plástico. Foi sendo criado o recurso anafórico, este recurso de exibir no espaço fabular o que não pode ser visto no espaço teatral.

Com a fala teórica, o homem foi aprendendo a exercer-se na revisão reminiscente, a ponderar sucessões, a imergir na duração; foi aprendendo a ser tempo.

Com o vigor da sintaxe fabular, nutrida de replenação auditiva, o elemento visual foi sendo reduzido a adminículo adjetivo, mais ou menos utilizável, mais ou menos graduável, segundo pendores de temperamento e habituação.

Na fala escrita predomina a ausência. A outra fala, pragmática ou teórica, é uma fala coloquial, uma fala encenada. É toda feita de presenças: a presença e o ouvir de Secundo, a presença e o falar de Primo, a presença da melodia prolatória, cheia de intenções, a presença dos gestos e atitudes. Mas a fala escrita é uma fala de ausências: falta Secundo, para ouvir, e falta a "fala" de Primo, com sua distribuição prolatória, suas atitudes e gestos.

A fala escrita é uma fala auditiva visualizada. É fala de um só contexto, desfalcada que é do contexto teatral e do contexto mímico. A fim de compensar tanta ausência, faz replenação auditiva, recorrendo a vocábulos situadores e anafóricos. A fim de simbolizar a melodia prolatória, vale-se de convenções visualizantes, com sinais diacríticos.

Tais falas, que são falas de arte, estão a serviço da expressão do Sujeito. A fala estética opõe-se a fala técnica, uma fala transumana, obrigada ao esforço metódico de exprimir o Objeto, mediante um simbolismo isento de participação. A fala técnica procura manifestar, não reações de alguém ante a coisa, mas a própria natureza da coisa. Exemplo dela pode ver-se nos compêndios científicos, elaborados com trabalhosa linguagem, embora nem sempre trabalhada.


62.

A fala é um veiculo veiculando um veiculado. A língua é um veículo esperando serviço. Enquanto o assunto nos atrai para o veiculado, o lingüista sente atração pelo veículo. A língua é um veículo que pode ser estudado mecanicamente, mas não pode ser explicado mecanicamente, fora da intenção veicular. Está na intenção veicular a substância mesma da forma da língua.

Buscando situar o real em si, o observador faz ciência do Objeto. O lingüista, porém, vendo que a fala traduz o real, não em si, mas no homem, tem de fazer ciência do Sujeito. A fala humana, que nomeia e conceitua, só tem com o real o compromisso da alusão, enquanto vai manifestando as representações que inspira e as atitudes que provoca.

O trabalho do lógico, ante o Objeto, está no esforço de excluir participações, de excluir a atitude de Primo. Assim evita a fala subjetivista; praticamente, é toda a fala do homem, fala estética. A fala que evita participação é fala objetivista, fala técnica. É uma fala difícil, e que pede outra língua, visto a língua vigente ter sido forjada, multimilenarmente, no exercício de veicular repercussões, elaboradas em "reais" da vivência. Para nossos reais foi feita a língua, e não para veicular o Real.

O Real repercute em Secundo, fenomenicamente. Nossa filosofia diz que o juízo reflete o fenomênico. Era melhor dizer que o fenomênico se reflete no juízo.

Quando o homem olha a circunstância, não é para ver mas para verificar : está conferindo repercussões da hora com repercussões de outrora, internadas como representação e lembrança. O homem revê e reconhece o Objeto, estimulador de vivências já catalogadas. Basta dizer que, se alguma coisa, logo se assusta e previne, entregue ao prudente resguardo de quem se achou diante do ignoto, de quem se encontra desarmado, sem um prévio juízo, um prévio encaixe mental do fenômeno.

Durante a marcha horninizante da espécie, enquanto o fenomênico se foi refletindo na vida biológica, também foi sendo filtrado, devagar, em juizos vivencialmente elaborados e fabularmente transmitidos. No juízo é que o fenômeno se reflete quando, após o reflexo biológico, ele se faz reflexivo. Com juizos, motivadores de procedimentos, é que a sociedade afeiçoa um homem.

Uma vez refletido, biologicamente, em Secundo (vivencial), o fenômeno vai internado como repercussão e amoldado em conceito, no espírito de Secundo (fabular). Por vezes, não satisfeito com a imagem tradicional, Secundo, elevado a Primo, reinterpreta, reconceitua e retransmite, fornecendo contribuição de mudança. Quando a tradição incorpora a mudança, cresce o patrimônio.


63.

O contexto fabular faz um percurso entre a boca de Primo e o ouvido de Secundo. Consta de um modelado fônico a veicular um modelado mental. Falar e ouvir são dois claros momentos inter-individuais, ambos ativos, ambos importantes, na teoria da língua. Refutando um ponto de vista vigente, cumpre dizer que o ouvir, para o lingüista, é mais importante que o falar, pois no ouvir é que nasce a língua, objeto metódico do lingüista.

De tanto ouvir, Secundo acaba adquirindo habilidade, através de paciente elaboração vivencial. É uma conferência espontânea, sempre possível, a toda hora, enfiada na continuidade mental da vida interior.

Para a posse da língua, basta a saturação vivencial. Para a consciência da posse ou consciência da língua (objetivo do lingüista) cumpre deter-se naquela operação reflexiva que influi consciência, ao filtrar, em sedimentação, a decoada dos moldes e das disponibilidades: moldes frásticos, sintagmáticos, prolatórios, junto a um soluto de idéias e vocábulos disponíveis. Tudo isso é um trabalho mental de quem ouve, justificando o dizer-se que a fala é de Primo e a língua é de Secundo.

Quem recenseia os valores da língua faz anamnese. Mas não deve deter-se no momento posterior ou momento Secundo. Busque também o momento original, o momento fala, o momento Primo. Não se esqueça porém o julgador de que o poder fabular dos outros tem de ser julgado analogicamente, a partir do julgador.

A ordem do prestígio vigente, que dá mais importância a Primo, está na ordem "falar e ouvir". A ordem genética, porém, conserva a perspectiva discente docente. Olha primeiro o ouvir, dando importância ao fato de que "a língua é de Secundo". A primeira experiência do homem, ainda infante, não é a de falar mas a de ouvir. Ele nasce como Secundo fabular, Secundo ouvinte. No meio fica o momento aquisitivo, aquele tempo de filtrar falas para coar a língua, a fim de também falar, no jogo funcional Secundo e Primo, que enche a vida de Secundo Primo.

Ouvir e falar, receber e transmitir, são parcelas de uma soma cujo resultado é "língua". Os lingüistas porém, em vez de somar fizeram subtração. Nem mesmo Saussure, ao configurar a fala, soube aproveitar: não viu nela o ponto de partida e não somou. Vencido pela rotina, só admitiu a lingüística da língua.

A evidência, entretanto, está mostrando que a lingüística tem de ser da fala. A fim de se evitar a catacrese, pode ser que ainda se invente algum nome como "femiologia" ou "fabulística".

Deixe-se ao tempo resolver o problema. Fique porém assentado que a ciência da fala é ciência de uma específica manifestação humana. É ciência de um procedimento inter-individual, que a sociedade enriqueceu. O procedimento fabular é um procedimento condicionador, que deposita no indivíduo um patrimônio chamado língua.


64.

A quem ordena valores da língua logo se apresenta, enfática, a figura do vocábulo. Vem-lhe, o prestígio, daquela constante socialidade, em que vive, com a idéia da coisa. É uma dieta de reciprocidade reminescente: vai-se da coisa ao vocábulo e deste à coisa, através de um fato comum na economia vivencial, durante o contínuo fluir da fala interior, uma fala de quem nada está dizendo, mas apenas sentindo passar, na lembrança, o filme da vida.

Não admira que o vocábulo tomasse preeminência e que a lingüística vigente o tomasse como sua figura central. Mas vamos repetir, apontando o engano, que o vocábulo é um valor de quarta grandeza, e tão abstrato que sozinho não aparece na frase. Cumpre-lhe receber primeiro o endereço funcional dos morfemas. Depois, uma vez atualizado, já não é vocábulo mas sintagma; em seguida, desfeito o sintagma, com redução potencial, torna a surgir o vocábulo, mas também o morfema.

Desmontar frases para catalogar língua é operação que rende mais coisas que uma simples coleção de vocábulos.

Em primeiro lugar, as palavras da frase obedecem a uma sucessão tradicional, feita de lugares habituais, que constituem o molde frástico.

Em segundo lugar, a frase tem melodia tradicional, admitida no seu molde prolatório ou molde melo-rítmico.

Em terceiro lugar, a frase tem agrupamentos vocabulares tradicionais, que se revelam na estrutura do molde sintágmico.

Se são tradicionais a sucessão, a melodia e a relação intervocabular, então isto são constantes sociais da língua, superiores a algum arbítrio individual da fala. Aparecem na fala e catalogam-se como valores da língua. Chegam a Secundo por macia instalação, em lento ruminar de vivências. Vinda a hora de Primo falar, vêem-lhe as convenientes lembranças, a oferecer-lhe o relacionamento vocabular dos sintagmas, a sucessão dos devidos lugares e o competente vestido melódico.


65.

O molde geral da frase indo-européia, noticiando o procedimento de um ser, tem a figura de uma conveniência entre um sujeito e um predicado: o cavalo corre.

(Cumpre ressalvar que a visualização transcriptícia pode estar escondendo a riqueza de um ato fabular. Convinha era surpreender Primo e Secundo no autêntico do drama, sob os efeitos teatrais da densidade prolatória, das atitudes e dos gestos. Não raro, o menos importante, num ato de comunicação, é o contexto fabular.)

Assim como um procedimento ocupa o centro psicológico da atenção, assim também o sintagma verbal ocupa o centro da estrutura frástica.

Uma frase do tipo "o cavalo corre" consta de Nominativo e Verbo: NV. Se visto o procedimento, não se lhe viu quem o tem, a frase traduz apenas o predicado: chove, troveja, neva.

Junto ao centro verbal, situando o procedimento no espaço e no tempo, foram aparecendo sintagmas adverbais : o cavalo corre agora no Prado. (Junto aos sintagmas fundamentais, dois sintagmas adverbais.) O sintagma adverbal pode ter o sentido não espácio-temporal de uma classificação. O cavalo corre "com pouca vontade".

(Além da frase verbal, já tinha existência indo-européia a frase nominal, do tipo "vita brevis", ampliada em "vita est brevis"; "belo dia!", o dia está belo.)


66.

Uma frase do tipo NV, o cavalo corre, satisfaz bem a um sentimento de plenitude, que vê elementos accessórios nos adverbais de situação.

Entretanto, com o progresso mental da fala indo-européia, a relação de causa e efeito inspirou o molde do tipo Caio comprou casa, feito de Nominativo Verbo e Acusativo, NVA. Foi desdobrada a função predicativa, pois além do procedimento em si, o verbo o traduz também na sua projeção. Do encadeamento semântico "agente processo paciente" foi procedendo a idéia de sujeito agente e sujeito paciente, na mal exposta categoria da voz.

Assim, pois, ao molde do tipo Nominativo e Verbo, ajuntou-se o do tipo Nominativo Verbo e Acusativo de paciência. Junto ao binômio NV, o trinômio NVA.

Ao lado, fica o trinômio "Caio é bom" da frase nominal: Nominativo, verbo ligativo, e nominativo predicativo; Nvn.


67.

A generalização do molde sujeito-predicado representa uma conquista racional. A fala do homem arcaico, im pedido do aqui-e-agora e agarrado ao visivo, devia ser uma fala mais ocupada de expansões que de notícia das coisas. Ainda hoje perduram, como persistências, estruturas truncas de tais expressões, parafrasticamente interpretáveis, mas alheias à forma de sujeito e predicado. São frases de molde infrafabular como "fogo!" "socorro!".


68.

Não é fácil de sumariar, numa exposição escrita, a importância do molde melo-rítmico. Passemos então ao molde sintágmico. Sintagma é cada um dos elementos funcionais da oração. Além do Verbo, espécie de super-sintagma, são sintagmas: o Nominativo, o Acusativo de paciência, o acusativo e o ablativo espácio-temporais, e o dativo. (O Vocativo é um sintagma em destaque.)

O que marca o sintagma é o fato de ele ser um elemento adverbal, binomialmente relacionado com o centro do predicado. Os elementos adnominais não passam de sub-sintagmas.

A posição dos sintagmas, no molde frástico, é regida por uma sucessão tradicional. Veja-se como Raimundo Correia, no mesmo soneto e com os mesmos sintagmas, fez dois versos diversos:

A lua banha a solitária estrada, NVA; A lua a estrada solitária banha, NAV.


69.

Quem desmonta frases encontra sintagmas. Quem desmonta sintagmas encontra vocábulos e morfemas. Desmontando a morfia fabular, a lingüística já consegue o bastante para compreender a estrutura da língua. Na verdade, porém, a rotina e a metódica, enganadamente, começaram na morfia vocabular. Aí se estuda a feição fônica do vocábulo, submetido a anatomia silábica e fonética. Mas tal estudo é apenas um exercício curioso e didático. Não é lingüística central.

Estudando a morfia vocabular, encontra-se o problema dos morfemas nocionais, diversos dos morfemas relacionais. Estes, entram na sintagmática. Há morfemas relacionais inter sintágmicos e intra-sintágmicos. Há morfemas fusivos e autônomos, adverbais e adnominais.

A morfemação nocional fica no plano intravocabular. Tem sentido semântico e enriquece noções. Facilita aproximações analógicas e agrupamentos cognatícios, como porta portaria porteiro comportar etc.

O morfema relacional é fabular, mas o morfema nocional é vocabular. Aquele, endereça relações binomiais de sintagmas. Este, alterações semânticas na veicularidade do nome.


70.

A história da língua indo-européia, rompendo fronteiras dialetais, revela que a multiplicidade atual sucedeu a uma antiga unidade, anterior a uma vasta diáspora tribal, cujo fluxo tem ondas de séculos. É fácil de supor o esquema da, redutibilidade, na via de recessão, mediante planos sincrônicos sotopostos. Na rota quadrimilenar, historicamente traçada ou arqueologicamente indicada, corre uma linha patrimonial de valores antigos, marcados de necessidade metamórfica, na direção daquelas tendências fônicas impressionantes, que deslumbraram o organicismo de Schleicher e o mecanicismo dos gramáticos de Leipzig, colegas de Saussure. Cumpre reordenar a perspectiva da metódica indo-européia, eliminando o plural da palavra língua. Não existem línguas mas a língua, evolutiva como o homem, caminhando sempre para estados posteriores, dialetais. Também o indo-europeu é dialeto de um estado anterior. Fica-lhe o nome língua não por diferença, mas por conveniência, dado o limite da possibilidade verificadora, que nele se detém, como em ponto final da linha recessiva.

Todo estado posterior é outro dialeto. Todo estado continuado é o mesmo dialeto. Na área do interesse latino, a língua indo-européia exibe quatro largas posições dialetais: o estado pré-romano, o estado romano, o estado românico, o estado pós-românico. Latim romance e português não são três línguas mas três momentos diversos da mesma língua.

 

 

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