VOCABULÁRIO AUXILIAR
Primo e Secundo. - São os dois functores
do ato fabular ou ato de fala; o transmissor e o receptor; são
dois símbolos e não dois personagens. Quando falam
duas pessoas - Caio e Tício, por exemplo - cada uma vai
sendo Primo e Secundo, no suceder das intermitências dialogais.
Real e real, Vivência e vivência. - O autor abusa da consignação visualizante. " Real" é a coisa em si, o Objeto em si, inclusive o homem biológico, base física do espírito e "real" é a coisa em Primo, o objeto mental, a idéia. "Vivência" é o contacto direto de Secundo com o Real, o Não-Eu; simbiose do Sujeito e do Objeto e "vivência" é a translação e elaboração mental das repercussões que o Real deixa no espírito.
Sistemas - Sistema de reação ao estímulo da coisa: primeiro sistema; sistema de reação à representação mental da coisa, suscitada num símbolo, principalmente fabular: segundo sistema.
Morfema relacional - É o endereço funcional que o nome recebe, ocupado na frase. É desinencial, vocabular, posicional, melódico.... Ao morfema relacional opõe-se o morfema nocional, formador de vocábulos, importante no estudo do cognatismo.
Sintagma - Fugimos a nebulosa continência
da conceituação saussuriana. Sintagma é apenas
cada elemento funcional da frase; é univocabular
ou plurivocabular. Há 5 sintagmas no exemplo "Caio
deu um livro a Tício, de presente"; as funções
casuais, principalmente as várias funções
do acusativo e do ablativo, deixam prever quão numerosos
tipos de sintagma conta a nossa língua; consta sempre,
num sintagma, o vocábulo e o morfema.
A tranqüilidade experimental de nossa conceituação
pode ser obtida, exaustivamente, mediante a análise das
relações funcionais ou análise da relação "a
x b"; é uma análise binomial que, sendo
interpretativa e histórica, supera, em realidade e verdade,
a mal segura análise corrente, logicista e formal.
Poderá ser chamada de "sintagmação" a energia usual de certas coesões vocabulares, imissora de um distúrbio canceroso e fossilizante, na dieta normal da sintagmática.
1. O DEFINIR E AS DUAS VIAS
Diz S. Agostinho que tratar de palavras
com palavras é tarefa complicada: verbis de verbis
ágere implicatum est. (Cf. De magistro, 5.14).
Não há, porém, outro jeito de tratar
da palavra senão mediante a palavra. Tratemos, pois, da
palavra, com palavras.
Ao definir, Primo influi, no seu contexto um sentido "fabular" transmitido a Secundo. Tal sentido, porém, está longe de ser aquele sentido exato requerido na ciência, um sentido que ela obtém por estrutura simbólica deducente, num regime seriado em que o definido b, fundado em a, está fundando c.
Conhecer bem é um ato de inteligência que primeiro põe o objeto, em seguida o penetra e afinal o define, inundando de luz a coisa abrangida. Quem compreende com os sentidos, conhece com a inteligência, esse constrói o real no espírito.
Por duas vias noticiárias chega o objeto
a Secundo, o homem que aprende: pela Vivência e pela convivência.
A Vivência é um encontro direto com o Real, dosado
nos efeitos, individualmente, conforme a experiência de
cada um. A convivência é um encontro indireto: é
a notícia do Real vivido por outrem, o Real reduzido a
"real".
Na primeira notícia, que é de todo
o Eu, os sentidos inferem à alma as repercussões
do objeto, no corpo a corpo com o Real. É uma notícia
sensível. A segunda, que é do ouvido - a perceptio
ex auditu, referida em Spinoza - é uma notícia
fabular, constituída na sintonia
reminiscente entre as palavras de quem fala e a inteligência
de quem ouve. É uma notícia descritiva.
Na Vivência, Secundo vê o Real no Real. Na convivência, vê o Real através de Primo.
Em todo Secundo socialmente
integrado existem dois homens: o homem capaz de comunhão
com o Real, ato de simbiose inefável,
e o "homem fabular", indivíduo nutrido de "real",
que são as idéias do Real vigentes na grei. São
idéias tradicionais, veiculadas na boca dos maiores. Secundo,
um dia, será Primo e também as transmitirá aos
menores. Todo homem é Secundo, quando ouve, mas se faz
Primo quando fala.
2. O ATO FABULAR E A CONSCIÊNCIA
Entre Primo e Secundo nasceu um dia o ato fabular. Isso começou, parece, faz algumas centenas de milênios. E deve ter começado por uma fala inconsútil e rápida, uma fala de vozes sarjando, operatoriamente, o drama dos encontros, uma fala de sôfregas intermissões impetuosas, envolvidas em gestos e procedimentos corporais, durante a hora e lugar da ação.
O ato comunicatório do homínida seria
uma fala vivencial e parca, no seu mínimo contexto fabular
ainda não autônomo, fala de signo adjacente à coisa.
Milênios passando, foi progredindo o efeito convivencial,
na definitiva expressão do homo loquens, absorvido
na tarefa de conferir, internadas no espírito, as repercussões
do Real.
A "faculdade fabular", exercendo-se no "ato fabular", patrimonializou o "recurso fabular": a "linguagem", um dom, através da "fala" criou a "língua".
O ato fabular instalou sociedade entre
Primo e Secundo, engendrando a socialidade, esta sublimação
da gregarice. Sociedade lembra socius, o companheiro.
Varrão poderia ter explicado "socius" como "quasi
sequens" (o que acompanha) caso lhe ocorresse o que não
ocorreu aos etimólogos latinos, isto é, apresentar
em socius um cognato de sequi (seguir), hipótese
hoje admitida entre glotólogos. O tempo ensejou reciprocidade
semântica no conteúdo da palavra socius, mas
'seu primeiro sentido era oposto ao de dux (o que dirige).
Foi a proposição fabular, facilitando entendimentos,
que facilitou o harmonizar anseios e vontades, levando Secundo
a seguir Primo. O homem, sem a fala, diz S. Agostinho,
não se teria associado a outro homem: nec hómini
homo firmís sime sociari posset nisi colloquerentur. Para
isto, viu que tinha de impor às coisas os seus nomes, feitos
de sons significantes: vidit esse imponenda rebus vocábula,
id est, significantes quosdam sonos. [Cf. De ordine,
12.35].
Instituída a fala, ficou instituída a sociedade, institutriz do homem, a quem ela ministra a sua reserva de imagens e imaginações tradicionais, em que Secundo vai nutrindo, vivencialmente, a sua experiência.
O mundo é grande em si, mas limitado no
homem. Diz Riobaldo, o herói do sr. Guimarães Rosa,
que o sertão é do tamanho do mundo. [Grande
Sertão,Veredas, p. 71). No mundo que é seu
é que o homem existe, entre Vivências e vivências:
ou a simbiose
do Objeto com o Sujeito, que a ele vai, ou a internação
mental da idéia do objeto, importada pelo Sujeito. Na simbiose,
o Real repercute em Secundo, como Real agente, espontaneamente
semeado na alma, Real sativo, exibindo energias da ingenuidade
primeira, num instante anterior à discriminação
entre cógnito e cognoscente. Recito outra vez Riobaldo,
grande filósofo do viver, ao afirmar que a gente só
sabe bem aquilo que não entende. (Cf. pág. 357).
Mas a Vivência é uma graça difícil.
Com ela sonhara BERGSON, ao abrir-lhe, fresta suave, a porta da
intuição. Infelizmente, já socialmente condicionado, Secundo cresce
tolhido nos empecilhos da imagem tradicional. Tem de contentar-se
com o pábulo cotidiano da vivência, nutrida nas representações
que a humanidade vai construindo vagarosa, mediante vagarosa reflexão.
E enquanto o mundo continua mundo o Sujeito vai mudando, diante
do Objeto.
Do mundo promanam repercussões transfeitas em real no espírito do homem. Quem deseje medir o grau dessa elaboração deve examinar alguns fatores contribuintes:
1. o a ciclagem biológica do meio ambiente, com seu efeito individual e distributivo, cuja feição difere, se visto no infante, na criança, no adolescente, no varão, ou no velho;
2.° a cota de patrimonialização vivencial de cada pessoa;
3.° a cota de plenitude da plenitude social;
4. o o nível comum da energia espiritual,
aquela densidade plástica do esforço de superar o
cotidiano, agindo no afluxo das subministrações contingentes.
Na elaboração vivencial é que
se forma a consciência. Recebendo o real fabular, Secundo fica
cheio de condicionamentos e predisposições que influem
na sua comunhão com o Real. Chegando a Primo, possuidor
de "reais", já está quimicamente definido:
sobre a consciência reflexa, que imerge na simbiose, a energia
do grupo lhe acondicionou uma consciência construída,
uma consciência reflexão. A consciência construída
nutre-se de convivências; a convivência nutre-se de
falas; e a fala é um ato de sintonia comunicatória.
Quando falha a sintonia, Primo tem de empenhar-se no trabalho
de representar uma vivência não
experimentada por Secundo. Se pode mostrar o objeto, a situação
encontrou via solutória. Entretanto, se não tem mais
que o recurso fabular, aí se vale das analogias, numa circunstância
em que entram, para dificultar a representação, tanto
as predisposições subjetivas do paciente como as
sugestões fabulares do apresentador. É difícil
de o sentido fabular conter um sentido.
3. O SENTIDO FABULAR
A capacidade fabular tem servido ao homem nas ciências
de direito - a lógica, a ética, a estética
- mas serve mal às ciências de fato, ciências
verificantes, observadoras do procedimento do Real. Essa incapacidade
da fala humana vai forçando a logística ao trabalho
de construir a sua fala técnica, na simbolização
de uma fala transumana.
Ao definir um cognoscendo, Primo busca imagens no conhecido, imagens que já estejam no recurso fabular, isto é, na língua de Secundo. O que vai "associado" na fala de Primo já deve estar como "associável" na língua de Secundo: são vocábulos e termos que, potenciais na língua, surgem efetivos na fala.
O momento de definir alguma coisa não entendida
pelo ouvinte é uma momento vivencial e didático, sujeito
ao padrão individual dos interlocutores: a altura da experiência,
a riqueza e reflexos do nutrimento social. Sabe Deus quanto contrabando
de enganos passa a humanidade em momentos assim! Mas existe também
uma situação didática social mente programada,
quando a experiência maior se transmite em lições. É uma
situação em que se pode ver, constante, o perigo da
definição meramente fabular.
O que faz imperfeito um sentido de frase é o
fato de o real nela contido não ser o real, o Real em si,
mas um real pessoal, existente em Primo. Constitui-se ele de uma
idéia socialmente recebida, humanamente tradicional,
e talvez temperada, vivencialmente pela experiência
do indivíduo. Referindo-se ao Real, o homem, entretanto, só lhe
abrange, na fala, as repercussões que dele tenha recebido.
Chamando de Real o objeto, e de real a sua imagem,
diremos que o homem não define o Real, pois só é capaz
de definir o real. Podemos até dizer, agravando da sentença,
que nem o real o homem define, pois a humanidade é que
o tem definido.
O homem nasce não como Primo - o ser que
define - mas como Secundo
- o ser que ouve e recebe. Recebe a vida, o mundo e a imagem do
mundo, socialmente definida. Chegada a hora de ele dizer as coisas,
posto na situação de Primo, já é um
homem condicionado, cheio de imagens feitas. Vi vendo de um real
recebido, vive de um real que não é dele
mas de seu clã. Se o grupo é fortemente hominizado,
então Secundo
recebe riqueza de real, com boa notícia da tradição
humana. Dentro dela, um milênio de persistência cria
frutos maravilhosos. Na crença das pitagóricas harmonias
é que germinaram as leis de Képler; e a ciência
da química, ao tomar seu início, estava à
procura da pedra filosofal.
4. O MARCIANO
Se a fala apenas contém o real, e não
pode conter o Real, tratemos do real primeiro e do real derivado,
relembrando
que Real é o Real em si, a coisa em si, o Objeto
inefável - uma situada fonte do real, que é a
coisa em nós, uma repercussão em nós, uma representação
fabularmente expressa.
Na definição do real primeiro, representa-se uma coisa que Secundo já viu ou pode ver. Em verdade, porém, quanto mais cotidiano menos fácil de caber em definição um objeto: escondem-se os limites do enunciável, sob a crosta vivencial de iterações que o diário destila.
Recém-chegado à Terra e posto em conversa com Tício, imaginemos um marciano que lhe houvesse perguntado "que é aquilo", ao ver aproximar-se um homem a cavalo; que, ante a resposta "aquilo é um cavaleiro", quisesse também saber que é um cavaleiro; que, ouvindo dizer "cavaleiro é um homem a cavalo", pedisse afinal a definição de homem e de cavalo...
O melhor jeito de responder seria: apear o cavaleiro;
distanciar bem um e outro animal; e, pensando nas claras idéias
cartesianas, apontar a cada um, enquanto fosse dizendo: "homem é aquilo" e "cavalo é aquilo".
Caso fosse dito, academicamente, que o homem é um "animal
racional", de certo que o marciano, olhando, ficaria sem "ver" a
diferença. Caso dissesse que o homem é um "bípede
implume", poderia o outro achar graça em ver referido à ave
um ser tão parecido com o macaco...
Pouco valeria a identificação fabular,
numa circunstância em que podia servir a exibição
dos objetos. Mostrar o Real é um procedimento que tem sua
vantagem: desaperta a obrigação de definir.
Imaginemos tal marciano, por ser vindo de outro planeta, completamente desprovido de nossos padrões analógicos, nulo ainda o teor de suas vivências terrestres. Quem não tem padrões analógicos não pode aferir os valores de uma experiência. Logo, entre o marciano e Tício, ficaria aberto e perfeito, um hiato de intransitividade comunicante. Nem mesmo com o apontar se conseguiria o efeito imaginado, pois entre os seres terrestres, quando Tício aponta uma coisa des conhecida, logo recebe Caio, de seu mundo analógico, imagens pertinentes. Até algum nome aceitável pode ocorrer-lhe. Ressalve-se, todavia, que a pertinência aqui alegada vai referida, não ao Real do objeto visto, mas à repercussão dele na alma condicionada de Caio.
Não costuma ser difícil batizar uma
nova coisa, mediante a predicação analógica,
pois jorra da translação, como de fonte, a energia
poética das diassemiações fabulares. A graça
com que o nativo tribal traduz uns tantos sentidos civilizados tem
sido motivo de admiração para o homem branco e aristotélico.
Chamar, por exemplo, a cachaça, de "água-de-fogo" -
foi uma lembrança ocorrida aos nossos índios do Araguaia,
os quais também chamaram à bala de "semente-de-carabina",
deram o nome de "casa-da-cabeça" ao guarda-chuva.
5. A ANALOGIA
A analogia é um
estímulo assimilatório que rege o homem, na vocabulação
das coisas. Para impor nome ao que existe, PLATÃO imaginou
um nomóteta ou legislador. Nós diríamos que
esse nomóteta é a analogia.
A origem das primeiras "nomeações" vocabulares
perde- se na manhã da língua e da espécie. Mas
podemos imaginá-la como tendo sido uma espontânea reação
vocal - uma reação vocal secundária, globalmente
sincronizada com o procedimento de Primo, na hora pragmática
do drama. Era uma reação ainda condicionada à presença material do
estímulo. Entretanto, reiterada e reiterável, ela -
condicionada à presença material - foi passando a
condicionadora da presença mental do estímulo,
quando bastou a voz, em outro lugar e hora, para lembrar a coisa
não presente.
Foi assim, parece, que a representação mental "criou" o espaço e o tempo, gerando no espírito a vivência das sucessões, reminiscentemente transportáveis a outro lugar e hora.
Foi assim também que o homem foi passando da
presentação para a representação. Da
coisa, para a idéia da coisa. Da reação à coisa
para a reação também ao símbolo da coisa.
Foi a instalação social do que PAVLOV chamou de segundo
sistema de sinalização.
A reação vocal em presença da
coisa, área da fala pragmática, iria suceder,
em progresso, a reação fabular ante a idéia
da coisa não presente, a promissora fecundidade da fala teórica, a
fala do homem que "cogita" e move no espírito as
imagens do mundo.
Sendo a outra fala operatória, a fala propriamente
dita é a fala
teórica - uma fala cheia de categoria, gerando a língua
e sua capacidade. No reino da posse representacional, o homem confronta
idéias vocabularmente figuradas. Vê semelhanças
e dessemelhanças. É o império da analogia.
Examinando o nome de um ser ou de um procedimento
- ora notamos que ficou na solicitação de um primeiro
aspecto sensível - ora percebemos que o inspirou alguma
fantasia ainda não esquecida, ou rastreável, - ora
nem podemos desconfiar de seu motivo, perdido no subtil e no contingente,
desfeito já o poder de qualquer irradiação,
o que deixa em trevas o etimólogo. A metódica atual
pode rejeitar, da lingüística, a infeliz classificação
de signo arbitrário: todo vocábulo é
ou foi motivado. O que existe é motivação
conhecida e motivação ignorada. Os vocábulos
são claros ou escuros, como lhe chamava Nyrop.
A analogia é a grande inspiradora das "nomeações", quer sob o efeito de algum impulso fonossêmico, espontâneo, quer sob o efeito de alguma intenção propositada.
Tomemos um exemplo, mediante a idéia "cavalo".
Existe no mar um peixe que não tem aspecto
de peixe e tem cara de cavalo, por isso o povo o chama de "cavalo",
apesar de ele ser pequeno. Seu nome é "cavalo marinho".
Os letrados chamam-lhe "hipocampo", tomado ao grego o vocábulo,
e daí provam duas coisas. Primeiro, que a mutuação
de um nome aloglótico pode ser esconderijo de analogias,
visto ser "hipocampo" um criptônimo de "cavalo".
Segundo, que a analogia é muito
antiga, visto que o animálculo já era chamado de cavalo.
Mas, em vez de cavalo- marinho, era "cavalo recurvo", em
lembrança da cauda, curvinha e preênsil. "Cavalo
recurvo" é o que significa hippó kampos, forma
grega, latinamente transvocabulada em hipocampo.
Essa é uma analogia do
primeiro aspecto. Vejamos agora uma analogia fantasiosa,
uma analogia entre
cavalos que não são cavalos nem se parecem com cavalos.
Vejamos o "cavalo-de-judeu". Trata-se do inseto chamado libélula
- vocábulo também fantasioso, pois é um
sobrediminutivo de balança, que os latinos dizem libra. De libra vem libella
e libéllula, ou seja balança, balancinha e balancinhazinha.
Entrou pois, no nome do inseto, como denotação descritiva,
a idéia de equilíbrio e nivelamento, inspirada nos
jeitos libratórios da bestiola. Mas o povo, naquele corpo,
em vez de balancinha viu bastonete, parecido a um cavalo de bruxa.
E viu, ainda por cima, uns trejeitos de dar sustinhos no cristão...
Só mesmo "cavalo-de-judeu"!
6. AS VIVÊNCIAS E OS REAIS
Retornemos àquele marciano de vivência terrestre
zero, a quem Tício apontara dizendo "aquilo é um
cavalo". Sendo nulo e vazio em padrões analógicos,
lá estaria ele, na direção do dedo ticiano, a
contemplar o Real, submisso a virgens impactos, nos golpes genésicos
da primeira percepção. Lá estavam Sujeito e
Objeto: o Sujeito, vendo; e o Objeto, sendo ante o Sujeito. Era a
coisa-em-si, ante um Secundo de
vivência zero, entretanto nele como em aposento intacto, por
via das aferências sensíveis. Era uma simbiose de
Sujeito e Objeto, uma Vivência do Real. Era o momento em que
toma início a "vivência" - aquela transposição
representativa das repercussões, no internamento mental e
posse da imagem.
Era uma geração de consciência,
e a geração da consciência é uma luta
com os reália. O homem, vivendo "biologicamente" do
Real e no Real, vive "espiritualmente" no real e do real,
pois vive das imagens do Real. A estrutura do realmentado importa
mais conteúdo que a resposta direta dos perceptos, porquanto
se tempera vivencialmente, na sensibilidade, na fantasia, e na lógica,
durante a sedimentação plurimilenar. Já definimos
alhures a tríplice fenomenologia do objeto, visto em si, em
Primo e em Secundo. Visto em si, o objeto é um potencial
de representações. Visto em Primo, toma o sentido
Primo. Visto em Secundo, o sentido Secundo. O instalar da consciência é um
longo serviço do condicionamento vivencial, estendido em
centenas de séculos humanos, acervadores da sucessão.
Pode-se imaginar o real que, do Real, tem
filtrado a humanidade. É um real abstrato, acrescido de um
real derivado. Além da imagem do Real, as imagens da imagem,
uma noção do mundo interior, sem autonomia de resposta
no mundo exterior. Quem define o homem como um "bípede
implume" representa-o descritivamente, tomando-lhe um aspecto
sensível do ser. Nosso marciano "veria" a diferença
entre "implume" e "emplumado". Quem o define
como "animal racional" representa-o classificatoriamente,
mediante noção não do ser mas de um procedimento
dele, uma noção posterior à primeira sensibilidade.
Nosso marciano, olhando o homem e o cavalo, ficaria sem ver a diferenca
entre "racional" e "não racional". Era
uma diferença que deduzir, vivencial mente, enquanto observasse
o proceder dos seres vivos.
Recordemos, pois, como sendo os "reália" da
representação fabular, os dois reais, ambos abstratos:
um abstrato do primeiro grau e abstratos de graus posteriores. Um
real derivado do Real (reale ab Reali) e um real derivado
do real e subderivado do Real (reale ab reali ab Reali). Neles
e deles vive Secundo, enquanto se faz homem e enquanto se conserva
homem, tomado espiritualmente. Sua vivência é uma
complexa elaboração, em que funde os eflúvios
do Real e a notícia do real, fabularmente veiculada, notícia
em que o imerge e macera a sociedade dos seus. Quando, chegado a
Primo, pode falar, vê-se feito num armazém de vocábulos
insuficientes, vocábulos incapazes de conter o Real. E a fala
fica sendo, como alega BERGSON, um véu interposto, a ofuscar
o Real. Arma-lhe uma rede impediente, semelhante à teia de
Hefesto, na qual o deus grego, por desforra, envolveu, de uma feita,
Ares e Afrodite.
7. A FUNÇÃO DE SECUNDO
O caso do marciano é uma utopia
que nos serve uma outra hipótese, reduzida a uma pergunta:
de quantas iterações
vivenciais careceria ele para bem compreender?
Bem compreender é internar bem, na consciência, os procedimentos do Real, frutificados em corolários, frutifica dos em reais com que o homem volta ao Real e o submete à disciplina da inteligência. Foi assim que superou a mera animalidade. O irracional sobreviveu adaptando-se ao mundo. O racional, adaptando a si o mundo.
Se o caso do marciano é uma fantasia, entretanto nos ficam os Secundos terrestres. Mas eles, quando começam a "ver", já não trazem aquele requerido estado de inocência, predispostos que se acham, pelo condicionamento social. A imagem do que internam consigo vão elaborando, mediante iterações revivenciais e analogias contingentes. Enquanto isto, vai amadurecendo a função de Primo.
Para o marciano, o ato de apontar fora inútil, apesar de que Tício estava "falando", estava "dizendo" alguma coisa. Disso entende um Secundo terrestre, para quem apontar com gestos ou apontar com vocábulos é ato de comunicação.
Apontar é falar e falar é apontar. É um ato em que Primo endereça a "intenção" de representar. O papel de secundo é entender, mentando a representação, não sob o estímulo vivencial do objeto, mas sob o estímulo "fabular" do ato comunicatório.
O ato fabular gera a sintonia de duas representações: a representação do sentido Primo, na "intenção" de Primo, e a representação do sentido Secundo, no "entender" de Secundo. Por isso a fala é uma dinamia bipolar, uma coordenação dienérgica. Tal conceituação rejeita aquele juizo em que Saussure imagina a fala como ativa em Primo e passiva em Secundo.
Metida no engano vocabulista, a lingüística tem menoscabado o papel de quem ouve na comissão do ato fabular e, pois, na língua. Estuda-se o ato em quem fala, sem o medir em quem ouve, apesar de não ser metódico examinar apenas um dos lados, nesta ação entre dois, origem de um recurso comum, o recurso da comunicação.
O engano vigente provém do erro de compreender o ato fabular como o trânsito mental de uma idéia "ativamente" veiculada na fala e "passivamente" recebida na audição. Nós, afirmando que o ato fabular é uma sintonia, estamos negando a admitida transitividade; afirmando que é uma dinamia bipolar ou dienérgica, estamos afirmando a importância de Secundo.
Se fosse caso de primazia, pudéramos dizer que quem vem primeiro é Secundo.
Secundo nasce e cresce como Secundo vivencial, recebendo as repercussões do mundo. Como Secundo vivencial ainda, ouve as idéias que falam nele, pois vivem falando, dentro de nós, as idéias. Como Secundo fabular, ouve e recebe a notícia do mundo, na fala de seu clã. Afinal, quando, na condição de Primo, ele fala, suas falas não passam de ilhas no mar oceano da audição interior, na fala constante da vida, falando sempre dentro de nós.
Para se fazer homem, Secundo exerce duas paciências a paciência de ouvir bem a Natureza e a paciência de ouvir bem o semelhante. No viver bem ordenado, conforme o conselho de CLAUDE BERNARD, cumpre deixar falar a Natureza, em vez de falar por ela; no conviver bem entendido, aprende-se a lição de quem teve melhor experiência.
No homem pré-aristotélico ou tribal,
a aprendizagem modela-se por uma tradição fortemente
encadeada e estreitamente peculiar. Mas o homem aristotélico,
imerso na ampla circunstância de uma cultura instalada, tem
de abrir a inteligência à variedade que o rodeia, à tradição
que lhe vem dos séculos, à intuição com
que lhe acena o futuro. Está sempre ouvindo: é sempre
Secundo.
8. A FALA É UMA SINTONIA
O gesto que aponta é uma fala visual. Excitado
pela idéia "cavalo", ante o cavalo, Primo aponta
e, apontando, excita a idéia em Secundo. Então se encontram,
por sintonia, no mesmo objeto, a idéia Primo e a idéia
Secundo. Um apontando e o outro olhando, cada um se transporta ao
objeto: re fert se in obiectum. É a sintonia Primus
in obiectum et Secundus in obiectum. O gesto é um e o
efeito são dois. Dinamia bipolar ou dienérgica.
O gesto é resíduo estrutural de um procedimento
arcaizado, lembrança econômica de um movimento recolhido,
retenção de frutos de um velho estímulo animal.
Tradução maior da vivência aqui-e-agora,
ficou reduzido a esboço dispensável quando o homem
aprendeu a simbolizar na voz a imagem da representação.
O veículo
vocabular ensejou a desaderência e autonomia do signo, para
início do segundo sistema, socialmente instalado: em vez do
objeto, bastou o estímulo do símbolo.
O poder de internar e externar a imagem do mundo, veiculada na voz, é o acontecimento básico da hominização. Faz pensar na interferência divina, o milagre da distância aberta que vai de Sócrates ao pitecantropo. A ciência não explicou Adão; mas imagina, deduzindo, momentos funda mentais
1. a bimanização do quadrúmano,
favorecendo a autonomia dos membros anteriores, livre a mão
ansiosa do homo faber, para sentir a forma e a ductilidade
das coisas;
2. a verticalização da postura, ensejando
a horizontalidade do olhar que tacteia longe o mundo e a redisposição
craniana do cérebro, registro das aferências internadas
pelo homem que vê, homo íntuens;
3. a sintonização da idéia com
uma voz condicionada, veículo do comércio mental e
da socialidade do
homem fabular, o homo loquens.
Manifestar a representação mental
da coisa, mesmo au sente, num poder de transferir a outro lugar
e hora, é capa cidade tão estranha ao hic-nunc-ismo
animal que alguns filósofos querem negar à irracionalidade
o poder da representação. Diz Bergson: O instinto
não carece de perceber objetos, basta-lhe distinguir propriedades.
A lembrança perceptiva do cão só aparece
na hora de reagir a outra percepção e, mais do que
lembrança, é uma nova reação. Mas
o homem é capaz de representar o passado, de evocá-lo
e com ele sonhar. [Cf. Evolution, p. 196 e 2O6]. Entretanto,
vendo que uma coisa é representar e outra coisa é
"manifestar" a representação, poderia
admitir-se que há representação entre irracionais.
Que pensar, por exemplo, de um cão que dorme e sonha: estará
reagindo a representações ou estará reagindo
a estímulos diretos que sente e não percebemos?
Que pensar também do bailado signífero da abelha,
cuja "linguagem" tem estudado o professor Karl von Frisch?
Conhecemos no bruto o procedimento amostrado, mas
ignoramos a continuidade interior de seu existir. Damos notícia
da reação vital, mas ignoramos a reação vivencial.
Podemos separar a representação da expressão,
imaginando de um lado o internamento das aferências sensíveis,
vivencialmente elaboráveis e, do outro, a manifestação
ou sinal externado de sua existência. A vida irracional ficou
adstrita a expansões instintivas, pois não tem expressão "liberada" para
as representações, se é que tem representações.
Afora a expansão emotiva de todo animal, ou a simbolização
automática de procedimentos como da abelha, o bruto carece
de expressão socialmente instituída. Falta-lhe o recurso
fabular.
O indivíduo aprendeu a enriquecer o patrimônio
pessoal de representações no armazém social
da tradição, onde se ajunta, incorporante, a experiência
humana anterior. Estendida e continuada nos milênios, a expressão
fabular exerceu, discriminou e disciplinou o instinto, a inteligência,
a razão, a consciência. Pelos sinais externos da
fala, o homem foi avezando-se a calcular o que deve estar dentro
de outro homem. Não que Secundo veja
o que na fala de Primo se amostra mas porque vê a analogia do
que traz no entendimento. É o paradoxo do ato fabular:
Primo, falando, mostra o que está no espírito de Primo.
Secundo. entendendo, entende o que está no espírito
de Secundo. Salva-se a compreensão pela mesmice da analogia,
fundada na hominidade autêntica
da espécie: homo hómini símilis. A
compreensão, veremos, não é de origem fabular
mas de origem vivencial. A fala faz ver a representação,
mas a vida é que a faz compreender.
9. O SEGUNDO SISTEMA
A faculdade analógica é de base vital: funda-se na capa cidade animal de representar e de imitar. Quando um bruto gregário reage à presença da coisa, reagindo ao estímulo direto, e na mesma hora reagem também os outros elementos da manada, estes procedem por imitação. Tal faculdade mímica
elevou o gesto à categoria de signo, fechado embora na área do primeiro sistema. É uma reação presencialista, ainda irracional.
Entre os fenômenos escondidos da hominização está a
misteriosa e transcendente mudança do homínida, quando
aprendeu a reagir, para além da coisa, também ao símbolo
da coisa. Foi o "segundo sistema de sinalização", acrescido,
como energia, à reação primária do animal.
O dom fabular discriminou a espécie. A fala hominizou
o homínida. Isso foi um progresso multimilenar, paciente,
cooperativo, tradicional. aditivo.
No dia em que aprendeu a trocar a coisa por sua representação,
veiculada na voz, o homem transformou o real num objeto portátil
e meneável, ordenado em valores pela cooperação
da fantasia, da analogia e
da lógica. A multiplicação social, teimosamente
iterativa, enriqueceu a consciência tradicional. Inserindo
no procedimento seguinte o lucro da lição anterior,
o homem foi acervando proveitos da experiência. Melhorando-se
na escala, foi transfazendo o seu poder mímico, meramente
animal, em poder analógico e simbólico, fecundamente
racional.
10. NOMEN
Na sintonia humana, o
gesto de apontar, ato comunicatório, pode ser traduzido
na fórmula pragmática "Primus- res-Secundus";
mas o gesto de falar já será figurado por
uma fórmula teórica: "Primus-nomen-Secundus",
que abriu caminho de perfeição à dinamia bipolar
do entendimento. Em vez de a imagem mental se reportar à coisa
por um gesto, passou a lembrá-la por um nome. O gesto é servil
e presencialista, ligado à coisa; o nome, ligado à imagem, é serviçal
e portátil.
Na medida em que o nome se foi apurando em ductilidade
significante, evocando o ser e o processo, foi crescendo a habilidade
fabular, isenta, cada vez mais, da contingência teatral.
Guardar no espírito, como representação, o que antes fora presentacão, já era um grande poder. Mas o poder de manifestar a Secundo essa representação, em outro lugar e hora, álibi et ólim, eis a magna maravilha. Assim ficou definido o meio de importar o real para dentro da consciência, este internato em que o homem constrói o mundo. Ganhou-se alforria de uma servilidade aborrecida, fatal ao bruto, ao mutum pecus - aquela grei inexpressa dos que vivem aqui-e- agora, sob a coação presencial do estímulo aderido, e seu imposto de irrefreável reação. O homem, condicionando o estímulo em representação, em energia potencial, foi des cobrindo, pela vida, a economia das respostas.
11. A LÍNGUA NASCE DA FALA
Quando o homem fala, fala por frases. E a frase nasce
da frase. Não nasce a frase das palavras mas, ao contrário, da frase nascem as palavras. E a língua
nasce da fala.
A frase que sai da boca, na hora de falar, já estava nascida no espírito, na hora de escutar. O homem, que tem sua hora de ser Primo, nunca deixa de ser Secundo.
Infante ainda, já recebendo as repercussões do Real, como Secundo vivente, também se iniciava como Secundo fabular banhado nas melodias da fala materna e nos vozeios do seu clã.
Do influxo fabular que o infante recebe, há exemplos fornecidos pelos estudiosos. Tal é o caso da criança parisiense que, começando a falar, revelara efeitos de sotaque alsaciano; esmerada a causa, foi descoberto que tivera, em tempos, uma pajem alsaciana.
O menino que cresce recebe a interpretação
do real na fala dos que o rodeiam. Entre a função de
Secundo, em que nasce, e a função de Primo, a que chega,
medeia a digestão espiritual da vida, sob as repercussões
do que vê e do que ouve, assuntos que vai internando consigo,
para conferir no coração, como diz o Evangelho: cónferens
in corde. Falas antes recolhidas voltam depois, em horas não
de relógio, para a tarefa da ruminação vivencial.
Nestas ruminações é que se dilui a solidariedade
fenomenal do todo expressivo, distribuída em valores veiculares, úteis à fala
ventura. É o momento da língua, um momento número
seis, não previsto entre os cinco, do imperfeito circuito
saussuriano.
A língua é uma sedimentação
espiritual de recursos fabulares. Das falas que ouve, Secundo vai
extraindo a feição da frase, a música da prolacão,
e as peculiaridades elementares. Vai colecionando moldes fabulares
- moldes frásticos, melo-rítmicos, sintagmáticos,
e vocabulares.
O que na fala vinha associado, ele dispõe na
mente, como associável. O que na fala era ação
ou produzido, na língua faz-se potência ou energia.
Na fala estão os modelados vocabulares, carreando um sentido.
Na língua estão os moldes vocabulares e os possíveis
sentidos. Na fala funciona um veículo veiculando um veiculado.
Na língua, aposenta-se o veículo, junto ao veiculável.
Vindo o impulso do estímulo fabular, acorre a memória com os moldes: e Primo fala.
Peço licença de insistir em uns tantos
fatos pouco divulgados:
1. a fala é de Primo e a língua é de Secundo;
2. o estímulo fabular vem por frases e não por palavras soltas;
3. a frase nasce de outra frase. São sempre os mesmos moldes veiculares, voltando ao serviço da expressão, conforme as conveniências do transporte;
4. a frase não sai dos vocábulos. E os vocábulos saem da frase. Quando o espírito seleciona palavras e posições, optando entre arranjos sintagmáticos, isto é apenas sinal de riqueza, uma graça da fertilidade estética.
12. PENSAMOS POR FRASES
O impulso fabular é uma provocação
vivencial complexa, que vem como um todo, já brotando em frase.
Quem fala emprega estruturas feitas e não estruturas faciendas.
Costuma dizer-se que pensamos por palavras mas, na verdade, pensamos é por
frases.
Suposto que a fala começou pragmática - feita de vozes e gestos da ação - também se admitirá que ela surgiu no complexo teatral de presenças e acontecidos. Primo, quando fala, é porque foi provocado pelo fenomênico, esteja ele expansivo, jussivo, enunciativo, ou inquisitivo, e, ao vir a representação mental, esta acorre-lhe por complexos de uma?assada experiência, ressoando em moldes frásticos anteriores.
Imaginemos quatro diversas situações de Caio falando a Tício.
I. Caio disse `'o cavalo fugiu". É uma
frase enunciativa. vazada no molde universal da frase indo-européia,
feita de su jeito e predicado (nominativo e verbo), ser e processo.
Sujeito e predicado são dois núcleos atraidores de
elementos "adnominais" e elementos ''adverbais", segundo
progrediu a minudência expositiva do homem e a ductilidade fabular
da língua. - Da frase verbal difere um outro molde üideuropeu:
o da frase nominal.
II. Caio perguntou "fugiu o cavalo?" - O
melhor sina' da frase interrogativa está na melo-rítmica.
- Conforme a temperatura e saturação da realidade teatral,
o diálogo pode realizar economias sintagmáticas, tanto
no molde interrogativo como no molde enunciativo.
III. Caio mandou "pegue o cavalo". - A frase imperativa consta de um fazer cujo sujeito é Secundo, consta. pois, só de predicado.
IV. Caio disse, ao ver fugir o cavalo, "que pena!" .
Eis uma frase expansiva, de molde vistamente infrafabular. Não
tem a forma de sujeito e predicado. Traduz um efeito, não
traduz um acontecido. Sucede ao fato e só por ele se compreende.
Nutre-se, pois, na presença fenomênica, nos sentidos
da situação teatral. Seu aspecto revela arcaíce,
na feição da estrutura subfabular, por onde o homem
deve ter começado.
Na fala teórica, fala reminiscente, fala de
reviver o vivido, o que vem à lembrança não é alguma
representação dissociada ou singulante, mas aquele
complexo que antes repercutira no espírito, quando acontecia.
O que vem à lembrança é a imagem de algum ser,
sendo ou fazendo. Sendo ou fazendo alguma coisa é que surge
um cavalo, quando um cavalo surge na memória.
Somente um fino esforço, como o de HUSSERL, é que nos favoreceria poder dissociar a pressão existencial de um fenômeno
- poder, digamos, colocar entre parênteses o cavalo, reduzido a imagem desnuda, em paz com o benefício da epokhé ou suspensão de juízo. Ainda assim, porém, se esta ria pensando por frases e não por palavras.
13. O ENGANO
A lingüística vigente, sem vencer o encantamento tradicional,
tem sido um lingüística
vocabular, mostrando nisto o seu engano.
Nos valores da língua, extraídos da fala, o vocábulo é um elemento de quarta grandeza. Tais valores são: a frase, a melodia, o sintagma, o vocábulo, e o morfema.
O vocábulo não gera a frase. Foi gerado nela. Seu estado de língua difere de seu estado de fala, mesmo nas línguas menos flexivas, onde sua figura pode ser igual à do sintagma.
O vocábulo, como vocábulo, não
aparece na frase: é um valor potencial, um candidato a palavra,
qual se vê no dicionário. Metido na frase, a primeira
coisa que lhe acontece é perder a disponibilidade, entrando
no efetivo exercício de significar, endereçado pela
morfemação relacional. Faz-se palavra, faz-se "univalente",
ele que no léxico é "plurivalente".
Indo da estrutura sintética para a estrutura
analítica, a evolução da língua indo-européia
coincide com a marcha do espírito, que veio do global para
o discriminado. Não digo "do sintético para o anãlítico ",
porque a inteligência não começou na síntese.
Começou no ajuntado. Mesmo com relação à língua,
o que se chama de "sintético" deve ser entendido
como aditividade fusiva. A concretice inicial do homem não
permite que o imaginemos já então capaz de síntese.
O progresso analítico foi desflexionador: foi
igualando a aparência do sintagma com o aspecto do vocábulo.
O morfema relacional, tão claro no estado romano da língua,
foi subtilizando-se, no caminho do pós-românico. Uma
frase como " Caio comprou casa" contém dois nomes cuja morfia
se mostra igual à que está no dicionário. Entretanto,
lá são dois vocábulos, ao passo que na frase
são dois sintagmas (um sujeito e um objeto). Mostrados no
estado romano, exibiriam morfemas de nominativo e acusativo: Caius
emit domum.
A progressiva diluicão do morfema desinencial
foi encontrando compensações nos morfemas de posição
e melo-rítmica, bem como nos vocábulos-morfemas, e
até no morfema zero.
Os rigores da monomorfia vocabular é que forçaram a língua francesa à contingência cotidiana daquela estrutura chamada por eles "sujeito-verbo-regime".
Apesar de o vocábulo ser, pois, essa coisa
de quarta grandeza, a lingüística o retira da frase -
que deixa quase esquecida - tratando-o com muita anatomia e fichando-o
com muita autonomia, como se fora centro e força maior da
língua. A partir do século xix, quanto progresso no
seu estudo! Ontem, codificando leis fonéticas. Hoje, requintando-se
em fonologias e fonêmicas!
Ao lado de tanto zelo, vê-se a teoria da frase,
que é a sintaxe da fala, ainda se recozer no calor de normas
e interpretações que já estavam nos Quintilianos
e Priscianos.
Acima do vocábulo, entidade submersa, estão
pedindo justiça metódica os outros valores do ato comunicatório.
Encerrando nosso título, vamos reproduzir um quadro de hierarquias onde, contrariando SAUSSURE, atribuímos à fala toda a eminência social e reduzimos a língua à sua posição de mero recurso individual.
I. A fala, expressão do homem. Função inter-individual ou social. Dela se filtra a língua, recurso pessoal de primo, patrimônio intra-individual
II. A frase, elemento da fala, construída em moldes da língua.
III. O molde, elemento da frase. Moldes frástico, melódico, sintagmático.
IV. O sintagma, elemento da frase, feito de vocábulos e morfemas relacionais.
V. O vocábulo e o morfema relacional, elementos do sintagma.
VI. A sílaba, elemento do vocábulo.
VII. O fonema, elemento da sílaba.
14. O IMPULSO FABULAR
O impulso fabular nasce de um fazer,
um cogitar, um viver: fala pragmática, fala teórica,
fala vivencial.
I. A fala pragmática é uma fala atual e uma fala da hora; é a mais antiga e a menos fabular das falas; é parca e frutuosa, embebida no drama do fazer, economicamente ajudada pelas presenças teatrais; pode ficar reduzida a um gesto de contexto fabular zero.
II. A fala teórica é uma fala reminiscente; é a fala de hora posterior, ensejada em lazer e lembrança; retrospectiva, ela conta o passado; prospectiva, planeja o faciendo.
Enquanto a fala pragmática vai somada às oportunidades do aqui-e-agora, a fala teórica, por ser de outro lugar e hora, tem de representar, vocalmente, o que nela é ausência mas no acontecido eram presenças.
No exercício da fala teórica, o homem desenvolve os recursos do contexto fabular, enriquecendo o património da língua. Esse enriquecimento atinge o máximo quando a fala se faz escrita, ficando reduzida ao puro contexto fabular, desaparecidos aqueles adminículos da prolaçio, da mímica e das presenças teatrais. Falando (por escrito) a um Secundo ausente, potencial, Primo estende, sobre os séculos, o diálogo da humanidade.
III. A fala vivencial é a mais importante das falas; é a fala soliloquial, a fala de Primo consigo mesmo - uma fala sem prolação, em permanente curso interno das idéias, na elaboração mental da vida. Na fala vivencial está o homem com sua antenticidade, não passando de ilhas rápidas, em mar oceano, as horas de comunicação com Secundo.
Fechada no espírito, a fala vivencial foge ao alcance di reto da lingüística: tem de ser estudada por anamnese, por confissão, na psicologia do "como pensamos".
Quanto à fala escrita, relembre-se o nocivo
descuido que dela faz a lingüística, enganada em pensar
que fala é só a conversa oral. Errando no conceito,
desapropriou-se na denominação, ao discriminar a língua
em "língua escrita" e "língua oral". É sensível
para nós que a língua é uma só, um patrimônio
só; a fala é que será "fala oral" e "fala
escrita".
15. A REPRESENTAÇÃO FABULAR
O homem não olha para ver
mas para verificar. enquanto confere as figuras do mundo
de fora com as representações do mundo de dentro. Mede o que ve nas cotas do que já viu.
Mas se, em vez de rever, lhe acontece ver, então
ele fica espantado: a surpresa de uma "presentação",
alarma o trânsito rotineiro das "representações".
Escreve PAUL VALÉRY "Um objeto um dia não caiu,
ficando a meio metro do solo; em torno os homens construíram
um templo." [Cf. Mélange, 334].
A inteligência, quando recebe uma surpresa,
procura, nas morfias analógicas, um enquadramento, ainda que
provisório. Entretanto, se o novo objeto vem com o nome, Secundo faz
do nome centro da representação, antes mesmo de fazer
funcionar as analogias. O nome é uma ficha que logo se aceita,
ainda que mais tarde aconteça merecer restrições.
Em verdade os nomes, recolhidos no espírito e na língua,
são vocábulos de vária paz e capacidade - desde
os meros rótulos superficiais, aderidos a figuras vivencialmente
vazias, até àquelas replenadas estruturas, densamente
significantes, em que o destino pessoal infundiu, redundantes, as águas
da vida.
Apresentação de um desconhecido objeto,
sendo sem o nome, alarma as analogias, mas, sendo com o nome, apenas
acorda, sem alarmar. Isto quer dizer que os nomes são núcleos
de cristalização representativa e que o hábito
da representacão mental é um hábito fabular.
A hipótese de uma "presentação" capaz
de alarmar as analogias de Secundo, mas sem alarmar Secundo, é uma
hipótese que pressupõe meio teatral de confiança,
tranquilizado pelo conhecimento do ambiente. No caso de o meio ser
estranho, já ele de si é uma fonte de alarmes. O meio
estranho é um meio pânico, amestrador de sombrações,
inibidor e hostil, coibindo a identificação, mesmo
de antigas imagens. É como diz o provérbio: "Quem
a porcos há medo, até as moitas lhe roncam".
16. O CONDICIONAMENTO SOCIAL
Na representação do objeto é que está o real de Primo, a sua idéia do comunicável. Mas esta representação não é obra de um homem e sim da humanidade.
Aberta a transcendência do segundo sistema, começou a funcionar o trânsito mental entre Primo e Secundo. O homem foi acumulando as conquistas da representação, garantindo assim o progresso do condicionamento social em que cresce cada indivíduo. Condicionar é influir imagens comuns da comum representação, veiculadas nas falas do grupo.
Na antemanhã da espécie, em fase ainda
pré-fabular, imaginemos o que poderia ter acontecido a dois
hornínidas álalos, postos sob o estímulo do
mesmo objeto. Talvez que os dominasse uma sintonia vivencial
intransitiva, feita de repercussões fechadas, nivelados os
dois pelos mesmos impulsos elementares. O homem primeiro deve ter
sido um homem cerrado sobre si, atento ao vital, escasso no vivencial,
ativo no instintivo.
Imerso num mundo de autonomia do Objeto, era um homem de Sujeito mal instalado e fraco, todo invadido de atenções e medos, no frente-a-frente com um Real cheio de coisas ainda não construídas na consciência. Trépido assim, ia vivendo, entre movimentos de comunhão do impulso "ad" e os movimentos de excomunhão do impulso "ab". Ressoava nele o mundo como em caixa de repercussões inassimiladas. Quase nada diversa do hic-nunc-ismo irracional, sua dieta era a de permanente alteração, numa vida de portas a fora.
O signo do seu recurso expressivo exibia as aderências
do primeiro sistema, longe da autonomia vivencial ventura, mas autonomia
que veio, lentamente desenvolvida no exercício de menear não
mais a coisa mas a representação dela. Foi quando Primo
e Secundo se fizeram definitivamente capazes de encontrar, ante
o simples nome do objeto ausente.
17. A FALA PRIMEIRA
Sem meios de observar o homem primitivo, sumido na distância dos milênios, a ciência pode aferir a hominização da espécie num exame a partir de dois tipos caracterizáveis: o homem de razão ativa, homem aristotélico, e o homem de razão folgada, pré-aristotélico.
Os indícios da fala primeira e do homem primeiro são rastreáveis em estados de língua correspondentes ao estado de um homem pré-aristotélico, isto é, um estado de homem concreto, aditivo, inabstrativo, fantasioso, mítico, e simpático.
Na sua lógica anterior, feita de um laxa analogia visioná ria, ele não ordena o mundo por planos metódicos, mas por imaginações tradicionalmente acumuladas.
Sua teoria do real não tem meta no real, mas no anseio de propiciar os ocultos poderes que regem o seu mundo. São mitos que a sua inteligência concretista corporiza em umas tantas sensibilidades, para nós arbitrárias. São entidades que, podendo influir o bem e o mal, acedem a procedimentos sim páticos, obedientes à energia coercitiva dos rituais consagra dos, capazes de mover a favor ou demover de ser contra. O vigor de uma fórmula fabular bem recitada revela a admitida equivalência entre o nome da coisa e a coisa nomeada.
Em tal nível de hominização,
a fala é um proceder operatório, uma "ação" de
dois fins principais: inserir a vontade cotidiana, pela voz dos mais
velhos, no jeito de se fazer um faciendo; inserir também os
anseios do homem nas determinações dos poderes sobre-humanos. É uma fala
pragmática ou uma fala simpática.
Referindo-me à "vontade cotidiana", evitei explicá-la como vontade de quem fala, porquanto o indivíduo é de pouca individuação e pouca vontade sua. Conformado grupalmente, ele vive na comunhão dos antepassados. Na fala do mais velho está a vontade ancestral e não a do mais velho.
18. LIMITES DO PODER FABULAR
Sob a teimosa iteração do fenomênico, a sociedade foi enriquecendo o indivíduo de morfias analógicas mais felizes. O progressivo condicionamento foi discriminando o sensível em representação aspectiva; e o inteligível, em representação procedimental. A tensão entre Sujeito e Objeto foi mudando o sentido da força: em vez de sair para o Objeto, o Sujeito começou a trazê-lo a si, internando o mundo na consciência. Trazendo-o por representação, pôde meneá-lo por reflexão e manifestá-lo na fala, quando conveio.
Na comunicação fabular, em vez de duas
vivências ante o objeto, há duas vivências ante
o mesmo símbolo do objeto. Assim como um só objeto,
potencial de representações, envia a dois pacientes
dois estímulos subjetivamente graduáveis, também
o nome, sendo um, fica sendo veículo de duas representações,
a de Primo e a de Secundo.
Realizado o ato fabular, isso não quer dizer
que os nomes da frase levaram a quem ouve as idéias de quem
fala. Secundo entende o que ouve, não porque uma representação
viajou na fala de Primo e sim porque já trazia consigo a sua
representação de Secundo.
Vinquemos bem esta particularidade subtil do trânsito fabular. Da boca de Primo partem palavras carreando idéias, veículo e veiculado. No ouvido de Secundo, porém, entra só o veiculo. Por um passe de sintonia, o veiculado Primo cede lugar ao veiculado Secundo. A fala é um corpo que troca de alma no fim do percurso. O que vale é as almas serem análogas, comumente: o sentido que embarca é A mas é A' que aparece no desembarque.
Poderá dizer-se que, sendo assim, não
haveria comunicação nem entendimento recíproco.
Poderei responder:
1.° Não é lá essas coisas
o entendimento existente entre os homens. O que há mais é paciência.
E, no que é entendimento, seu efeito é de geração
vivencial e não de geração fabular. A fala manifesta
o entendimento, não o cria. Relembre-se a queixa velha
de que a palavra gera desinteligências entre os homens.
Quem nos dera que o ato fabular pudesse introduzir a idéia de Primo no espírito de Secundo! Seria outra a vida! o homem superior, facilmente educaria os outros homens. Cresceria depressa o acervo tradicional. E seria outro o padrão de hominidade da espécie!
2.° Bem ou mal, tem sido bastante que as representações
sejam análogas. Com o dom fabular, o homem foi erguido acima
da irracionalidade e nutrido em socialidade, aprendendo cada um a
medir o semelhante, não pela fala, mas pelo exercício
vivencial. Secundo entende
Primo como entende o cão, o cavalo, e os demais seres da existência
cotidiana. Vivência e convivência explicam tudo, mesmo
peculiaridades e modos de ver, não porque um falou mas porque
o outro o conhece por fora da fala.
3.° Entretanto, apesar de ser apenas sintonia,
a fala ajudou a criar o entendimento, ensejando entendimentos, confirmando
vivências e convivências, acumulando as maravilhas do
espírito. No princípio foi a fala e a fala fez o homem.
19. REAL PRIMEIRO E REAL DERIVADO
Biologicamente, o homem vive do Real. Mas, espiritual mente, vive da imagem do Real, que é o real, feito de muitos reais mentados, em sucedidas imaginações de existência, con forme o vário aspecto da vida. São repercussões do aspecto imediato, real primeiro, e repercussões da repercussão, real segundo, terceiro... real derivado.
A etimologia, buscando a origem das nomeações,
costuma ficar sem documentos, incapaz de saber se o nome que pesquisa é de
um real primeiro ou de um real derivado. Ao astro que os latinos
chamam lua nomeiam moon os germânicos. Lua quer
dizer a luminosa e moon quer dizer a medidora. Vê-se,
pois, que o nome lua responde ao estímulo de um primeiro
aspecto, enquanto que o outro lembra um procedimento. O efeito visual é da
imediata experiência, mas ver na lua um
medidor do tempo já é andar algum degrau de noção
posterior. Feito o exame, assoma a tentação de supor
que o nome representado em lua é o mais antigo. Mas
a veleidade se desfaz à luz do confronto histórico:
aí se ve que "luna" substituiu um nome anterior
do astro. Este nome era o mesmo que chegou à forma inglesa "moon" e
que se lembra no cognato latino "mensis".
Como se vê, a busca etimológica não pode resolver o problema da anterioridade, na fixação vocabular dos reais mentados, ora como repercussão sensível do Real, ora como repercussão inteligível da vivência. Se o real primeiro já é uma abstração repercussiva do Real, o real derivado é uma abstração da abstração.
Recordemos o marciano, agora para o admitir como capaz
de apreender o real primeiro e querendo aprender, por exemplo, que é justiça,
liberdade, democracia - enormes palavras - e que é preguiça,
dengo, saudade - palavrinhas peculiares. Imagine-se o que responderia
Tício e que conseguiria, suposto que uma informação abstrativa promete
frutos, no ouvinte, quando ali encontra nível social, tradição
vivencial, riqueza de morfias analógicas...
O real primeiro é um real que pode ser conferido
na coisa. O real derivado é uma noção de procedimento,
uma existência interna, sem autonomia de resposta no mundo
exterior. Correspondem ao nome concreto e ao nome abstrato da
lógica tradicional. Ao ser com existência e ao ser sem
existência, na vocabulação de Bertrand Russell.
Elaborando vivencialmente a repercussão da
coisa, a inteligência cria-lhe um conceito, que é a
sua imagem de ens reale. Transcendendo o mero sentir, a
energia representativa cria imagens fantasiosas: a imagem de um ente
fingido, um ens fictum, como o saci, ou ainda a imagem nocional
de um ente de razão, ens rationis, como o número.
Na fase mítica da hominização do homem, o ente fingido é o fruto comum da incipiente racionalidade, urgida pela carência de motivação, nas motivações do fenomênico. O ente de razão, produto metódico, revela o jeito de pensar que tem o homem, quando relaciona qualidades e quantidades, do ser e do processo.
O real derivado, só existindo no campo dos símbolos,
toma por signo fabular o signo de alguma representação
sensível, esvaziada em noção inteligível.
Hoje em dia, se alguém relembra o cógito cartesiano,
pode fazer defluir do vocábulo uma asséptica sugestão
de leveza subtil, refrigerada e alta, mui distante da idéia
em que começou, quando o nome se prendia à suarenta
e polvorosa fadiga rural do tangedor de gado.
Era do campônio latino a tarefa de tanger o
boi, ágere bovem. Daí o freqüentativo agitare, e
o outro, cogitare (co- agitare). De uma idéia espacial
- agitare rure, mover no campo - a predicação
analógica extraiu a figura agitare mente, mover no
espírito... Foi assim que o verbo cogitare foi assumindo,
em marcha abstrativa, aquele vigor seu, que depois se fez cartesiano.
É semelhante a história do sinônimo penso, denominativo,
através da forma adjetiva pensus, de péndere, dependurar.
A forma latina pensare representa um estado anterior do
que hoje é pesar (ato sensível) e pensar (ato
inteligível).
Semelhante ainda a história de deliberare,
a partir da idéia "libra", balança,
e do tempo em que se pesava o metal destinado ao pagamento. Deliberare era
o ato visível do libripende, o homem que movia a balança.
Hoje, deliberar tem aquela intimidade imaterial que lhe
conhecemos.
Receder historicamente à imagem sensível
inicial é pesquisa etimológica e psicológica.
Mas, via de regra, essa relação primeira esconde-se
nas distâncias do passado. Lá se perdem, fundidas na
bruma dilucular, a origem da língua e a origem da espécie.
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