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Educação e Humanismo
Livro A Ortografia de nossa língua
Vida: 1933

A ORTOGRAFIA DE NOSSA LÍNGUA (pela simplificação ortográfica): parte 1

 
 

Tese para concurso à cadeira de Português do Ginásio Mineiro de Belo Horizonte.

Imprensa Oficial de MG, 1933

 

 

"Num homem bem nascido releva-se mais, e é menos vergonhoso, um erro de sintaxe, que um erro de pronunciação ou de ortografia, porque aquele pode nascer da inadvertência: estes são sempre efeito da má educação".
(Soares Barbosa - Gramática Filosófica)

"Dai-me um bom alfabeto e eu vos darei uma língua bem feita. Dai-me uma língua bem feita e eu vos darei uma boa civilização".
(Leibnitz)

"Je n'ai fait celle-ci plus longue que parce que
je n'ai pas eu le loisir de la faire plus courte".
(Pascal - 16ª Provinciale)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

OS EMPEDERNIDOS

Gonçalves Viana, em 1904, terminou o prefácio da ORTOGRAFIA NACIONAL com as seguintes palavras que Álvaro Ferreira de vera punha no fim de sua ORTOGRAFIA, em 1631:

“Aquelle que lhe parecer boa, sigaa;
e aquelle a que não, emmendea.”
 

Hoje, em 1933, quando anda tão visível o racional e bom que é a grafia simplificada, repetindo as mesmas palavras, somente as mudarei de leve, no fim:

“Aquele que lhe parecer boa, siga-a
e aquele a que não, emende-se.”

 


PREFÁCIO

Era natural a dificuldade na escolha de tema para uma tese de concurso. Hesitei entre os assuntos.

Oscilei numa primeira veleidade de estudar a etimologia e ortoépia dos vocábulos de origem grega. Recuei, porque o motivo é intricado e vário. Atraente, mas desordenado e discutibilíssimo. Levar-me-ia mais tempo do que o têm, mesmo os folgados. E, ainda por cima, ia deixar-me enredado e vulnerável, como guerreiro desapercebido, em campo raso.

Namorei, algum tempo, matéria como o latim e o conhecimento profundo da língua portuguesa. Serviria para tiradas mais ou menos filológicas, e seria atual, para recriminações pedagógicas. Mas de caráter, por muito, especulativo.

E o processo histórico das palavras evolutivas (leis fonéticas)? Ou a corrente erudita e a corrente vernácula (formas divergentes)? Ou ainda a língua portuguesa e a língua brasileira?

Até me passaram, na revista, questões especificadas de sintaxe, como as safadas dúvidas do se ou do infinito...

E acabei optando pela ORTOGRAFIA...

*****

Imaginei que ficasse melhor, por menos pretensioso, o titulo GRAFIA de nossa língua. Como, porém, a grafia aqui defendida vai exposta na convicção de ser a certa, achei mais afirmativo o nome ORTOGRAFIA.

É o velho e revelho problema da escrita. Escrita ou escritura, como lhes aprazia dizer, a mais antigos escritores.

Para os brasileiros, ele continua insoluto, ou continua problema, apesar de exatamente o ter deixado de ser, porquanto problema supõe coisa a resolver... E, de há anos, a nossa grafia está racionalizada pelos estudiosos. Em moldes que só o descuido, a superficialidade, a anarquia e mais causas sensatamente indefensáveis, não quiseram admitir.

Problemas resolvidos que continuam ... problemas.

É a moda de hoje em dia. Muitos deles aí estão, desafiando e desesperando a humanidade, que os não resolve, apesar de conhecidas a resposta e a marcha das operações. Sobretudo, entre os da chamada questão social.

Tem-nos faltado é a coletiva coragem e força do esforço realizador, no sentido para que o bom senso está cansado de apontar.

*****

Parecerá um tanto indefinida, no título da tese, a restrição de nossa língua. Poderia ter sido mais claro. Houve, porém, no meio, uns escrúpulos e dificuldades... nacionalistas.

Se nomeasse o meu trabalho com a epígrafe "ORTOGRAFIA da língua portuguesa", estava bem, mas, já não tanto, o meu sentimento nacionalizado e brasileiro, na questão.

Se o frontispiciasse com o nome "ORTOGRAFIA da lingua brasileira", isto realmente me contentara, mas poderiam tachar-me de vanguardista, justamente ao concorrer a uma cadeira de português, em estabelecimento de ensino, lugar onde se presume não poder faltar moderação e lastro de forças conservadores.

Que o encimasse, então, com o titulo "ORTOGRAFIA racional", como fez Gonçalves Viana. A insuficiência restritiva era a mesma. E a mesma que também há, por exemplo, na denominação "Idioma nacional", da série Antenor Nascentes.

Variei. E cá está a minha ORTOGRAFIA DE NOSSA LINGUA, tese com que espero ser declarado hábil para ensinar língua pátria, no Ginásio Mineiro de Belo-Horizonte.

*****

Não leve, antes muito pesada incumbência é o ensino da língua pátria, em nossos tempos. Todos os professores se queixam de que o ensino do vernáculo decaiu, espantosamente. Por toda parte, por todo o Brasil...

Veja-se o que falou o sr. Sud Menucci num congresso de professores, há anos, em Campinas:

"Um fenômeno sintomático, doloroso e alarmante, impõe-nos, de há longos anos a estes, dias, sério problema educativo, a que, pelo fato de se dar em S. Paulo, bem se poderia chamar de problema nacional: é a verificação de que existe, entre o passado e o presente, uma assombrosa baixa de nível da cultura do vernáculo, da parte da população paulista, baixa de nível que se vai, progressivamente, acentuando numa carreira vertiginosa e que chegará onde não se sabe..." (Ap. Mota Assunção - Origens e ortografia da língua brasileira).

As causas do mal são profundas. O nosso homem de agora, que se americaniza, não estuda latim, não quer saber de conhecimentos especulativos nem de atenção a regras coercitivas da própria instintividade. O excesso subjetivo, de que sofremos, nega a hierarquia e nega o cânon, praticamente, embora o preguem a autoridade e a tradição.

Antigamente, os mestres impunham. Hoje, eles expõem. Inutilmente, o mais das vezes.

O conceito de homens de direitos, sem deveres - que é desastradamente o nosso - atrapalhou as pautas, desrumou os caminhos e nos lançou no toú-boú destes tempos.

Depois, o homem de antes - o brasileiro de 1833, por exemplo - não encontrava tanta complicação em que se educar. Tinha diante de si uma área menor de campo científico, uma quantidade modesta de disciplinas, uma carga forte de clássicos, com latim, muito latim. A vida nacional era mais ou menos estanque. Ele não tinha as solicitações veementes e diversas, da sociedade moderna. Tudo ajudava, no aprofundamento, a quem desejava aprender a língua.

Com o século 19, o homem adoeceu de obsessão científica. O estudo das humanidades perturbou-se. O gosto dos clássicos diminuiu. E o comércio deles também. Começou a realizar-se aquele anseio do poeta, que indagava:

"Qui nous délivrera des Grecs et des Romains?"

O latim foi deixando de ser língua corrente entre os letrados. No Brasil, chegou ao estado de língua desconhecida, essencialmente desconhecida, em que o temos, agora, no ensino secundário.

E veio toda uma ladainha de misérias contra o ensino do vernáculo: o destempero, a deficiência, a desordem permanente do ensino; a solicitação utilitarista das ciências práticas; o excesso delas, absorvedoras da atenção e capacidade aquisitiva do discente; o desgosto literário e artístico; a dispersão e superficialidade intelectual gerada na degeneração e dissolvência de nossos regímens escolares; a atração esportiva; o cinema; a multiplicidade social que a vida exige, hoje, do indivíduo; o internacionalismo cada vez mais intenso (cinema, rádio, etc.); e a não defesa da língua que se invade de estrangeirismos, coisa fatal num país de importação, de rádio americano, cinema americano, automóvel americano, "chic" francês, literatura francesa, esporte anglo-americano, etc.

Efetivamente, com a coisa importada, entra o nome. Se o temos, correspondente, em vernáculo, não o sabemos ou o não adotamos... e o estrangeirismo corre as avenidas das cidades, as colunas dos jornais e revistas, as páginas dos livros. Sem. nem, ao menos, mudar de roupa. Quando muito, pessimamente entrajado por algum torto alfaiate, que nunca possuiu a fita métrica da lingüística.

É a ação dissolvedora, fatal, a que está submetido o nosso idioma.

Contra a pouca de força conservadora, de força coibitiva da desagregação, fazemos nossa revolta espiritual de Prometeus desacorrentados. Revolta de geração que cortou as amarras com o passado. Que não quer saber de princípios. Que cria o seu ritmo livremente, como deseja o sr. Ronald de Carvalho. Que é livre, livre de todo. "Laqueus contrictus est et nos liberati sumus", repetiria ela, se conhecera o latim e a Bíblia.

Só uma lei nos guia: o instinto dos direitos. Para que respeitar o que as gerações acumularam e nos é impingido como sabedoria e valor?

Esta rebelião, de tendência social e pragmática, tomou todas as feições. Na arte e na literatura, ele atentou violentamente contra a força dogmática de cânones imemoriais. Na língua, feriu profundamente a princípios tradicionais e a regras de gramática. O jornalista apressado, o croniqueiro das revistas e o tradutor de empresa tomaram conta da sintaxe e dos leitores, porquanto é quase só o que se lê.

*****

A diferença de mentalidade é contrastadamente forte, entre o moço de outrora e o moço de hoje, na classe dos que estudam e se fazem doutores.

Outrora, o rapaz tinha medo de quebrar um princípio de etiqueta, num salão, ou um princípio de gramática, numa poesia.

Refaçamos o caminho que fizeram tantos de nossos maiores. Aqui em Minas-Gerais.

Vamos, primeiro, ali ao Caraça. A "domus alma", alcandorada entre penhascos, ninho fecundo onde se acalentou e nutriu, substanciosamente, a inteligência mineira, por todo o primeiro e segundo império. Onde o curso de humanidades era muita coisa e o latim era tudo. (Aliás, já dizia o mestre: "Do latim que, estudado como cumpre, constitui por si só um curso de humanidades..."). Onde a imaginação do colegial quase acabava acreditando que os titãs da lenda por ali haviam andado, a estourar penedias, e Virgílio, a pastorear à orla dos bosques, ou Cícero, a trovejar catilinárias, nalgum daqueles salões.

Com os bolsos cheios de frases latinas, ia a gente bacharelar-se a S. Paulo, como no norte se ia a Recife.

Ia-se longamente, com todo o aparato da viagem.

Uma das causas que mais contribuíram para a refinamento e apuro do espírito cavaleiresco, na Idade Média, foi a natural seleção, nascida das exigências materiais, que só a donos de feudos permitiam o ingresso na classe. A importância crescente e predominante dos peões ou infantes, nas guerras, dessorou, aos poucos, aquele espírito concentrado e alto, para o alargar na vulgaridade anônima do soldado-multidão.

Também durante o Segundo Império, as dificuldades naturais da época aprimoraram o espírito de nossas elites.

O estudante ia para S. Paulo cheio do conceito distincional de um cavaleiro. As aulas da Faculdade se dirigia ele, de redingote e chapéu alto. Era sisudo, nas oportunidades em que lhe cumpria ser gêntleman.

Se mal aprendera a língua, à hora fatal de perpetrar os primeiros versos, o primeiro artigo, o primeiro discurso, corria fervorosamente para uma gramática e um dicionário. O horror de cincar forçava-o a queimar pestanas. Amedrontava-o mais a sintaxe do que a censura de Horácio às produções que rescendem azeite, cheiram a esforço . ..

Hoje, entretanto ...

O cinema, o clube, o rádio, o automóvel, o esporte, e toda a invasão americana, transformaram nosso rapaz.

Não é sisudo, é irreverente. Não lê os poetas, joga futebol. Não vai quase à faculdade, cola no exame. Não tem cerimônias com a etiqueta, é de educação esportiva.

Suas relações sociais se preenchem e satisfazem com os salões de cinema, de teatro, de clubes dansantes, no cosmopolitismo urbano de uma vida sem muita censura nem a imediata presença constrangedora de senhores graves e matronas respeitáveis.

Nada daquele distinto, daquele sério, daquele cavaleiresco de outróra.

É o desbordamento dos peões ou infantes, na hora de tendências coletivizadoras, que a sociedade vive.

Não literatiza, nem verseja; é da "cancha"

Sua ambição, quando voltada para as preeminências, não é a conquista honesta e franca dos postos, nem é o lugar num parlamento hierático, ressoando, com discursos impressionantes, mas a guindagem cavilosa, a infiltração capilar das Tramas ocultas, a locação sub-reptícia das "cavações" dos bastidores.

Quando se arrisca à literatura, ou, por qualquer motivo, escreve, não o preocupa a dignidade e decência da linguagem. É modernista e insulta a gramática. É superior a miudezas e canta o libertarismo dos espíritos largos. No íntimo, sente a angústia da própria insuficiência, e escreve como pôde ficar sabendo, ao longo dos anos avariados e pecos, que esperou, no secante currículo ginasial.

*****

Não me tomem por saudosista. Guarde-nos Deus de uma mocidade grave e solene, em vez de alegremente esportiva.

O que ando é verificando um fato.

O nosso aparelhamento educacional não soube represar a inundação americana. Não soube convenientemente prevenir-se para canalizar e sublimar as novas tendências da mocidade.

Ele suplicia-a, pelo contrário, tantálicamente, num curso de humanidades em que o jovem está sempre com sede. Não que a água fuja diante dele, como ao Tântalo da Lídia. Mas porque a sente dessaborida, e, não raro, engulhante.

As disciplinas, reputa-as o aprendiz cacetíssimas, porque sua alma dos dias se acha instintivamente integrada nas preocupações do esporte, do cinema e nas mais, da vida hodierna.

Nos Estados-Unidos e na Inglaterra, a educação física, o esporte, ocupa um larguíssimo espaço, no programa universitário. Espantam-se, mesmo, os franceses com a largueza desta margem. Em compensação, os ingleses não compreendem como os franceses podem suportar tantas horas de línguas e de ciências, no inventário escolar.

Em todo caso, os franceses, muito concienciosamente, executam o seu programa e mantêm a instrução em um nível a que facilitam a tradição plurissecular de povo civilizado e o primor alto do espírito gaulês, que eles contrapõem, corajosa e nacionalmente, à invasão saxônica do espírito esportivo do século.

Nós, porém, ai de nós!

Não tínhamos aparelhamento, como não temos. Tratávamos de o construir, apoiados numa rotina copiada de Portugal e de França. Veio o futebol da Inglaterra. Veio o outro espírito, da América do Norte. Multiplicaram-se as solicitações. Não represadas, as forças novas arrasaram, alagaram os alicerces frágeis de nossos velhos programas educacionais.

*****

Se antigamente o curso de humanidades não aparelhava alguém para um manejo vulgarmente correto da língua, o respeito à convenção, o sentimento de responsabilidade social, encarregava-se de o apertar e o obrigava à autodidaxia.

Atualmente, na generalidade dos casos, o rapaz chega ao fim do curso, desaparelhado também, mas sem nenhum sentimento de diminuição intelectual e nenhuma força que o instigue à aprendizagem particular.

Não é fácil o tempo calmo, com a pressa e utilitarismo que nos dominam, em uma época acelerada de automóvel, rádio e telefone. A leitura caiu no ritmo precipitado do devorador de jornais e magazines. O jornal mudou-se para um acervo de informações telegráficas e reportagens sensacionalistas - tudo mal redigido, mal digesto, mal irrigado, porque o repórter, o escrevinhador, não têm tempo.

São eles os piores inimigos da língua. São os amigos dos chavões, das frases feitas, dos torneios viciados, das ladainhas de períodos ocos. O jornal é o celeste império do solecismo.

E a língua empobrece, recua de seu aprimoramento, deserta de suas peculiaridades saborosas, pantanaliza-se numa continuidade grossa de vulgaridades.

*****

E não é tudo. País de imigração intensa e importação quase absoluta - para os produtos da técnica, da ciência, das modas e das tendências sociais: tudo que dá aparência de civilização - vemo-nos inundados de estrangeirismos de língua inglesa e francesa.

Não sabemos batizar, ou batizamos barbaramente, a cousas de eletricidade, máquinas e peças para automóveis, para cinema, para rádio, para indústrias, para medicina, para engenharia, etc. - que tudo nos vem, no meado, dos Estados-Unidos ou Inglaterra ou Alemanha. Entendemos de esportes numa terminologia toda inglesa. De moda e culinária, nossas idéias são em francês.

E o rádio - que nos capta Shenéctady ou Buenos Aires, o cinema - com sua intensidade americana - cada vez mais nos nternacionalizam, nos fazem afluentes, nos fazem tributários de um cosmopolitismo inevitável.

Quem mais o denuncia é a língua.

Enquanto, no século 16, a Espanha teve hegemonia universal, o castelhano era castiço, diz a Espasa-Calpe. Do século 17, em diante,- ele encheu-se de estrangeirismos, do francês, sobretudo.

O português saiu do latim. Do latim castrense, que os soldados romanos disseminaram na Ibéria. E foi com o lêvedo das invasões germânicas que se fermentou o sermo plebeius, de que saiu nossa língua.

Pois bem, todas as contribuições ou descontribuições acima referidas têm uma força de lêvedo extraordinária.

A língua que já chamamos brasileira vai fermentar-se, com injeções de línguas estranhas.

Estamos barbarizando-a, outra vez. Nós, indios, negros, ex-portugueses, italianas, alemães, polacos, do Brasil.

As invasões germânicas dissolveram definitivamente o latim. As invasões francesa e americana vão dissolver o português, do qual há de nascer a realmente língua brasileira.

Não nos esqueçamos de que outrora o processo das mutações era lento. Lento, porque os povos viviam, consigo mesmos, insulados nas suas extensões territoriais, nos seus preconceitos acirrados de patriotismo, mal vencido, por um intercâmbio de "câmera lenta' ou intercâmbio, nenhum, exterior.

Hoje, a velocidade suprimiu as distâncias.

O rádio criou um tipo de ubiquidade relativa, que a televisão aperfeiçoará, dentro em breve.

Os povos interdependem de maneira complexíssima.

A atuação das forças diversas sobre a língua será incomparavelmente mais rápida.

Bem sei que a decadência da língua e do estilo não é mal só nosso. Os efeitos da guerra foram universais. O modernismo literário, que implica insurreição contra cânones artísticos e sintáticos, veio-nos da Itália e da França. Grassou também por vários outros países.

Já Albalat, num dos seus últimos livros - não me lembra se no Comment on devient écrivain ou no Comment il ne faut pas écrire - francamente se queixa da decadência do estilo francês.

Em vários países, entretanto, a pedagogia vem cuidando de remediar, por um esforço adequado, a diferença dos tempos, com auxilio da técnica e da precisão, da metodologia baseada no estudo do assunto e da psicologia educacional.

Mas nós, cobro nenhum temos posto, ainda, à derrocada em que vai o ensino da língua e todo o ensino secundário.

Graças aos céus, que algum movimento e conserto - ou concerto - se vem fazendo promissoramente, no ensino estadual de Minas-Gerais. Comprovam-no a reforma deste e a Escola de Aperfeiçoamento pedagógico. O tempo trará o mais que necessário seja.

 

 


METODOLOGIA

"Savoir suggérer c'est la grande finesse pédagogique".
(AMIEL - Pensées choisies). 

 

A questão do ensino da língua não está na ciência profunda do professor. Está num conhecimento de métodos e processos que enquadrem o ensino na capacidade aquisitiva e no interesse do aluno.

É muito, e muito bem, que eu saiba e maneje o idioma. Contudo, para que eu transmita à juventude os meus conhecimentos, é forçoso que eu trilhe caminhos que cheguem realmente à compreensão e bom lucro, dela. Sob pena de minhas lições se perderem, no espaço, como setas atiradas sem prévia e cuidadosa mira.

Segurança e recurso de métodos exige-os, mais do que qualquer, o ensino da língua. Entre nós, o mal maior tem sido o gramatiquismo e o conceito de ensino, dele resultante.

Gramática de uma língua é o conjunto de regras para bem a falar e bem a escrever.

Bem falar e escrever é, realmente, a coisa a conseguir. Muito facilmente, porém, costumamos partir do pressuposto de que o discente já fala e escreve... e passamos a ensinar-lhe o bem falar e o bem escrever.

Agarramo-nos, para isso, a uns tantos pontos clássicos, que constituem os programas ginasiais, e a uns tantos manuais, tambem clássicos, que constituem nosso material didático. É de onde queremos tirar a ciência da língua. A consequência é o ensino livresco, delimitado, teórico, factício, em vez de uma aprendizagem viva, orgânica, desenvolvida, que seja para a inteligência do aluno como fatalidade resultante de uma necessidade reclamadora.

Temos ensino demais e aprendizagem de menos. É necessária uma inversão. Mais aprendizagem e menos ensino.

De bem falar e escrever a língua sinta o aluno necessidade, natural e pràticamente. Necessidade nascida de uma fonte subjetiva, impulsionadora, cheia do desejo do conhecimento. E que este impulso, de necessidade e gosto pessoais, encontre coordenação nos cânones objetivos, nos princípios básicos da linguagem, bem como da arte literária, os quais o mestre o ajudará a encontrar ou lhe mostrará, na hora conveniente. Assim há de ser a ministração da língua pátria, em vez de exposição objetiva e fria, desinteressante e inoportuna, cheia de leis e regras que o professor diz serem necessárias ao bom conhecimento e uso do idioma.

Urge transferir a fundamentação do ensino da língua. Sair do aferro à gramática para o campo vivo da necessidade atual. Do conceito bem falar e bem escrever, para o conceito mais essencial que é falar e escrever.

Ensine-se a falar e escrever a língua. A correção virá de acréscimo, naturalmente. Ensine- se a arte de falar e escrever. O artistismo ocorrerá, por concomitância inevitável.

Nenhuma outra matéria, como a língua, envolve e invade tanto a personalidade do aluno, diz Chubb, in The Teaching of English. Nenhuma outra exige mais infusão de poder pessoal. "Your work must be personalized. Your preparation must be conceived of as the building of a personality."

A matemática e as ciências são impessoais, mas a literatura e a composição lidam com a substância da vida e do caráter, com a emoção e com o pensamento. "Avoid the personal and you sterilize the subject."

O ensino da língua reflete-se no que o aluno escreve. O que compõe é uma expressão dele, uma revelação dele, uma disciplinação dele.

Ao professor, a delicada e minuciosa incumbência de o orientar, no conjunto, reencaminhar nos desvios, incentivar nas pesquisas, moderar nos exageros, provocar oportunamente, reforçar, no que está fraco. Toda uma obrigação apostolar, que exige vocação e paciência, tato e constância, argúcia e força de convicção.

O que ele maneja, diz ainda Chubb, não é uma simples inteligência ou um simples talento, mas um caráter, uma personalidade.

Saiba, pois, guiar e animar o aluno, no convívio diário da realidade - cenas da vida, da sociedade, coisas do meio ambiente; na pesquisa da ciência, e do passado - através de outras disciplinas, como a história e a geografia. Mas, principalmente, no conturbérnio literário, na frequência e amor dos autores e das obras. Para que, em tudo, na realidade de cada hora, nas descobertas da leitura e do estudo, vá ele sabendo discernir, vá ele sabendo definir as coisas e definir-se diante delas, tudo exprimindo numa elocução conveniente, - naquela linguagem correta, facil, educada, viva, natural, tonalizada, fecunda, expressiva, que ao mestre incumbe, missionariamente, ensinar-lhe.

Que o professor excite e desenvolva, pela suscitação do interesse, no aluno, o gosto e o hábito de ler, porque o melhor campo, onde aprender o bom uso e o bom estilo, são ainda as obras primas da literatura.

Que a elocução se vire numa capacidade em que ele seja habilmente destro.

E que se vá ele formando, munindo, para a vida, diante da qual saiba colocar-se, numa atitude em que se traduza o caráter, a cultura, a excelência moral, o gosto estético, as qualidades todas que façam dele pessoa capaz, para si mesmo, e útil, para a sociedade.

Bem sei que teorizar é fácil e realizar é difícil. Sobretudo com o nosso desaparelhamento e desequilíbrio. Mas, na relatividade do possível, o esforço deve ser feito, com o intuito e o intento no ideal.

Armem o aluno de gosto pela boa leitura. De expediente, na exploração dos mestres da literatura. De exercício, na faculdade da elocução. De capacidade para ver e sentir as coisas... E ele falará e escreverá bem. Porque ele saberá ser, diante da vida.

É velho, - mais do que velho, eterno, - o conceito de Boileau:

"Ce que 1'on conçoit bien s'énonce clairement,
et les mots pour le dire arrivent aisément."

Conceito, que Horácio vasou em outras palavras, quando disse, tão antes de Boileau:

"Cui lecta potenter erit res,
Nec facundia déseret hunc, nec lucidus ordo".
(Quem fala de assunto em que é capaz,
fá-lo com eloqüência e ordem lúcida).

 

 


A ESCRITURA OU REPRESENTAÇÃO DO PENSAMENTO 

A origem da linguagem perde-se na caligem dos tempos. Como principiou o homem a entender-se com outro homem é cousa que a ciência não pôde com provar.

A glotologia tem retrogradado, em verificações mais ou menos demonstradas e demonstráveis, até alguns milhares de anos, no passado da humanidade. O estudo comparado das línguas avançou admiravelmente, numa desramificação ou simplificação retrocessiva dos idiomas, até longe, nos primórdios da atividade do homem, tudo com uma inclinação muito provável para a unidade de origem do sublime dom da palavra. A caminhada é cheia de hipóteses, como a grande suposição de um tronco comum para as línguas indo-européas, semíticas e camíticas, tronco que não pôde ser encontrado. São três vastos galhos com uma direção de convergência para um imaginado ponto. Mas ponto que não foi verificado. E os três galhos perdem-se no espaço e no tempo, com o ângulo de convergência escondido na escuridão de um outrora longínquo, até aonde não chegou a luz da ciência, na sua marcha maravilhosa pelo passado a fora. Marcha admirável que conseguiu catalogar as 860 línguas do Atlas etnográfico de Balbi, estudando-as mais ou menos completamente enxertando-as nos seus ramos naturais e orientando estes ramos no sentido da desejada e cientificamente ainda hipotética unidade da linguagem humana, em sua origem.

NOTA - O Atlas etnográfico de Balbi registra 860 línguas e 5000 dialetos, com a seguinte distribuição: Ásia, 153. Europa, 53; África, 115; América, 422. [Espasa]}.

Marcha feita em um século de pesquisa e ansiedade cultural, porque não data de mais de um século o desenvolvimento da glotologia, como ciência. Até o século 19, o estudo do assunto não alcançara mais do que ensaios, hoje vistamente pueris, em que se tentava filiar as línguas européas ao hebraico, por causa da Bíblia.

É verdade que já, em 1585, um mercador florentino, Filippo Sassetti, notara parecenças entre palavras italianas e palavras sânscritas. No século 17, missionários jesuítas, como o italiano Roberto de Nobili da Montepulciano, estudavam cuidadosamente o sânscrito. E o padre Coeurdoux, numa memória encomendada por Barthélemy, em 1768, mostrava as afinidades que existem entre o grego, o latim e o sânscrito.

Mas Menéndez y Pelayo reivindica para o jesuíta espanhol Hervás y Panduro a paternidade da glotologia. Expulso de sua terra, o padre Hervás retirou-se para Roma, onde se entregou ao estudo das línguas, fazendo pesquisas sobre 300 (trezentas) delas e escrevendo gramática de 40 (quarenta). Teria sido o primeiro que fugiu do hebraico e que viu a parecença entre o grego e o sânscrito. Publicou seus trabalhos entre 1787 e 1800. Note-se, de passagem, que a memória de Coeurdoux, lida em 1768, só quarenta anos mais tarde foi publicada.

Depois que o sânscrito entrou em conta, nos estudos comparativos, a glotologia tomou impulso e muniu-se de seriedade científica. Ao longo do século 19, desfila uma plêiade de pesquisadores como Schlegel, Bopp, Pott, Grimm, Maury, Benfey, Burnouf, Diez, Max Müller, Bréal, Littré, Brachet, Clédat, Brunot, Suchier, Meyer Lübke, Gaston Paris, Paul Regnaud, Darmesteter, Carolina Micaelis, Adolfo Coelho, Pacheco Júnior, Gonçalves Viana, Ribeiro de Vasconcelos, João Ribeiro e tantos outros. (Lista tomada a Ernesto Carneiro Ribeiro - Serões gramaticais).

Sobretudo na Germânia, se aclimou extraordinariamente a nova ciência, em que se especializou, naquele país, uma geração incansável de estudiosos que hoje se respeitam por autoridades, apesar da original arremetida, contra todos eles, do escritor português Nobre França, na sua obra intitulada A filologia perante a história [2 ed. 1918].

Guilherme Jones e Sehlegel, estudaram o grego, o latim e o sânscrito (1808). Frederico Bopp, em 1833, publicou a monumental Gramática comparada das línguas indo-européias. Grimm continuou no sentido de Bopp, descobrindo as leis fonéticas da linguagem (1848). Schleicher (1862), Curtius e Schnutt (1872) fizeram estudos importantes. E as pesquisas continuaram e continuam: Max Müller, alemão, que professou em Oxford, Hovelacque, Meyer-Lübke, professor jubilado da universidade de Bonn, Trombetti, etc:

Para lá do que a lingüística pôde verificar, ficam as hipóteses e, muito para além, aquela que supõe os sentimentos do homem primitivo manifestando-se por meio de gestos, de interjeições onomatopaicas e monossilábicas, as quais, aos poucos, se foram complicando em articulações e palavras.

Cheia de conjecturas é também a origem da representação escrita do pensamento. A necessidade de transmitir a idéia a um companheiro ausente, o desejo de fixá-la, objetivamente, como lembrança para mais tarde ou como documento da própria vaidade e afirmação diante dos vindouros, foram as causas que suscitaram, ao engenho humano, expedientes de tradução do próprio pensamento, das próprias façanhas, da própria religiosidade, do próprio totemismo.

A objetivação visual do pensamento evolveu da síntese para a análise. J. L. de Campos, em estudo sôbre a "Evolução na arte de escrever" (In Rev. da Líng. Port.)) reduz a cinco, as fases da gráfica.

1. Fase figurativa. O homem desenha, com a sua habilidade relativa, o que quer exprimir. É a imagem da pessoa, do animal, do objeto.

2. Fase alegórica. A imagem deixa de valer só pelo que representa, para significar o que sugere e simboliza. No hieroglifo egípcio, o leão é a coragem; o gavião, a divindade; o olho, a vigilância, etc.

3. Fase ideográfica. Na grafia pictórica, a significação restringe-se para alguma qualidade do ser, numa convenção que vai deformando o objeto representado, até o reduzir a um mero sinal. Em vez do boi todo, só a cabeça. É a fase ideográfica. São os hieroglifos egípcios e hititas, os cuneiformes assírios e persas, a ideografia chinesa e azteca, etc.

(NOTA - Os chineses têm mais de 60.000 sinais, exprimindo uma idéia cada um. Uma vida de homem não basta para escrever, com perfeição, o chinês. [Espasa]}.

A escritura figurativa era uma necessidade mnemônica, sem influência da razão nem da conciência. A alegórica influenciou-se preponderantemente pela imaginação. E na ideografia, entraram a memória, a imaginação e a razão. Tudo com progresso intensivo do arbítrio e da inteligência.

4. Fase silábica. Com a representação da idéia, a correlação existente entre o sinal gráfico e sua pronúncia foi despertando a atenção. O valor sônico foi apagando o simbólico e animando a palavra... e a escrita se tornou fonética. O homem foi descobrindo a identidade e comunidade de sons, nos vocábulos, que aumentavam sempre mais, e os foi catalogando pela identidade da representação gráfica. Começou a empregar-se o ideograma silábico. Egípcios e chineses.

5. Fase alfabética. Esta análise ou dissecção dos valores sônicos, nas expressões vocais, aperfeiçoou-se e, alguns pares de séculos antes de Cristo, as palavras começaram a ser representadas por sinais gráficos de valor nítido, sinais definidamente evocativos dos vários fonemas. Era o ALFABETO.

Complicado, ainda, entre os egípcios, coube ao espírito prático dos fenícios a simplificação dos símbolos gráficos de que necessitavam para seus expedientes comerciais.

A tradição atribue aos mercadores de Sídon e Tiro, a invenção do ALFABETO.

As cinco fases de J. L. de Campos, aqui por mim livremente resumidas, nada mais são do que as 4 fases evolutivas de Burggraff. (Ap. E. C. Pereira, Gram. hist.).

São elas:

I - A fase da escrita figurativa.
II - A fase da escrita simbólica ou hieroglífica.
III - A fase da escrita ideográfica.
IV - A fase da escrita fonética.

Apenas J. L. de Campos desmembrou a última em (1) silábica e (2) alfabética.

Os substituidores da ideografia pelo silabismo foram os primeiros fonetistas.

Aos primeiros tacteios desses fisiologistas da palavra se deve O FATO MAIS IMPORTANTE DA HISTORIA DA CIVILIZAÇÃO. (Berger, Hist. de l'écriture dans 1'antq. - Ap. Espasa).

A origem do alfabeto fenício tem sido explicada por uma simplificação da escritura hierática dos egípcios. Mas James Gow aventa as hipóteses mais modernas de uma influência dos hieroglifos hititas (hititas, antigo povo da Síria) e principalmente de uma escrita ainda não decifrada, que se empregava em Creta, ali para 1500 a. C. (James Gow - Minerva - Introdução ao es tudo dos clássicos gregos e latinos -Adaptação francesa de Salomão Reinach).

(NOTA - Em estudo para o The National Geoographic Magazine, (traduzido pelo sr. Teófilo Ribeiro, Minas Gerais de agosto de 1933), diz o arqueólogo Cláudio Schaeffer:
"A tradição tem atribuído aos fenícios o alfabeto. Hoje, porém, os hieróglifos cretenses, recentemente descobertos, as inscrições do Sinai e outras fontes, levam muitos historiadores modernos a abandonarem a crença de que foram os fenícios os que nos legaram o alfabeto.
Era esta a situação quando, em maio de 1929, fazendo escavações na destruída cidade de Ras Shamra, ao norte da Síria, desenterrei algumas chapas ou placas de argila, escritas numa nova espécie de alfabeto cuneiforme, nunca antes encontrado. Esta informação, remetida à Academia de Paris, despertou o mundo científico.
...Estas chapas ou placas datam de 14º ou 15º século antes de Cristo.
" [Espasa]}.

Seja como for, a nossa tradição alfabética se inicia com os gregos. E teria sido Cadmo quem introduziu o alfabeto na Grécia. Assim o querem Heródoto e as tradições. Cadmo, um fenício que se estabelecera na Beócia.

Apenas, os gregos tiveram de inventar as letras vogais, ainda não existentes.

Os fenícios, como os semitas, escreviam da direita para a esquerda. Os gregos escreveram alternando: da direita para a esquerda, e da esquerda para a direita - sistema chamado bustro fédon, (de boustrophedón: voltando sôbre os passos, como o boi, no arado). Mais tarde, adotaram a direção única que hoje temos.

Parece que Homero não escreveu a Ilíada e a Odisséia. Seus versos imortais, ele teria deixado à tradição oral, que os trouxe, de viva voz, na boca dos aédos e rapsodos, até que os filhos de Pisístrato os reduzissem à primeira compilação escrita.

Os latinos apropriaram-se do alfabeto grego. E os povos da Europa ocidental adotaram o latino. O alfabeto gótico - estilização de caracteres gregos - data do bispo ariano Úlfilas, que editou uma tradução gótica da Bíblia, no século 4°.

*****

Algumas palavras ainda, sobre o material gráfico e a evolução histórica do seu uso.

Heródoto, citado por Burggraff (Ap. E. C. Pereira, Gram. Hist.) diz que os jônios chamavam dífteras (peles) aos livros, porque eram escritos em peles de cabra ou carneiro, no tempo em que o byblos era raro. Byblos era o papyros dos próprios gregos ou o papyrus latino, planta das regiões pantanosas, marginais do Nilo. Para Teofrasto, porém, byblos era a planta, e papyros a película ou casca, a que chamavam liber os romanos. Ao papel fabricado com o papyros ou liber se denominava chartes pelos gregos e charta, pelos romanos.

Já os egípcios pintavam, no papiro, os seus sinais, ou os gravavam em superfície lisa.

Desde cedo, pois, se conheceram duas vias para a escritura: a seca e a úmida.

Por via seca se têm feito gravações e se tem escrito a carvão, greda, almagra, chumbo, grafito. Os antigos se utilizavam de tabuinhas (códices) acamadas com gesso - donde o nome de álbum -, ou com cêra (pugillares, pinária, enchirídia) sobre as quais gravavam as letras com um estilo metálico (grapheion ou glypheion, dos gregos).

A úmida generalizou-se depois de Alexandre Magno, com a utilização do papiro, do cálamo e da tinta, o atramentum librarium dos romanos.

No tempo dos Tolomeus, foi proibida a exportação do papiro egípcio. Desenvolveu-se em Pérgamo, um novo costume e uma nova indústria: escrever sobre uma péle de carneiro, preparada, a membrana pergamena, donde, hoje, o nosso pergaminho.

O pergaminho, mais encorpado, podia ser utilizado de ambos os lados. Daí nasceu o começarem as folhas a ser, não coladas, longitudinalmente para enrolamento (o rolo de papiro), mas coligadas em livros.

*****

Com todas as dificuldades da confecção antiga, os livros muito se espalharam na Grécia e em Roma. Eram artigo de um comércio organizado. Adquiriam-se a fortes preços.

Em Roma, no tempo de Cícero, havia editores a quem o autor vendia sua obra. E havia livrarias de comércio, principalmente no quarteirão chamado Argilétum, onde os bibliopolas anunciavam, em cartazes, as obras aparecidas.

Bibliotecas, como a celebérrima de Alexandria, mostram até quanto subiu o gosto antigo dos livros.

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As invasões bárbaras acabaram de arrasar a civilização romana.

Não fora a Igreja, com seus mosteiros e seus monges, e a literatura clássica teria desaparecido, - não parcial, mas completamente -, nos incêndios, devastações, destruições, dos germanos e mais invasores.

São Bento (480-543) é, por isto, um enorme benemérito da civilização, do humanismo, da humanidade. Ele e o monge Cassiodoro, que introduziram o costume e regra de copiar e reproduzir boas obras. Costume em que ficaram célebres mosteiros como o de Monte Cassino, perto de Nápoles, o de S. Columbano, perto de Gênova, tantíssimos outros, na Itália, na França, na Suiça, na Inglaterra, na Alemanha.

E porque, na Idade Média, raro e caro se fez o pergaminho, foi adotado o processo de se raspar ou apagar a escritura de um texto, afim de, no lugar, se escrever outro. Era o palimpsesto ou pergaminho reescrito.

Então, Plauto, Tito Lívio, Cícero, Horácio, etc. - coitados! - sofreram a desconsideração da raspagem, cedendo lugar a alguma cópia da Bíblia - o que se explica - ou à de algum qualquer autor religioso. O tratamento químico, moderno, destes palimpséstos, tem revelado que, muitas vezes, dois ou três textos se superpuseram no mesmo livro.

Se o comum era apagarem-se textos clássicos que dessem lugar a textos cristãos, houve, contudo, exemplos em contrário. Há, na biblioteca de Florença, diz James Gow, a quem ando seguindo, um manuscrito de Sófocles, escrito em 1298, por cima de uma cópia uncial, da versão grega dos Setenta.

Eu gostaria de saber o nome desse monge que desalojou a Bíblia, de um pergaminho, para nele vasar uma tragédia de Sófocles!

E queria que Montaigne ou Erasmo o tivessem igualmente sabido!

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No século 9º, com os árabes, entrou na Europa o papel de algodão, ainda muito caro. Outros tipos de fabricação baratearam o artigo. Foi grande, então, o impulso dado às letras, com o florescimento admirável e equilibrado do século 13.

O cálamo foi substituído pela pena de ave, que a Alemanha vulgarizou no século 16. Em 1808, Bürger teve a idea de cortar a pena de ganso em vários pedaços ou várias penas, que eram adaptadas a canetas. E fez penas de metal que não foram aceitas. Em 1830, começou a usar-se, na Inglaterra, a pena de aço. E, em 1850, Blanckertz fundou, em Berlim, a indústria das penas de aço.

NOTA - Propositadamente deixei, de margem, a imprensa, com o Guttenberg. Não interessaria, propriamente, às questões da preocupação ortográfica, porque a imprensa reproduz; mecanicamente, um texto manuscrito.


 

HERDEIROS DE MÁ HERANÇA

As escrituras antigas eram essencialmente fonéticas. Em latim, como em grego, cada símbolo gráfico correspondia a um som único determinado. 

 

Na fermentação longa e bárbara de que sairam as línguas novilatinas, houve sons que se abrandaram, sons que desapareceram e sons que apareceram. E a representação deles, na escrita, seguiu um caminho irregular de arbítrios e absurdos e caprichos individuais, a que a reação pós-renascentista veio complicar com a involução às formas latinas, num movimento que o arcadismo século 18 mais agravou.

A filologia pré-científica, tomada em falso pelos lingüistas de então, levou-os às mais estúrdias aproximações etimológicas e às mais enganosas afirmações lingüísticas.

A grafia deixou de ser fonética, para se complicar num sistema lastreado de valores mortos, de sincretismos abusivos - com predominância do pior - de sons multiplicemente representa dos, de desvios introduzidos pela ignorância, armada de presunção, legando-nos, a nós, o sistema usual ou misto, que possuímos: disparatado, ilógico, absurdo, afilológico, aglotológico, irracional, dificílimo. Suplício chinês dos aprendizes e desespero eterno dos eruditos.

À influência francesa atribui Gonçalves Vianna os exageros de nosso alatinamento e helenização ortográficos.

Se a Revolução Francesa houvesse democratizado também a grafia pedante que encontrou no país - acha o autor da Ortografia Nacional - nós os teriamos imitado e a simplificação, hoje, seria um fato simples, inconteste, como na Espanha e na Itália.

A ortografia francesa, continua ele em outra parte, foi desfigurada pelos escritores do século XVI ao XVIII, e alterada consideravelmente pelo famoso Rabelais... num tempo em que a etimologia era um entretenimento de fantasia vã, no qual se inventou escrever sçavoir, pensando que viesse do latim scire (e não de sapére).

É aquela etimologia de que zombou muito o Voltaire, quando dizia ser ela uma ciência em que as vogais de nada valiam e as consoantes valiam pouca coisa.

Ou ainda, quando explicava, com pouca intuição e muito sarcasmo:

"Os primeiros reis da China tiraram o nome dos reis do Egito, porquanto, no nome da família podem achar-se os caracteres que, arranjados de outra maneira, formam a palavra Menés. É, portanto, incontestável que o imperador Yú recebeu o nome de Menés, rei do Egito; e que o imperador Ki é evidentemente Atoés, mudado o k em a e o i em toés...".

Ao propósito vem ainda o epigrama de Aceilly:

"Alfana vient d'equus sans doute,
mais il faut convenir aussi,
qu'à venir de là jusqu'ici
il a bien changé sur la route".

Era a etimologia, também, de velhos doutrinadores, em língua portuguesa. Julgue-se pela origem da palavra Lisboa, num autor do século XV. Segundo o referido glotólogo, foi Ulisses quem fundou a cidade de Lixboa. Mas ele morreu antes de a acabar e...

"mandou a hua sua filha, que auya nome "Boa" que acabase e que ela a acabou, e que despois que foi acabada, que ajuntou hua parte do nome de seo padre ao seo e pos-lhe nome LIX-BOA."

(NOTA - No original arcaico a palavra hua tem um til sobre o u. E ele aqui não se reproduz por deficiência das oficinas tipográgicas.).

Se me obtemperam que não admira assim andasse a etimologia, no século XV, um exemplo citarei, agora admirável, de certo gramático português do século XIX - Tristão da Cunha Portugal - autor de uma Orthografia da língoa portuguesa, em 15 lições, pelo sistema Madureira, retificado pelos princípios da Gramática filosófica de Soares Barbosa, etc. Trabalho publicado em 1837. E em que muita coisa interessante pode encontrar-se. Mas a ciência etimológica de meu T. da C. Portugal costuma ser engraçada como a de Rabelais ou a daquele seu antepassado, no século XV. Também para ele, saber vem de scire; çumo (era a escrita, há cem anos) vem de succum; rançoso vem de râncidus; cuidado vem de cura.

*****

Se insisto nesta digressão a respeito desta lingüística de alquimia, que esteve em moda até fins do século 19, em nosso idioma, é para que bem se aquilate qual seja o valor científico, disciplinador e racionalizador, de uma grafia a que se agarram os inimigos da simplificação.

A ciência filológica e glotológica, florescendo embora desde os começos do século passado só nos fins dele entrou, pelos estudiosos, a serviço de nosso idioma. Só de então para cá, passou a merecer respeito. Com Carolina Micaélis de Vasconcelos, Aniceto dos Reis Gonçalves Viana, Antonio Garcia Ribeiro de Vasconcelos, Antonio Cândido de Figueiredo, Adolfo Coelho, José Joaquim Nunes, José Leite de Vasconcelos, etc. (para citar únicamente portugueses), os quais conseguiram impor-se como autoridades, no começo do século XX.

O estudo metódico e profundo da língua, deles feito, levou-os à simplificação de que foi paladino o insuperável Gonçalves Viana, a maior autoridade no assunto grafia, que a língua portuguesa conhece.

Malgrado a resolução dos doutos, e apesar de serem os doutos, o que temos feito é não a admitir e não os admitir, continuando nessa ortografia - ou, melhor, cacografia - "caquíssima" grafia, que por aí anda, eivada de contra-sensos, inçada de erros, carregada de bastardias, tudo para se não ser simples e lógico, para se não quebrar uma rotina, para se não desrespeitar a absurdos que a ignorância e o capricho criaram, para se não abandonar uma péssima imitação francesa.

Escrevendo uma língua tão intimamente irmã da castelhana, tão parenta da italiana, imitá-las na sua comodíssima e racional sistematização não o queremos nós, porquanto os exemplos eficientes ainda têm sido só os de França. E não há, na superfície da terra, grafia mais arbitrária e absurda e antipática do que a francesa, dizem os proprios filólogos franceses, repetidos por Cândido de Figueiredo.

Mas, na França, ao menos, uma cultura adiantada, uma literatura incomparável e uma autoridade respeitada - o Dicionário da Academia - remedeiam, quanto possível, as dificuldades de tal incongruente ortografia.

Não é de hoje, porém, que aqueles irmãos de língua se queixam das próprias complicações gráficas. Desde o século XVI, já se propunham reformas, naquele idioma, como as de Meignet (1542) e Ramus (1562). Eram pela simplificação da escritura francesa, nomes literariamente altos como Corneille, Bossuet, Voltaire.

Era reformista, a Gramática de Port-Roval. Foram reformistas: Roberto Poisson (1609), o abade Dangeau (1694), o padre Vandelis, o abade Girard e vários outros, no século XVII. Domergue, Marle, Adrian Feline e outros, no século XIX. (V. Espasa Calpe). Pela reforma se bateram ainda autoridades do peso de Darmesteter, Havet, Bréal, Grammont, etc.

Leia-se o que escreveu Antoine Grégoire, no Petit traité de Linguistique:

"L'opinion générale, quand le public sera plus familiarisé avec les faits de langue, finira par souhaiter la réforme orthographique. Il existe plusieurs pays où elle a été réalisée, et même imposée, en vertu d'une decision gouvernamentale. En Allemagne, le ministre a édité des simplifications orthographiques, et cela pour une largue qui en ressentait beaucoup moins la nécessité que le français ou que l'anglais. On ne peut que louer cette mesure prudente, qui prévient 1'accummulation des singularités orthographiques. Il est à noter que les partisans les plus convaincus de la réforme sont des philologues et des linguistes, c'est-à-dire, des personnes versées dans 1'histoire des langues, et par conséquent les plus compétentes..." (Ap. Lindolfo Gomes - in Rev. Ling. Port.)

As simplificações e unificações alemãs fôram propostas em 1880. Bismarck opôs-se a elas, mandando que os funcionários escrevessem pelo sistema antigo. Mas as modificações venceram, por terem sido adotadas nas escolas e na imprensa.

É típico o fato desta oposição do chanceler de ferro. O ne sutor ultra crépidam há de sempre explicar a desrazão e espírito de suficiência humanos, opinando e agindo, em cousas de que não entendem o bastante, mas que tosam por um enfermo critério pessoal, sem conta com o parecer dos doutos e especialistas.

Na questão da reforma ortográfica, entre nós, ansiada e proposta de quantos nela mourejam, com mão diurna e noturna, a oposição é a dos leigos no assunto, unicamente por amor da rotina, por amor de se não desalojarem de hábitos antigos.

A oposição de Bismarck lembra uma anedota de Max Müller e que vem a ponto contar agora (Ap. F. T. D., Gram. hist.).

Quando Sigismundo, imperador da Alemanha, presidia ao Concílio de Constança, pronunciou um discurso em latim, exortando à extirpação da heresia hussita.

- Videte, patres, ut eradicetis schismam hussitarum. (Vede, padres, que desarraigueis o cisma hussita!)

Não se conteve um monge, que não exclamasse:

- Sereníssime rex, schisma est generis neutri. (Sereníssimo rei, cisma é do genero neutro).
- Quem to disse?
indagou o imperador, com presença de espírito.
- Alexandre Galo,
respondeu o velho mestre-escola boêmio.
- E quem é esse Alexandre Galo?
tornou o imperador.
- Um monge.
- Pois bem: eu sou o imperador de Roma e espero que mais valha minha palavra do que a de um monge.

Sem dúvida, na ocasião, a assistência ficou do lado do imperador. Mas schisma não deixou de ser do gênero neutro, porque nem um imperador lho poderia mudar. Contra o que deve ser, acabam as resistências, ainda as maiores e mais autorizadas. A simplificação gráfica vencerá, apesar de tudo. Ela não é uma sistematização completa e perfeita da escrita, porque a complicação é muita . Mas, se o pouco que se quer excita e amedronta a rotina... imagine-se uma tarefa radical!

Dizia eu, em começo, da má herança que dos romanos houvemos. A vantagem deles era o simbolo escrito representar o som, e para cada som valer um símbolo.

Vejamos, agora. em exemplos apanhados a J. L. de Campos, a variedade de valores sônicos para os mesmos símbolos gráficos ou a de símbolos gráficos para os mesmos valores sônicos, no português. (Nota do organizador: é claro que a exemplificação do Autor refere-se a grafias existentes na época - velhas grafias, diz ele).

1. Um símbolo único latino, de valor polifônico em português.

Exs.: cara, cedo; sábio, casa, resoar (pronuncie-se ressoar; está pela velha grafia), ânsia, transação; fluxo, bexiga, exame, máximo.

2. Um som único, de representação poligráfica.

Exs.: capa, cháos, kágado; cégo, selva; poço, posso; lixo, nicho.

Isto, sem contar as complicaçães gregas e latinas, que um falso conceito radicou, desgraçadamente, num errado uso de escrita, transformando muitas palavras em câmaras funerárias de letras mortas, afeando a muitas outras, com bastardias ignóbeis.

Só um novo alfabeto remediaria completamente a escritura das línguas novilatinas. Tinha razão o Leibnitz : "Dai-me um bom alfabeto e eu vos darei uma língua bem feita. Dai-me uma língua bem feita e eu vos darei uma boa civilização".

E tinha razão às carradas, porquanto um povo capaz de tal alfabeto e tal língua só poderia estar em nível intelectual de tal civilização.

Entretanto, enquanto lá não chegamos, por que não imitar a italianos e espanhóis?


GRAFIA DA LINGUA PORTUGUESA 

...os Ozas sacrílegos que erguem a mão contra a arca santa da rotina.” (Cândido de Figueiredo).

O caminho errado, que nos trouxe à grafia irracional que no Brasil domina ainda, trilhou-o, até onde estamos, a escritura da língua, porque se deixou governar por falsas concepções de lingüística e etimologia. Ou melhor, por um corpo de conceitos que estão para a glotologia como para a química está a alquimia.

Já da língua asseverava o Camões que Vênus, quando nela imaginava, cria que era a latina poucamente corrompida.

A convicção de ela ser um latim disfarçado gerou, na reação renascentista, um movimento aproximador das fontes, naturalmente acompanhado de preocupações a respeito da origem do idioma.

Todo o erro, porém, foi tentar-se a aproximação de maneira seca e simples, num salto absurdo por cima de séculos de vida, da língua. Aproximação que levou a escrita aos melhores disparates ortográficos, até o século XIX, século de florescimento da literatura e murchecimento do vernáculo, gafado de um francesismo invencível, que o contagiou definitivamente, desde que a falência histórica de Portugal foi posta mais em evidência, com o surto progressista de outros países, e desde que o Brasil apenas começava a sua maioridade política, encantado com a liberdade e ansioso de imitação.

Os franceses inundaram-nos de palavras gregas, freqüentemente mal formadas e piormente nacionalizadas por nós, enfarpeladas numa grafia de arrebiques que a insuficiência glotológica de uma época definitivamente implantara no sistema ortográfico daquela língua irmã.

As chamadas palavras de origem grega, tão predominantes em o nosso vocabulário técnico e científico - medicina e ciências naturais, principalmente - jamais nos vieram do grego. Da França, originàriamente, ou pela França transitivamente, é que elas nos vieram, porque francesa tem sido nossa cultura, aqui e em Portugal. O fato é coisa explicabilíssima, pois nossa cultura é toda de importação. Se lá fóra é que inventam e descobrem, lá fóra é que se hão de batizar, na pia gramatical grega, as cousas que depois nos vêm nomeadas, restando-nos o trabalho, tão anarquicamente feito, de nacionalizar o grego... francês.

O mais que nos veio do grego - velhos termos de filosofia, retórica, etc. - também não foi do grego e sim do latim, que os houvemos.

Alguns se plebeizaram de todo. Muito rezador da Acrópole e muito lírico da Arcádia, entre nós, poderia ficar espantado, ouvindo afirmar que a palavra bodega é de origem grega ou helênica.

E para todas estas palavras, mediatamente gregas, quando vulgarizadas, a tendência, que sempre houve, na língua, foi simplificar-lhes a escrita. São exemplos carta, escola, tio, talo, cirurgião, fantasma, faisão, fleugma, farol, Felipe, etc. etc.

Mas a reação afrancesada moderna andou reentronizando os valores gregos com abundância que fez sobrar os tês-agás e pês-agás e ipsílones para gregos e troianos: lyrio, cyrio, cathegoria, systhema, Athayde, etc.

Por outro lado, o entusiasmo etimologista levou-nos a fervores como o de Castilho, José, que nos queria ver escrevendo poncto, docto, insinar, haghora, para se não desrespeitar aos étimos punctum, doctus, insignare, hac-hora.

Essa laia de ciência imaginava a etimologia como uma química de gabinete: tomada a palavra latina, dela se deduziria a forma vernácula, segundo processos queridos pelo filólogo.

Ora, o vocábulo de evolução, a palavra vernácula, sofre e se transforma à ação de leis mais ou menos constantes, que o estudioso unicamente terá de verificar e registrar. São as chamadas leis fonéticas.

A palavra a elas submetida é como o seixo, rolado no leito de uma corrente, em que vai sendo desbastado, desangulado, polido, até perder repontas e acidentes, e harmonizar-se com os outros seixos.

Ao etimologista cumpre, ir, pacientemente, curso em fora, descobrindo as transformações, verificando os estágios vários, através dos autores e dos documentos, ao longo dos séculos.

É esta uma ciência de observação meticulosa, apoiada na verificação, sustentada no fato.

Só o vocábulo erudito, de formação não evolutiva e sim artificial, pode ser mais ou menos imediatamente explicado num confronto com a palavra originária. Não levado na corrente, de que fica à margem, fàcilmente conserva alguma feição e aresta que tinha, quando importado.

Exemplifiquemos o primeiro caso com as palavras igreja, fruto e agora.

Igreja Do grego latinizado ecclesia. O uso e desgaste popular transformou a palavra em eigreija (vocalização do 1º c, abrandamento do 2º, substituição da líquida l pela líquida r, hipértese do i, mudança do s em j). O grupo inicial se virou em i, ficando a palavra igreja, após a queda do i médio. Esta a razão de grafar-se IGREJA e não EGREJA.

(NOTA - O único tipo de grupo consonantal verdadeiramente português, em início de sílaba, é o que tem r como pospositiva. Os grupos de l (em pospositiva) apareceram depois, com a influência erudita - Gonçalves Viana.)

Fruto - Do latim fructu. Vocalização do c e queda subseqüênte do i: fruito>fruto.

(NOTA - A praxe moderna é dispensar-se o m do caso lexiogênico, nas formas originárias: em vez de fructum, fructu.)

Agora - De hac-hora. A grafia arcaica suprimia muito os agás: onra, avya, ora. Escreviam acora, donde o português agora.

(NOTA - Gonçalves Viana escreve com h o nome desta letra: hagá. Outros, porém, como Rui Barbosa e Mário Barreto, Oiticica e o Vocabulário da Academia, pintam simplesmente agá.)

Querer reaproximar a forma vernácula, já evolvida, à forma etimológica, seria o mesmo que querer voltar o seixo a um precedente estágio de despolimento.

 

 

 


EVOLUÇÃO GRAFICA DA LINGUA PORTUGUESA

"É mister formular-se ortografia portuguesa com os elementos tradicionais da sua escrita, e não com farrapos de escrita alheia..."
(Gonçalves Viana)

Vamos passar em revista algumas exemplificações da grafia portuguesa e transformações por que tem passado.

Para os textos mais antigos, queria transcrever trechos da Crestomatia arcaica, de José Joaquim Nunes. Como, porém, a ortografia dele, segundo confessa em prefácio, é a bastante singela, do códice da Ajuda, pela qual retificou a escritura da obra, preferi exemplos tomados à Gramática histórica da coleção F. T. D.

Ela não explica a fonte dos ótimos textos para estudo, que enchem todo o volume, mas, de qualquer maneira, pela grafia, eles vêm muito ao caso e matéria, de que trato. Uma leve amostra do:

Século XII:

Hec est notitia de partiçon, e de devison, que fazemos antre nos, dos erdamentos e dos coutos, e das Onrras e dos Padruadigos das Eygreygas, que forum do nosso padre, e de nossa madre, en esta maneira: que Rodrigo Sanchiz ficar por sa partiçon na quinta do Couto do Viiturio, ena quinta do Padroádigo, dessa Eygreyga, en todolos herdamentus do Couto, e de fora do Couto. (1192).

 

Século XII:

Conoscã todos que eu Eluira Lourenço abadesa do moesteiro de Santa oufemea ensenbra cõ o conuento dese meesmo logar fazemos carta denprazamento a uos Mouro domingiz e a uosa molher Domingas... de huu meio de muino que o dito Moesteiro a en Folares por en dias de uosa uida danbas as pesoas en cada huu ano ende no dito Moesteiro dous segundos de pã e seer ende os dous quarteiros de Milho, etc...

(NOTA - A falta de u-til e e-til força o autor a deixar deficiente a reprodução gráfica de uma ou outra palavra nos textos antigos amostrados neste capítulo.)

 

Século XIV: A rã e o boi

Pom este enxemplo este doutor e diz que huu boy, andando a beber, pose o pee em çima de huu filho d'hua rrãa. E a rrãa veendo esto, assanhou-sse muyto: conpeçou-se muyto fortemente de jmchar, e queria-sse fazer tam grande como era o boy, pera sse matar com ell. O filho lhe disse:
- Madre, nom faças, ca tu es muy pequena cousa a rrespeyto d'este boy.
A rrãa, polo gram pesar que auia outra vez muyto mays conpeçou de jmchar. O filho a rreprehemdia, dizemdo:
- Madre, nom te esforçes de te jmchar tanto, ca poderias arrebemtar: e ajmda que te jnches quanto poderes, nunca serás tamanha como o boy.
A terceira vez a rrãa sse jmchou tamto que arrebemtou pollo uemtree morreo.

Compare-se com a retificação de J. J. Nunes, na Crestomatia:

- Madre, non faças esso, ca tu és mui pequena cousa a respeito deste boi.
A rãa, polo grau pesar que avia, outra vez muito mais começou de inchar. O filho a repreendia, dizendo
- Madre, non te esforces de te inchar tanto, ca poderias arrebentar: e, ainda que te inches quanto poderes, nunca serás tamanha como o boi. -
Etc.

 

Século XV: Bons conselhos:

Ouve, vê e calla,
e viverás vida folgada.
Tua porta çerrarás,
Teu vizinho louuarás,
quãto podes nam farás,
quãto sabes nã dirás,
quãto ves nã julgarás,
quãto ouves nã crerás
se queres viuer em paz.
Seis cousas sempre vê,
quando fallares, te mando:
de quem fallas, onde e quê
e a quem, como e quando;
.....................
nom cures de ser picam,
nem trauar contra rrezam
Assy lograrás tas caãs
cõ tuas queixadas saãs.
(Dom João Manoel, camareiro-mor del-rei d. Manuel).

Século XVI:

Chegou aa torre furtado da frontataria da janella, a horas de meia nocte e ordenou Deus que fosse em tal asseio, que ho mouro que hacte entam veelara se foora a dormir & encõmendara a veela aa filha. Ha qual quomo moça & pouco cuidadosa de tal cuidado, se soccornou na janella, e addormesceo. Alegre ho caualleiro de tã boa conjunçam, desattando-se da rama, trepou & lançando mão aa moça, deu com ella abaxo: de modo que nunqua mais falou, nem fez rumor alguo, & entrando na torre cortou a cabeça ao Mouro que achou se guramente dormijndo, & entreghe a ho primeiro soinno. Etc. (André Falcão de Resende)

Compare-se a escritura de Falcão de Resende com a desta nota, no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, publicado em 1516:

- Acabousse de empremyr o cancyoneyro geerall. Com preuilegio do muyto alto, & muyto poderoso Rey dom Manuell nosso senhor. Que nenhua pessoa o possa empremir nem troua que nella vaa, sob pena de dozentos cruzad', & mais perder todollos volumes que fizer. Nem menos o poderam trazer de fora do reyno a vender ahynda que la fosse fejto so a mesma pena atras escrita. Foy ordenado, & emendado por Garcia de Resende fidalguo da casa del Rey nosso senhor, & escriuam da fazenda do prinçipe. Começouse em almeyrym, & acabouse na muyto nobre, & sempre leall çidade de Lixboa. Per Hermã de cãpos alemã bõbardeyro delrey nosso senhor, & empremidor. Aos xxvjjj dias de setembro da éra de nosso senhor Jesu cristo de mil & quynhent, & xvj anos.

 

Século XVII: Neologismos

- Por tres razõens deve huma lingua admittir e naturalizar as palavras de outra: por indigencia, por elegancia, e por decencia. Em primeiro lugar, a indigencia noõ tem ley, que prohiba a huma lingua o valerse de huma palavra, que necessita. Os mesmos Romanos ainda que soberbos, e altivos, como Senhores do Mundo, se sogeitarão a mendigar palavras dos Gregos, seus subditos, e por boca de Quintiliano confessaraõ a sua indigencia: Paupertate sermonis laboramus.
(Rafael Bluteau)

 

*****

 

Não é possivel continuar citando textos antigos. Para bem se avaliar a desordem ortográfica, o capricho, a desunidade, necessário fôra cotejar os autores, um por um.

Vão aqui uns rápidos respigos, feitos em vários trechos do século XVII:

-mouer- huma - hua - Hierusalém - janeyro - christaõs - corryeo - he - dicçoens - candea - mayores - mãy - hum - Phavorino - filosofo - fallar - circumlocuçoens - vay - Cosmografia - Hydrografia - serman - cõsolaçaõ - profeta - capitam Joam - diziaõ - Deos - froxos - pello (per+o) - conservouse - Izaias - sintamse - perdem - eleuaõ - baxel - izentas - mancissima - sugeito - metafora - author - senam - dezeja - epresa - be - cõ - hu - tepos, etc., etc.

Século XVIII - No século 18, o individualismo e anarquia eontinua o mesmo. Escrevia-se:

rei - rey - foy - missoens - capellam - hua - questam - Bahya - martires - pello (ut supra) - muy - regiam - dirvoshey - cazo - athê (até) - daly - rezultavaõ - dissensoens - couzas - he - izentas - laborioza - taõbem - Luzitana - envejar - occazioens - dezembargador - Jozé - phraze - etc., etc.


SÉCULO XIX

O século XIX é o século do romantismo, constelado de grandes nomes, como Garrett, Herculano, Castilho, Camilo, Latino Coelho, ou Gonçalves Dias, Alencar, Macedo, etc. Em questão de grafia, teve cada um seu processo e seu procedimento.

Garrett (João Batista da Silva Leitão de Almeida, 1799-1854), vaidoso, gostava de particularidades gráficas, como mattar, fummo, entrehabrir, cumullar, ingano, imbora...

Herculano (1870-1877) era cuidadosamente etimológico: mysterio, monarchia, apparecer, theatro. etc.

Castilho (Antonio Feliciano, 1800-1875) aconselhava a seus secretários uma racional simplificação: outono, anualmente, afeição, inocente, etc.

Camillo (1825-1890) nunca se preocupou de grafia: sear, alphange, sidreira, emmergir, antypodas, etc. são formas encontradas em escritos dele, garante-o Cândido de Figueiredo, a quem estou seguindo nestas informações acerca dos românticos portugueses.

Latino Coelho (1825-1891), quebrador de lanças por uma "grafia estética", escrevia prophano, com pê-agá!

Examinarei aqui um trabalho de Tristão da Cunha Portugal, para ficar sabido que cousa ainda se ensinava como devendo ser, em questão de grafar palavras, na primeira metade do século dezenove.

Intitula-se Ortografia da lingua portuguesa, o referido trabalho. Segue Madureira, retificado por Soares Barbosa. Data de 1837. Estamos quase no centenário do livro. Vejamos o que, há cem anos, era determinado por um professor de português.

Na prefação, lamenta que a ortografia, na língua portuguesa, venha andando empírica, quase absolutamente empírica, escrevendo cada um segundo o próprio querer. Após definir o que seja ortografia, enumera os quatro modos de errar contra ela:

1. por acrescentamento: he, adoação, alanterna;
2. por diminuição: olivera, qalidade, sô (sou);
3. por troca: antre, precurador, negrigente...;
4. por transposição: clomeia, frol.

Discorre sôbre os três sistemas ortográficos:

I - O sônico, em que a escrita representa, ao justo, o som da palavra.
II - O etimológico, em que as letras denunciam a origem da palavra.
III - O usual, que caminha entre os dois primeiros e de ambos participa.

O primeiro, o sônico, inculcaram-no alguns reformistas do século passado, diz o autor, e até livros, por ele, se escreveram. Mas ele não teve voga.

Filho do latim, há de o português pautar-se pelos seguintes princípios:

I - As palavras primitivas seguem a escritura adotada na língua latina, se dela provierem.
II - As palavras derivadas seguem a das palavras de onde vêm.
III - As que não procedem próxima e claramente do latim, seguem o uso das pessoas cultas.

(Entre parênteses, é uma espécie de lei da boa razão, deste Pombal gramático, que foi o nosso T. da C.)

Tratando do h, do k, e do y, diz que eram letras quase escusadas e se podiam substituir por outras, como desejavam alguns. Mas tacha de inútil discutir a questão, concluindo: "... e nem aqui é o lugar destas erudições".

Regista grafias como pai, pau, céo, meu, ouviu, pôes, mãi ou mãe, mains ou mães, bee, bõo, etc., declarando ser muito variado o uso.

Protesta contra a "inovação que começa de introduzir-se, escrevendo coisa, açoite, coiro, coi ce". É defeito contra a derivação latina". "Ninguem escreve nem pronuncia oitro, azoigue, coive, oitubro".

Falando do ch, diz que o empregamos por imitação: archanjo, Achilles; e por necessidade: chave, cheiro.

PH - A respeito, cita uma regra do padre Madureira, que mandava escrever com ph o nome, sendo próprio, e ph ou f, sendo apelativo. Após uma nomenclatura ph, bastante longa, o Portugal chama a atenção para as palavras que se vão introduzindo na língua, como: tachygraphia, lithographia, etc.

FF - "Toda palavra que principia por di, e, o e su, seguindo-se-lhe imediatamente f, dobra esta consoante", reza textualmente o livro.

Pelo menos tem a vantagem de ser decisiva e clara, a regra!

Gambetta, quando, um a vez, se preparava a um exame de direito, ficou encantado com a nitidez líquida de um texto legal, que dizia: "Todo condenado à morte terá a cabeça cortada." Prometeu e apostou que havia de começar o seu exame pelas referidas palavras. No dia aprazado, saiu-lhe à sorte o ponto hipotecas. Os companheiros entreolharam-se, expectativos. Calmamente ele principiou: "Todo condenado..." com espanto grande dos examinadores e dos colegas. Mas logo acrescentou: "Antes fôsse tão clara, a legislação sobre hipotecas..."

Antes fosse, também, toda, assim clara, a legislação a respeito de grafia, como o referido texto de Portugal. Eis alguns nomes, apanhados na lista de exemplos que ele desenrola, para concretizar a dada regra : affadigar, affagar, affamado, affastar, affear, afferrar, e muitos outros do mesmo calibre.

G - Soares Barbosa propunha-lhe desterro dos logares antes de e e i: jente, jiro...

H - Diz o T. da C. que é letra muito discutida. E faz longo discurso a respeito, com pontos de vista normais, mais ou menos, para os olhos de nossos dias. Numa lista de exemplos, aconselha que se escreva Hetruria, huivar, etc.

K - Os amantes da simplificação não o querem nem para kalendas. (Só nas gregas, concordaria eu). - Cada qual escreva como lhe pareça, contanto que se respeite aos nomes próprios peregrinos: Kan, Kremlim, Koran.

PS - Muitos já se vão resolvendo a escrever salmo, salmear.

TH e X - Expõe ideas mais ou menos atuais.

Y - Tem havido luxo demasiado no seu uso. Já, hoje, porém, o empregamos em palavras de origem grega... E cita o critério de Bluteau (seguido por Madureira) para reconhecimento de palavras gregas ipsilonadas. São as que começam por (1) syn, (2) chrysos, (3) pyr, (4) lycos, (5) poly, (6) hydor, (7) physis, (8) hyper, (9) hypo. Manda ainda escrever Cambaya, giboya, zagaya, etc.

Z - Responde ao c latino ou ao t. Manda escrever az, aza, braza, duqueza, mez, preza (do la tim pretium), etc. - Quem não quiser prender-se à imitação pode escrever brasa, bellesa, asinhaga...


TREZE REGRAS ORTOGRÁFICAS de T. da C. Portugal

T. da C. Portugal resume num código de treze princípios, as regras comuns e gerais da ortografia. Vamos, aqui, delas, reduzir alguma cousa mais interessante, quer positiva, quer negativamente.

1. Palavra nativa (?) escrever-se-á com caracteres nacionais. E cita o abecedário nacional, em que não entram k, nem y, nem w, nem o h solto.

3. Na regra 3, diz que as palavras derivadas ou etimológicas (?) não devem ter letras desnecessárias. Não se escreverá he, hum: nem esparto, espaço (mas sim sparto, spaço), porque é escritura contrária ao latim spartum, spatium. Etc.

5. O acento diferença vozes: pára e para. Mas quando ele se acha preocupado pela sílaba aguda, é permitido, segundo os clássicos, como João de Barros, dobrar a vogal: vaadío, preegár.

13. Se a palavra vem do grego ou do latim, conserve os caractéres. Do grego: k, y, th, ph, rh, ch, ps. Do latim: h, x (cs), bb, cc, dd, ff, etc.

Para sabermos quando são duas as consoantes, temos que olhar a composição prefixal.

Já se começa a desertar da supersticiosa imitação das origens.

Se a palavra é de uso dos sábios, conserve sinal da origem; se de uso popular, tome roupas de nosso alfabeto.


CRITICA AO PORTUGAL

Vê-se que era um bom homem, o nosso T. da C. Portugal.

Ele manda escrever çumo (do latim succum), preza (do latim pretium), cuidado (do lat. cura), affear, affadigar (por causa do prefixo latino) - mas isto só mostra como a etimologia estava infantil ainda, e zureta, no tempo dele. A ciência de Bluteau, Madureira, Soares Barbosa, não passava de uma grande vontade de acertar.

Nosso Portugal ressuma, já, uma constante inquietação de eruditismo, de ver escritas com efes e erres as palavras, em uso de sábios, que venham do grego ou do latim. Mas o bom senso - que é um lastro da opinião geral, uma tendência harmonizadora com a realidade, e tendência possível em todos nós, - poreja, nele, a cada momento.

Quando fala do ch, do ph, do k, do y, declara que os amantes da simplificação não os querem. E que são mesmo inúteis. Ou ainda, que já se começa a desertar da supersticiosa imitação das origens. Mas ele próprio se não furtou a essa imitação, contaminado que andava de uma ingênua presunção científica, "a qual, em vez de infirmar e desaparecer, alastrou e vigorou, tomando conta da nossa ortografia, embora a verdadeira ciência glotológica de um Gonçalves Viana bem mostrasse a desrazão de todas estas complicações que perturbam a escrita e reagem contra a natural evolução da língua.

 

 


OPINIÕES 

Em 1853, pela célebre revista Panorama, declarava Latino Coelho que devia “a escrita significar rigorosamente os diferentes sons de que constam as palavras”, e que era um erro “o escrever diverso do que há de ler-se e se pronuncia”.

Em 1879, dando parecer, em nome da R. Academia das Ciências, sobre um projeto de reforma ortográfica, - na ocasião tentada, - o mesmo Latino falou em “ortografia estética”, ortografia que não era bem perder o “colorido de veneranda ancianidade”... E, numa zumbaia comme il faut, disse mesmo que a falta de ortografia foi uma das mais poderosas razões de perda da primitiva linguagem romana!...

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Bem se vê que era o Romantismo! Temos, porém, cousa melhor! Escute-se o Aulete, o do Dicionário contemporâneo:

"Quando lemos a palavra homem. a letra morta h traz-nos à fantasia a grande civilização romana: filia o homem atual nessa gloriosa plêiade de heróis latinos. cujas ações maravilhosas ainda hoje assombram o mundo".

Tem realmente força esse defunto h! Pena que os italianos, mais diretos herdeiros da “gloriosa plêiade”, o hajam eliminado da palavra uomo e do alfabeto deles!

Lástima que aqueles portugueses duros de d. João I, apesar de vencedores em Aljubarrota fossem tambem omens sem h e tivessem em tanta conta a onrra, tambem sem h e até com dois erres!

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Entre nós, quando a Academia Brasileira tentou a malventurosa reforma de 1907, contra esta se descarregou o melhor sarcasmo que, então, possuíamos, e era o de Carlos de Laet.

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Mr. John C. Branner é da Standford University, Califórnia. Em artigo para a Rev. da Ling. Port. (1920), o sr. Júlio Nogueira traz, como forte argumento contra a reforma ortográfica, a opinião do norte-americano Mr. Branner.

Otávio Augusto (autor do livro Fausto e Asvérus) mandou a este professor o seu trabalho, escrito na grafia simplificada. Numa carta ao autor - e que Júlio Nogueira reproduz - Mr. Branner declarou que muito ruim impressão lhe causara a neografia da obra. Sobretudo porque ela torna o português mais parecido ainda com o espanhol. (!)

"There is unfortunate impression that the Spanish and Portuguese languages are so much alike that if one learns Spanish he need not trouble himself about the Portuguese".

A nova escrita veio agravar a parecença. Palavras como anarquia, Atenas, Cristo, etc. não são portuguesas, sim espanholas: "These new forms are not the Portuguese, but simply the common Spanish words". Quando um falante de língua inglesa encontra, em português, palavras como atmosphera, orthographia, condemnar, etc. - é como se encontrasse velhas conhecidas, velhas amigas: mas tais palavras são como estranhas, se escritas sem ph nem th, etc.

Muito bem ao professor Branner e ao sr. Júlio Nogueira, que o chama a tablado, para atacarem a neografia simplificada! O primeiro, porque acha lamentável o português tornar-se mais parecido ainda com o espanhol, com o grave inconveniente, para quem sabe uma das línguas, de não precisar de aprender a outra! "He need not trouble himself about the Portuguese". (!) O segundo, porque parece daí concluir não se dever reformar a grafia, para não desagradar aos estrangeiros "like" Mr. Branner!

Se esse metéco de ph - e seus companheiros th, ch, y - ao menos conquistassem para nós a Inglaterra e os Estados Unidos, ou nos fizessem um tiquinho mais conhecida a língua brasileira, ali naqueles países, então lhes admitiria eu utilidade e ajudaria a gritar contra a reforma.

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Como antídoto ao sentimento professoral e estrangeiro de Mr. Branner, apresentarei o que disse o professor José Oiticica, em artigo no Correio da Manhã, em 1929:

"Aqui, na Alemanha, tendo de ensinar a alemães, em concorrência com o espanhol, mais se sente o peso morto de tantos agás inúteis, letras dobradas, letras parasitas e a falta de uma acentuação esclarecedora. Adotei imediatamente a grafia portuguesa, embora no uso corrente do Brasil se use ainda o caos ortográfico e pseudo- etimológico. A grafia brasileira é rebarbativa, incerta, incoerente, afugentadora. A espanhola, graças à sua simpleza e certeza, convida os estrangeiros e daí sua assinalada vitória até sobre o francês, nas universidades alemãs. Para uso interno e externo, pois, é indispensável, premente, a oficialização de um sistema gráfico fácil, cômodo e invariável."

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Venho citando opiniões e reações contra a reforma ortográfica. Elas poderiam ser multiplicadas. É inutil, porém, continuar.

E vou concluir este bater na mesma tecla pela admissão de que o opor-se ao novo é uma fatalidade, e é cousa que tem sido inevitável às coletividades humanas. As melhores inovações foram combatidas rudemente, ao tempo em que apareceram. Os mais geniais inventores sofreram cruas decepções nos sonhos de ver sua obra triunfalmente consagrada, quando a apresentassem ao público.

Tomemos para exemplo a ferrovia. Que se não disse contra o trem-de-ferro, quando ele apareceu? Homens dos mais ilustres e dignos, em França e Inglaterra, insultaram profundamente, solenemente, aquele progresso, quando, há cem anos, começava a espalhar-se na Europa. Aquilo não tinha segurança, aquilo não iria à frente. Como poderia o homem respirar, andando com uma tal velocidade? E, dado que fôsse viável, num dia só o trem faria todos os transportes... e, depois, no resto da semana, que se haveria de fazer?

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A massa é ingênitamente conservadora. Em qualquer outra questão, como na questão ortográfica, o primeiro movimento é o de repulsa “pelos Ozas sacrílegos que erguem a mão contra a arca santa da rotina”.

O problema ortográfico tem existido, mais ou menos premente, em cada país civilizado. Resolveram-no, e bem, a Espanha e a Itália. Mas na França e na Inglaterra, ele continua uma dificuldade de esmorecer todo esforço.

Os movimentos no sentido de uma grafia mais racional e simples têm encontrado veementes e indignadas oposições. E são os literatos que chefiam, não raro, a campanha. Enquanto os técnicos, no assunto, os gramáticos, filólogos, professores - que lidam com a matéria e lhe enxergam os absurdos e dificuldades - são, em geral, os que recomendam e pedem remédios, os romancistas e poetas e jornalistas gritam contra a inovação. E é natural, até certo ponto. Aprenderam a pintar as palavras quando cursavam a escola. Lançando-se, depois, na atividade literária, enrijaram os dedos e os olhos naquela maneira aprendida. Que se vá agora propor-lhes mudança, deslocá-los de seus hábitos, obter-lhes um novo sistema de escrever!

Entretanto, é sabido que os literatos, modelos de estilo, em gramática e ortografia têm lá suas liberdades. Sobretudo em ortografia.

"Ninguem sabe escrever" dizia o Fradique Mendes do Eça.

"Os próprios mestres têm extravagâncias", dizia o Cândido de Figueiredo.

'Não há Camões, Sousa, Bernardes, Herculano, Vieira, ou Castilho, de quem não hajam apontado muitas (extravagâncias), os melhores aquilatadores", dizia o Rui, concluindo o citado Cândido de Figueiredo.

“Somos três, em Paris”, gabava-se Balzac, “os que sabemos a nossa língua: Hugo, Gauthier e eu”. “Mas já os contemporâneos lhe respondiam, exprobando-lhe enormes erronias, solecismos, formas bárbaras, torneios inauditos ou formalmente irregulares". (Rui, Réplica).

Citei, como exemplos maus, em cousas de ortografia, a Garrett e Camilo. Dos antigos nem se há de falar. Entre nós, o próprio Rui, tão modelo e tão seguro na vernaculidade, percorra-se-lhe a Réplica, num exame ortográfico, e se verá como é descriteriado, como e usual, misto e inconseqüente. E já não vou citar, por exemplo, ao Eça e ao Fialho de Almeida, cuja irreverência para com o vernáculo e cuja indiferença para com tais perfeições, como a grafia, são muito sabidas.

Isso, apesar de o Eça ter dito, com a finura sedutora de sempre : "Um homem só deve falar, com impecável segurança e pureza, a língua de sua terra: todas as outras as deve falar mal, com aquele acento chato e falso que denuncia logo o estrangeiro". (Fradique Mendes).

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Na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, os literatos se têm oposto a reformas ortográficas e defendido a grafia usual, com todos os seus males. E, se há línguas que necessitariam de regiminização, haviam de ser a francesa e a inglesa.

Do inglês dizia, em chacota, Alexandre Dumas, se me não engano: "Em inglês, a gente escreve árvore, pronuncia canoa e, no fim, a palavra significa montanha".

Nos Estados Unidos, T. Roosevelt, inimigo da disparatada grafia de sua língua, chegou a determinar que, nos atos oficiais, fosse usada a ortografia dos reformistas. Houve protestos, houve reações. E o caso foi levado à Suprema Corte. A qual determinou que, oficialmente, só deveria ser usada a ortografia de Webster. Webster, que é uma espécie de Morais lá dos americanos, como diz Mota Assunção, de onde tirei o informe.

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Quem deslocará a massa grande e informe, da rotina?

- A infiltração.

Lá dizia o Lucrécio admirável: - "Indupedíta suis fatálibus omnia vinclis" - A tudo ligam vínculos fatais.

O que há de ser, terá força.

 

 


TENTATIVAS DE REFORMA

Enquanto o escrever esteve mais ou menos relegado à saboreada pacatice dos mosteiros, à obrigação superlativa dos cronistas de poderosos e ao gosto aristocrático da diminuta classe letrada, era possível a questão ortográfica não incomodar tanto, socialmente, a um povo.

Ainda hoje, na China, em muitos lugares, não pode haver preocupação ortográfica. O escrever, neles, é atividade limitada a poucos profissionais. Há os escrevedores de ofício. Quem precisa de mandar uma carta ou ter um documento, a eles se dirige, como quem vai ao mercado ou à loja. E o profissional, com a mesma cara, pinta uma carta lírica, que lhe pede uma noiva, ou uma carta lutuosa, com notícia da morte de alguém. (Creio que vi isto no Tapete mágico, do cinema).

Escrevia-se, como vimos dos antigos, mais ou menos à vontade. E ninguém sentia muita preocupação de ortografia. Grafia era o suficiente.

Enquanto a ciência da linguagem esteve cheia de abusões e infantilidades, era admissível o capricho, a imaginação, - com que foram enfeitadas, pelo uso, as palavras escritas.

A pouca extensão social da cultura, a predominância do especulativo e do formal, os largos ócios e as calmas necessidades de uma vida em que o espaço era medido lentamente e em que o tempo era servido em largas porções - tudo faz adivinhar porque não ecoaria tanto o problema e a dificuldade de bem representar o pensamento escrito.

Mas hoje a instrução democratiza-se. Todo mundo escreve. No Japão, 99,5% da população freqüentam a escola. Só meio por cento de japonês é analfabeto. (Miguel Couto, A educação do povo). Imagine-se que seja a ortografia japonesa complicada feito a brasileira... Qual não será o trabalho louco dos professores, para a ensinarem a tanto filho do sol!

No momento, a tendência social é para a coletivização, a massificação. Daí a importância de todo problema que interesse à massa. Estão na conta as dificuldades insuportáveis de nosso sistema ortográfico. E o homem de hoje, em vez de aumentar sua capacidade intelectual, para vencer as complicações da escritura do pensamento, só lhe apraz aquilo que o ajuda nas explorações práticas da vida. Isto de escrever corretamente é uma especulação. A vida rápida reduziu muito o espaço e valorizou, em porções infinitesimais, o largo tempo de outrora, que lhe não sobra mais, bastante, para calmas lucubrações.

Por outro lado, a glotologia moderna demonstrou a falsidade complexa e a inutilidade estorvante de nosso sistema ortográfico, em oposição com uma grafia mais simples, mais racional, mais perfeitamente histórica e etimológica. Ela não é ainda tudo. Mas por que não a adotarmos, definitiva, eficiente e universalmente?

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Quantas vozes sensatas se têm feito ouvir, e quantas tentativas se têm ensaiado!

Desde os primeiros livros sôbre a língua portuguesa, vem sendo tratado o assunto. Em muitos deles, com bons conselhos que ditaram o estudo, a prática e o senso. Trabalhos especiais têm sido consagrados à matéria... e o problema ortográfico continua apoquentando a inteligência do estudante brasileiro e a lógica de nossos homens feitos.

Dos que pude ir sabendo, no estudo que me ocupa, eu citaria: Duarte Nunes de Leão, Ortografia da língua portuguesa. Fins do século 16, ou começos do 17, porque ele morreu em 1608; Álvaro Ferreira de Vera, Ortografia, 1631; Bento Pereira, Ortografia, 1666; Tristão da Cunha Portugal, Ortografia da ling. port., 1837; V. Bóscoli, Ortografia, 1885, Rio; Miguel de Lemos, Ortografia positivista, 1888. Rio.

Mas foi Gonçalves Viana quem definiu, delimitou e tratou seriamente o assunto, em que se tornou suprema autoridade. Mencionarei especialmente a sua Ortografia Nacional, 1904. Depois dele, a lição dos doutos, quase unânime, tem sido pela simplificação. Mas a idéia parece não querer amadurecer entre nós.

Entretanto, o conselho da simplicidade gráfica apareceu, na língua, com a sua primeira gramática, a que escreveu Fernão de Oliveira, em 1536:

"As dicções que trazemos doutras línguas, diz ele, escrevê-las-emos com as nossas letras que nelas soam, como ditongo, filósofo, gramática, porque todo o mais é impedimento aos que sabem essas línguas donde elas vieram".(Ap. Carolina Micaelis, in F. T. D.)

E João de Barros, que fez a segunda gramática, publicada em 1540, também fala:

"A ortografia é a ciência de escrever direitamente todas as dicções, com tantas letras com quantas as pronunciamos, sem pôr consoantes ociosas. Mesmo dado que a dicção seja latina, logo que a derivamos a nós, e ela perder sua pureza, logo devemos escrever ao mesmo modo". (Id., ib.)

Que desjuizo e que capricho nos afastou de tão bom caminho, apontado pelos dois primeiros gramáticos da língua? Explica-o bem Gonçalves Viana, quando diz:

"Estou convencido de que a denominada ortografia etimológica é uma superstição herdada, um erro científico, filho do pedantismo, que, na época da ressurreição dos estudos clássicos, a que se chamou Renascimento, assoberbou os deslumbrados adoradores da antigüidade clássica e das letras romanas e gregas..."

Já Francisco Rodrigues Lobo, o Teócrito Português (1580-1622), queixava-se, no tempo, dos eruditos que levavam o “português de arrastro até o fazer latim ”, escrevendo "septe, docto, escripto, benigno".

Incontestavelmente, foi salutar a reação erudita, com a forte injeção de latim que deu no vernáculo. Recompô-lo em formas mais perfeitas, com melhor satisfação da estética, e enriqueceu-o com um inigualável sincretismo vocabular. Mas, das suas péssimas conseqüências, a pior foi a implantação de uma grafia preciosa e anarquizada.

O tempo de a reformar já passou, de muito. Tentativas têm sido feitas. Aqui se tratará de algumas.

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A reforma SÒNICA - A reforma que tornasse a grafia numa reprodução exata da pronúncia seria a ideal. É a de mais antigas tentativas. É, também, a menos viável, com o alfabeto que temos, e com a nossa variedade prosódica.

Se ao menos tivéssemos dado a Leibnitz o alfabeto que pedia... O consolo é que a falta para com pedidos de outrem é coisa muito antiga e muito costumeira, na humanidade. Quem forneceu a Arquimedes de Siracusa a alavanca com que ele pretendia abalar o mundo?

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T. da C. Portugal, segundo vimos, já se referia a tentativas e experiências fonéticas - até livros escritos - nos fins do século anterior ao dele. Morais, o dicionarista, era partidário da grafia sônica, a que ele chamava de filosófica.

"Quanto à ortografia, declaro altamente e de bom som, que na maior parte a sigo contra o meu parecer, e porque assim o querem. Eu sou pela ortografia filosófica, a qual, fundada na análise dos sons... pede que a cada um se dê um sinal... Deste voto eram João de Barros, o célebre Duclos e o imortal Franklin... cujos nomes aponto para confusão dos que não valem tanto..." (Morais, Dicionário, Prólogo)

Castilho pregou a ortografia sônica, durante algum tempo. Leia-se o trecho seguinte, do foneticista J. Barbosa Leão:

"Em 1853, (atenção na ortografia do autor), o celebrado poeta Castilho andou a ensinar o seu método de leitura, e ao mesmo tempo evanjelizava a ortografia sônica. Indo a Coimbra, teve lugar um notavel saráu literário, e neste, o académico Sebastião Jozé de Carvalho, oje o sr. visconde de Xanceileiros, combateu esa ortografia com o argumento das omonimias. Como viese a falar depois o sr. João de Deus, dise êste que estava inteiramente d'acôrdo: que realmente era inaceitavel semelhante ortografia pelas omonimias, que traria consigo; mas que pela mesma razão era precizo acabar com as omonimias existentes, por meio das competentes distinçõis; e acrecentou com toda a seriedade, que para a palavra barra propunha já um meio muito simples de se alcançar isto, que era : na acèção de barra de metal, escrevel-a com dois rr; na de barra de um leito, escrevel-a com trez; na de barra de um rio, com quatro; na de barra d'um vestido, com cinco... Mas xegando aqui teve de calar-se, porque os acadêmicos e demais assistentes rião a “bandeiras despregadas”. 1880 (Ap. F. T. D. - Gram. hist.)

Foi quando Latino Coelho fez profissão de fé, sônica. Para mais tarde, em 1879, se retratar, no parecer contra o projeto foneticista, da comissão portuense.

Como se vê, o mais notável do sarau coimbrão foi a proposta das barras, feita por João de Deus (1830-1895). O poeta da Cartilha maternal tinha, então, 23 anos só, e era estudante de direito, pois terminou o curso em 1859. "Dez anos frequentou o curso de direito, num desapego absoluto dos seus maiores deveres acadêmicos. Trovador, cantava, guitarrava, desenhava...", diz dele José Agostinho de Campos. Não é hora de o defender e nem é aqui o lugar. Mas os seus versos davam-lhe direito de escrever barra com quantos érres entendesse.

Quanto ao movimento fonetista do Porto, de que eram chefes Barbosa Leão e João Felix Pereira, gorou porque era muito forte e porque subordinava, à pronúncia individual dos líderes, a pronuncia geral. E quem o diz é Cândido. de Figueiredo.

A opinião pública ficou do lado de Latino Coelho, no parecer por ele apresentado, em nome da Real Academia das Ciências.

Só em 1885 se iniciou o verdadeiro movimento simplificador, num plano de reforma arquitetado, de colaboração com Vasconcelos-Abreu, por Aniceto dos Reis Gonçalves Viana (1840-1914), "o mais extraordinário poliglota que ainda fulgurou em Portugal", diz o sr. José de Sá Nunes.

"Digo que ele é o mais extraordinário poliglota, porque, além de saber profunda e magistralmente o idioma pátrio, conhecia cabalmente as demais línguas românicas - o francês, o italiano, o espanhol, o provençal, assim como o inglês, o alemão, o russo e o dinamarquês, o húngaro, o sueco. o árabe, o persa, o malaio, o prácrito, o concôni, o chinês. o japonês, e o latim, e o grego, e o sânscrito..." [Ap. F. T. D., Literaturas estrangeiras]

"Deve fixar-se esta vocação extraordinàriamente acentuada de Gonçalves Viana para o estudo das línguas, porque... demonstra, quando levada a primores que poucos atingiram como o grande filólogo, um apuramento de ouvido excecional e que muito o ajudou nos seus estudos de fonética". (Manuel Múrias, Pref. às Palestras filológicas do mestre)

Redundo em elogios ao egrégio filólogo porque entramos na parte nuclear do assunto. E preciso que fique bem iluminado o valor de competência dos homens que fizeram a simplificação ortográfica portuguesa, verdadeiramente sensata, verdadeiramente científica, verdadeiramente etimológica, verdadeiramente harmonizada com o gênio e a tradição da língua. E o mais acatado deles foi, e o mereceu ser, Gonçalves Viana.

Ele não é um nome qualquer. Como não são nomes quaisquer, na ciência da língua portuguesa, nomes como os de Carolina Micaélis de Vasconcelos, Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos, José Joaquim Nunes, Epifânio Dias, Cândido de Figueiredo, para citar só os vulgarmente conhecidos dos que, mais Gonçalves Viana, fizeram a simplificação portuguesa.

O movimento reformista de 1885 surgiu na plena devoção pelos estudos filológicos, em Portugal. E destacável, na época, a ação de Carolina Micaélis de Vasconcelos, pelo seu extraordinário valor, por ser mulher e por ser estrangeira. (Nasceu em Berlim, em 1851 - Morreu no Porto, em 1925). Criança ainda, aprendeu latim, grego, sânscrito, hebraico. Com 18 anos, já falava bem o português... vivendo na Alemanha, é claro. Indo àquele país, em 1876, o historiador português Joaquim de Vasconcelos, com ele casou a jovem poliglota. E veio para Portugal, que ficou sendo sua pátria e por cuja língua trabalhou infatigavelmente, até 1925.

Foi quem animou o fervor filológico, em que já apareciam os esforços de Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos e outros. Favorecia-a a erudição, a seriedade dos métodos, o espírito minucioso da investigação, que aprendera e trouxera da pátria. Leite de Vasconcelos enumera-lhe mais de 170 publicações. Só o Cancioneiro da Ajuda lhe custou 27 anos de esforços.

Não podia deixar de ser bem feita, uma simplificação moldada na forja em que trabalhavam tais e tamanhas competências. Só a nossa mais ou menos geral ignorância do assunto, encouraçada na instintiva lusofobia que comumente nos achaca, pode explicar a repulsa ainda entre nós sofrida por um sistema ortográfico que é o único, em suas linhas mestras, admissível e viável, para as necessidades de nosso caos escritural.

Não é novidade o que digo. Mas quem fala novidade? Lá rezava o Terêncio: "Nullum est jam dictum quod non dictum sit prius" - Nada foi dito, ainda, que já não tenha sido dito antes.

E trago Terêncio para não incomodar o Salomão.

 

 


A REFORMA DA ACADEMIA BRASILEIRA, EM 1927 

Em abril de 1907, pelo sr. Medeiros e Albuquerque, foi apresentado à Academia Brasileira de Letras, um projeto de reforma ortográfica. Fundamentava-se numa série de considerandos. Nada menos do que 39. Faltou um para que fossem 40 e para que a série se fizesse cabalística, perfazendo o número de nossos imortais, pois eles são 40, a conta da Academia Francesa, padrão e modelo da nossa.

Creio que foi mesmo a falta de mais um considerando que fracassou o projeto do sr. Medeiros e Albuquerque. Quem já desprovou a força secreta dos números?

Após as fundamentações, aquele acadêmico propunha, em resumo:

1. supressão do y, do w, do h mediano e do k;
2. desterro para o ph, o ch gregos e corte do x em todo comissionamento ou posto que não fosse do tipo xarque;
3. simplificação das geminações, exceto rr e ss;
4. faxina de toda consoante nula;
5. empossamento do z nas atividades sônicas, dele antes exercidas pelo s;
6. colocação do j no lugar do g (antes de e e i), em que o som é daquele;
7. utilização de az, ez, iz, oz, uz, nos finais de palavras agudas, exceto os pronomes pessoais e o plural de palavras agudas em á, é, í, ó e ú;

Com muitas e tépidas discussões da matéria, a Academia Brasileira apresentou, como resolução do problema, um dodecálogo ortográfico, de que vai, seguinte, uma resenha.

Regra 1.
- Manda escrever máu, chapéu, partiu, etc. (ditongos au, eu, iu).
- Escrever, nos hiatos, io: fio, rio, tio, etc.
- Escrever com i o ditongo ai: pai, mãi, sai, etc.
- Escrever idade, igreja, igual.

Regra 2.
- Abolir o k, o y, e o w: quépi, quilo, vórmio, uigândias, martírio...

Regra 3.
- Cortar o h médio: surpreender, tesoura; porém, deshonra, rehaver, etc.
- Substituir os grupos gregos: química, corografia, filosofia, teorema...

Regra 4.
- Dar ao j o lugar do g, no valor palatal: ajir, lejislativo, rejelar; porém, gente, gelo, peito, etc.

Regra 5.
- Dar ao z todo lugar em que o som for dele: caza, roza, Jozé.

Regra 6.
- Simplificar as geminações: sábado, aduzir, inocente; exceto em elle, ella, aquelle, aquella.

Regra 7.
- Não utilizar consoantes mortas: ativo, aluno, crecer, ciencia.

Regra 8.
- Não gastar ç em comêço de palavras: sapato, samarra, etc.

Regra 10.
- Escrever com z as finais tónicas az, ez, iz, oz, uz: atraz, portuguez, giz, coz, obuz, etc.

Regra 11.
- Escrever ão e ã, quando forem tônicos: pagão, manhã; am e an, quando forem átonos: amam, orfam, orfan, etc.

Regra 12.
- Desempregar o apóstrofo: dêste, naquele, destoutro, etc.

A reforma de 1907 motivou discussões em que participaram, dentro no recinto da Academia e na imprensa, os acadêmicos João Ribeiro, José Veríssimo, Salvador de Mendonça, Medeiros e Albuquerque, Carlos de Laet, etc.

José Veríssimo propôs, em emenda, que se conservasse o y dos nomes indígenas.

Laet, o incorrigível, chasqueou-o, dizendo: - Porque y em Catumby, se física o perdeu? É emenda do Veríssimo. Lá por ser ele, entretanto, caboclo, não admito que nos imponha o y de seus maiores...

Muito discutiu, igualmente, o assunto, o Cândido de Figueiredo, em artigos que mais tarde publicou no volume Ortografia no Brasil.

O que mais desagradou, na tentativa da Academia, foi a substituição do g pelo j e do s pelo z, nos valores já referidos.

"A Academia Brasileira, tomando por base o foneticismo exclusivo, procura a uniformidade gráfica, rompendo de um modo revolucionário com hábitos tradicionais e deturpando, destarte largamente, as formas vocabulares..." (Ed. Carlos Pereira (1855-1923) - Gram. hist.)

 

 


A REFORMA DE 1911 

O excesso de anarquia e desencontros, na grafia de Portugal, provocou do governo provisório daquela república, em 1911, um decreto em que nomeava, para fixar as bases de uma ortografia a adotar-se, uma comissão composta de Carolina Micaélis de Vasconcelos. Gonçalves Viana, Cândido de Figueiredo, Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos, nomes a que foram agregados os de Gonçalves Guimarães, Ribeiro de Vasconcelos, Epifânio Dias, Júlio Moreira, José Joaquim Nunes e Manuel Grainha. Foram os autores da simplificação ortográfica de 1911. São os melhores e maiores nomes da filologia e gramática da língua portuguesa.

Não vou discutir a reforma. Nem expô-la. Apenas lhe reproduzirei os dez mandamentos feitos por Cândido de Figueiredo

1. Não se duplicam consoantes. Portanto, beleza, aprovar, imediato, abade, Melo, Matos. Mota...

2. Simplificam-se e substituem-se os grupos ph, th, rh, ch (com valor de k). Portanto, filo sofia, teatro, reumatismo, quiméra, química, corografia.

3. Não se emprega y,nem k, nem w. Por tanto, lira, martírio, Calendário, Venceslau... Exceptuam-se só os vocábulos derivados de nomes próprios estrangeiros, como byroniano, kantismo, wiclefitas...

4. Dentro dos vocábulos não se escreve h. Portanto, inerente, inibir, inábil, compreender, inumano...

5. Os ditongos orais ae, ao, eo, oe, substituem-se por ai, au, eu, oi - Portanto, pai, pais, jornais, marau, chapéu, herói, anzóis...

6. Evitam-se consoantes inúteis. - Portanto, escritura, escritor, distrito, salmo, luta...

Exceptuam-se os casos em que a consoante, embora se não pronuncie, tem a utilidade de significar que é aberta a vogal que a precede, como em exceptuar, rectidão, redacção, direcção, actor, etc., e nos vocábulos das mesmas famílias: - excepto, recto, redactor, directo, actuar...

7. O pronome pessoal enclitico lo liga-se ao verbo por um traço. Portanto, tu faze-lo e eu não posso fazê-lo; louvá-lo; ouvimo-lo...

8. O emprêgo do s e do z é regulado pela etimologia e pelas tradições da língua. Portanto. português, francês, cortês, freguês, defesa, empresa; e, ao mesmo tempo, natureza, beleza, civilizar, realizar, organizar, vez, talvez... Em caso de dúvida, há ainda o recurso dos bons dicionários e vocabulários, organizados depois que é conhecida entre nós a ciência da linguagem, isto é, nos últimos vinte ou trinta anos.

9. Escreve-se igreja, idade, igual.

10. Acentuam-se gràficamente todos os vocábulos esdrúxulos. Portanto, pálido, túmulo, crisântemo, lêvedo, hipódromo, velódromo, diário, África... Acentuam-se os homógrafos, não homo fônicos, pois há séde e sêde, govérno e govêrno, dúvida e duvída, etc. O acento grave pertence às vogais abertas, não tónicas. Portanto, còrado, prè gador, pègada... E também se pode empregar para desfazer ditongo, como em proìbir, miùdamente; e para mostrar que o u se pronuncia depois de g ou q, como em agùentar, fregùente... (quando venha representar a pronúncia, especialmente em ensino primário).

Estes dez mandamentos se cifram em dois: não perder de vista os casos aqui consignados, e. quanto aos mais, continuar a escrever como escreviam os mestres.

 

 


O ACORDO DE 1931 

Como pode ver-se, é sensata, é inteligente, esta reforma que respeitou a etimologia, a história evolucional das palavras, enquanto procurou atender à fonética, desembaraçando-se das inutilidades mortas e dos enganos abusivos, filhos da confusão, da ignorância ou da falsa interpretação etimológica.

Dois ou tres reparos tornariam completamende útil e hábil, para nós, este sistema etimológico-histórico-fonético. Sistema bem mais seriamente etimológico do que esse que por aí anda, desorganizando e adoudando a escritura brasileira, com o nome de usual ou mixto e a pecha de disparatado ou insensato.

O que devia ter feito a Academia Brasileira, desde cedo, era adotar aquele como o fizeram pessoas entendidas e ajuizadas, quais foram e são Mário Barreto, Antenor Nascentes, José Oiticica e tantos outros. Em vez de acordo, adesão. Adesão inteligente ao sistema simplificado de 1911, com as leves adaptações necessárias. Acordo supõe transigências de parte e de outra.

A Academia das Ciências tem sua culpa em ter aceito negociações em torno de uma ortografia que, em 1911, não foi codificada por ela nem implantada por ela, mas por uma comissão estranha a ela, bem como pelo prestígio de tal comissão e pelas medidas inteligentes tomadas prudentemente pelo governo português. Para nós, que tínhamos ou temos o hábito de escrever pela velha grafia, o esforço inicial é grande e é um esforço completo. Mas não nos esqueçamos de que ele se faz no sentido de quem vai de um mau para um bom caminho. É, pois, uma obrigação racional.

Mas os portugueses, que já se ajeitaram tão bem com a simplificação de 1911, porque os deslocar agora, num ou noutro ponto ortográfico, em que as exigências da Academia Brasileira querem alterações para pior?

Se a Academia Brasileira, numa cortesia internacional, comunicasse a sua congênere portuguesa, que havia adaptado e adotado a grafia de 1911, a coisa estava bem feita, sem compromissos nem dependências recíprocas.

Não ficava esta ponta, esta sobra, esta fonte de discórdia e caturrice, que nós vimos escorrer sobre o acordo, contra o acordo, pela imprensa e pelo livro, aqui e em Portugal.

Imagine-se agora àqueles filhos de ultramar, tão satisfeitos com sua mãi (deles), seus firmamentos azuis, sua acção e suas excepções, sua sciencia e suas declarações amar-te hei, tudo que para eles constitui já um hábito, obrigados a um desumano acôrdo em que se passa a escrever: mãe, azues, constitue, ação, exceção, ciência, deshumano, amar-te-ei, etc.!

Ou, o que é pior ainda, e insuportavel até para nós, escrever indistintamente todo nome próprio em az, ez, etc., com z final: ASSIZ, MOISEZ, MERCEZ (ao lado do substantivo comum mercês), Inglez... de Sousa, por exemplo (ao lado de inglês... “marinheiro frio”), Luiz (ao lado de luís, moeda, e de Luisa, feminino de Luiz), Tomaz (ao lado de Tomásia) ...

Ou, ainda: Davi, Jó, Jacó, etc.. em vez dos milenares, proféticos e patriarcais David, Job, Jacob.

Com o acordo, não se pode ter contentado aos portugueses e provocou-se a ranzinzice nacionalista ou, melhor, lusófoba, dos Medeiros e A1buquerques, Agripinos Griécos, etc. Quem percorra o interessante livro do sr. Mota Assunção - Origens e ortografia da língua brasileira - verá informações a respeito da campanha que se desenvolveu em torno e contra o acôrdo academia Brasileira - Academia das Ciências. Clamou-se reforçadamente pela "defesa do idioma falado no Brasil", como se a adoção de uma ortografia, que tanto pudera ter sido simplificada aqui como em Lisboa, viesse desnaturar ou prejudicar a língua brasileira!

Isso de chamar a palco o sentimento nacionalista, para o envolver numa má defesa ou num ataque de intenções escuras, e cousa que fica abaixo de certos nomes, que estiveram envolvidos na questão. E isso de "idioma falado no Brasil" para capear tudo, mereceu de Rui o seguinte juizo, na Réplica:

"Respeito ao idioma, saiu escrita (a Resposta) no que ele mesmo desvanecidamente chama "o dialeto brasileiro", surrão amplo, onde cabem à larga, desde que o inventaram para sossego dos que não sabem a sua língua, todas as escórias da preguiça, da ignorância e do mau gosto, rótulo americano daquilo que o grande escritor lusitano tratara por um nome angolês. Lá encontrará o ouvido vernáculo todos os estigmas dessa degeneração, em estado coliquativo, do idioma em que escreveram no Brasil Gonçalves Dias, Francisco Lisboa e Machado de Assis."

Eu também me convenço de que nosso idioma não é absolutamente o mesmo que se fala para além do Atlântico. Não é, porém, de maneira nenhuma, pela ortografia, que sai a diferença. É na pronúncia, é na sintaxe, é na preferência vocabular, que se encontra a diversidade da língua brasileira e da língua portuguesa.

O sr. Mario de Andrade pode escrever integralmente pelo Vocabulário ortográfico e remissivo de Gonçalves Viana, sem perder nem nada do tom gostosamente brasileiro de seu estilo, de sua linguagem.

Enfim, o acordo, bem ou mal, está feito. Salve-se, pelo melhor, a simplificação de que tanto precisamos.

 

 

 

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