O pretendente que ora vai expor sua discreta lição viveu momentos de ansiedade seletiva, entre os molti personaggi in cerca d'autore que lhe andaram em torno, sussurrando promessas ao ouvido.
Olhando o calendário, ele viu o tempo volteando as horas com uma pressa intolerável a quem tem prazo curto e dias racionadíssimos pela obrigação trivial.
Pensando no instrumental de pesquisa, ele corou da ousadia que é meter-se alguém na empresa de uma tese sobre direito romano, tão somente apoiado em alguns manuais, embora sabendo que, na especialidade, a caudal bibliográfica é amazônica, talvez oceânica, fluindo de um manancial extraordinário em freqüência e teor, nestes últimos cem anos.
Meditando na miséria nacional dos meios que
pode achar um curioso da antigüidade clássica e sopesando
a modéstia do disponível pessoal, ele esteve a imaginar
a situação de um advogado de província, nos
primeiros dias do sexto século, antes da compilação
justiniana, apenas munido de alguns códices desparelhados,
mas tendo notícia das centenas, dos milhares de leis e comentários,
em que andaria disperso o direito de que cuidava.
Acabou escolhendo um tema difícil, com pressuposto de visadas abrangentes, claro exame panorâmico, força de síntese. Ora, os romanos jamais sintetizaram nem o sabiam fazer. Iam construindo o seu direito por justaposição, acumulando os casos, em obra de pedra insossa ou de pedra em sosso, como dizia enganadamente o nosso bom Luís de Sousa. Não conheciam argamassa jurídica, eles os notabilíssimos canteiros de vias, pontes e aquedutos.
Dir-se-á que a romanística de hoje supriu a falha. Ainda não. Ela vive entregue à pesquisa especializada. É recente e abundante, mas tomara lhe sobrar tempo com que reajustar o vasto corpo do direito justiniano às verdadeiras medidas da fazenda original, que os alfaiates do grande codificador, mui à vontade, recortaram. Tomara tempo só para os emblemas tribonianos.
Entretanto, mesmo difícil, nosso tema adquiriu
limite conveniente ao contraste, devido à referência
estabelecida, com a estipulação em Gaio, cujo lugar
buscamos entremostrar, na jurisprudência clássica,
lugar dele e daquelas Instituições cheias da estima
e preço que lhes granjeou a condição de salvado,
no grande naufrágio do milênio jurídico.
Nossa lição pretende a que o direito
quirício é formalista e ritual, por uma determinação
histórica, fundada na psicologia do grupo, e por determinação
contingente, a da oralidade jurídica, e tomou, para referência
especial, a estipulação de Gaio.
Agora, já que temos alegadas nossas alegações,
peçamos, in iure, ao pretor, uma fórmula
nova para o momento apud iudicem: Aequitas iudex
esto. si paret auctorem probabiliter de ea re disseruisse absolvito.
Si non paret condemnato.
1. O tempo em que floresceu Gaio
foi o terceiro quartel do século dois post Christum.
Suas Instituições
estão localisadas por volta do ano 161 e os romanistas verificaram
que ainda escrevia depois de 178. Teria nascido no reinado de Úlpio
Nerva Trajano, 98/117, ou no de Tito Élio Adriano, 117/138,
escrevendo sob Tito Élio Adriano Antonino Pio e Marco Aurélio
Antonino, portanto entre 138 e 180. É uma época de
imperadores sábios e humanos, tonalizada de esplendor jurídico.
A linha temporal permite situar Gaio entre Celso
e Juliano, de um lado, e Papiniano, do outro. Públio Juvêncio
CELSO Tito Aufídio Oeno Severiano é o nome todo de
um, balanceado pelo nome todo do outro Lúcio Otávio
Cornélio Sálvio JULIANO Emiliano. Ambos floresceram
na primeira metade do século. Juliano é corifeu sabiniano.
Celso, proculiano, é Celso filho, com um pai que também
foi mestre da mesma escola. No parecer de alguns, foram os dois
maiores juristas que deu cada seita. Em tamanho de nome, sem dúvida,
foram grandes. Estamos longe da simplicidade primitiva; contente
com três vocábulos prenome nome e cognome: Quinto
Múcio Cévola ou Sérvio Sulpício Rufo.
O jurista que floresceu depois de Gaio, Emílio
Papiniano, está em fim e passagem de século, mandado à morte
por Caracala, em 212, por não haver querido justificar o
fratricídio que vitimou Geta, sombra temida pelo gladiatório
imperador que dormia com leões. Este Papiniano deveu mais
ao caráter e valentia moral, o que é muito bem devido,
o prestígio que desfrutou na devoção jurídica.
Em companhia de Júlio Paulo e de Domício Ulpiano,
ilumina ele o tempo dos Severos.
Ia arrefecendo o calor proselitista. Cessara a refrega
escolar entre sabinianos e proculianos. Crescia a orientalização,
crescia o contraste da expansão cristã, e Diocleciano
entrou pela porta formal de um absolutismo que existia de fato,
pondo selo à morte da chamada diarquia do Principado.
Fenece o esplendor jurídico. Papiniano, Paulo
e Ulpiano, são os últimos clássicos.
Após dois séculos de vigor, três
séculos de hibernia, de fermentação e deliquescência,
até que se compilasse a codificação embalsamadora
e gloriosa de Justiniano.
2. Gaio é o último dos sabinianos.
E um retardatário. Fala, a cada passo, em seus praeceptores e
nos diversae scholae auctores, justamente num tempo em
que Roma já não ouvia ecos de rebates e posições,
entre os comandados de Masúrio Sabino e os de Semprônio
Próculo. A dicotomia sabínio-proculiana fora mais
de verbalismo que de doutrina. Produzira uma divergência
pormenorista, insubstancial, e colorida numa fluida subtileza inútil.
Dizia, por exemplo, o sabiniano, que uma besta de
carga era res mancipi, coisa de mancípio, desde
o nascimento. Respondia o proculiano que só o era depois
de amansada. Afirmava o sabiniano que a propriedade da coisa abandonada
cessava no ato do abandono, re derelicta. O proculiano
era de parecer que isto só acontecia na ocupação
da coisa por alguém.
Doutrinava o sabiniano que a dação
em pagamento, datio in solutum, extinguia a obrigação ipso
iure, por direito. Achava o proculiano que a eficácia
extintiva era por força de exceção, ope
exceptionis.
As duas escolas não passaram de um partidarismo
grupal, alimentado em simpatias pessoais, segundo o proselitismo
das stationes, das estações ou pontos, desde
os quais se ensinava publicamente o direito ou se dava consulta
jurídica.
A divergência é historicamente assinalada como tendo avultado nos tempos de Labeão e Capitão, sob o regime de Augusto. São dois jurisconsultos igualmente famosos. Mas, se Caio Ateio Capitão é fundador da escola, o nome quem lhe deu foi Sabino. Se Marcos Antístio Labeão cria a outra, o batismo lhe veio de Próculo.
Marcos Antístio era filho de Labeão,
também jurisconsulto, partidário de Pompeu e de Bruto.
Em 42 a. C., após a derrota de Filipos, o pai Labeão
cavou na tenda uma cova e suicidou-se. O filho Labeão, fiel à severidade
paterna, recusou o consulado que Augusto lhe oferecera. Vivia seis
meses no campo, escrevendo, e seis meses na cidade, ensinando.
Nascido em 50 a. C., morreu no ano dez post Christum,
legando à jurisprudência uma obra de quatrocentos
livros, que o tempo consumiu.
Horácio fez ao nome uma referência
pejorativa: Labeone insanior inter sanos dicatur (Sátiras.
I.3.82). Os comentadores do poeta endereçam o golpe ao filho.
Mas acontece que a sátira é do ano 36, quando Marcos
tinha 14 anos. Cabe melhor ao pai, o que se matara, derrotado,
na mesma batalha em que Horácio também partidário
de Bruto e seu tribuno militar fugiu com muito pouca cerimônia,
largando o escudo, confessa ele, desairosamente: et celerem
fugam sensi, relicta non pene parmula. (Odes,
II.7).
Ateio Capitão era mais flexível, politicamente,
do que seu rival. Aceitou honrarias e o lugar de cônsul que
o outro recusara. Morreu no ano 22 post Christum.
O epônimo da escola, porém, foi Masúrio
Sabino, que não ocupou altos cargos mas teve o ius respondendi,
em tempos de Tibério.
Este ius respondendi fora instituído
por Augusto, com aquela prudência digna de elogio, que também
manifestou em outras sabedorias de seu governo, e consistia num
poder, avalizado pelo imperador, de opinar em matéria jurídica.
O legisperito emitia um parecer cuja sentença ia respaldada
na autoridade do príncipe, ex auctoritate principis.
Masúrio Sabino deixou três livros sobre o direito civil, que vogaram bem, tempo em fora, como provam os comentários ad Sabinum de Pompônio, Ulpiano e Paulo.
De que Próculo tenha sido influente é sinal o fato de a escola de Labeão chamar-se proculiana.
Ao longo de quase dois séculos, a historiografia registrou alguns nomes nos dois quadros. E, mais do que nomes, coisa pouca. São sabinianos Masúrio Sabino, Caio Cássio Longino, Célio Sabino, Javoleno Prisco, Sálvio Juliano. Em matéria de apelidação, Javoleno quer paridade com Juliano e Celso, pois seu nome todo é Caio Otávio Tídio Tossiano Javoleno Prisco. São proculianos Coceio Nerva, chamado Nerva pai, seguido de Nerva filho e mais: Próculo, Pégaso, Juvêncio Celso pai, Juvêncio Celso filho, Nerácio Prisco.
E outros de uma e outra parte.
3. O ius respondendi destes
consultores jurídicos do Estado, figuras do consistório, havia
corado de vivo matiz o prestígio da jurisprudência.
Era um prestígio que jamais lhe faltara, desde os tempos
da sacralidade pontifícia, quando o direito andava recolhido
aos penetrais, na frase de Lívio reconditum in penetralibus
pontificum (9.46.5).
Então, quem tinha uma dúvida ou um caso, buscava um sacerdote que lhe explicasse como proceder. Cícero ainda afirmou que nenhum pontífice pode ser bom, que desconhece o direito civil: pontificem bonum neminem esse nisi qui ius civile cognoscit.
Por volta de 300 a. C., um escriba de Ápio
Cláudio Cego, Cneio Flávio por nome, divulgou audazmente
o técnico segredo, publicando um liber actionum coleção
de fórmulas, espécie de O secretário do advogado.
Era o princípio da idade leiga. Cinqüenta anos mais
tarde, abria escola jurídica e respondia em público
nada menos do que um sumo pontífice. Seu nome, Tibério
Coruncânio, foi conservado em glória porque assim
fez e também porque identifica o primeiro homem de linhagem
plebéia a conseguir as honras do supremo pontificado. Pontífices, áugures,
cônsules, censores, todo o patriciado
se enobrece com o oficio de consultor jurídico do povo,
acautelando, opinando, patrocinando, pois é um ofício
de cavere, respondere, agere.
O prudente, com tão conceituoso apelido, é um
técnico e previne aparte com os segredinhos da misteriosa
dieta, para que faça bem seu negócio: cavere;
ilumina com um parecer abalisado a matéria de alguma lide: respondere;
defende a lide perante o juiz, faz o advocatus, o patronus,
o orator: agere.
A função é gratuita e prestigiosa.
Rodeia o jurisconsulto aquela fama e aura em que o povo ateniense
envolvia um artista. Ele é o príncipe da cidade,
o princeps civitatis, na expressão de Cícero.
Mui cedo, na manhã, àquela hora tão romana
da salutatio, a fila de sua porta metrifica a extensão
de sua glória profissional. Como em todo grupo humano, para
alguns juristas de vocação, existem muitos por conveniência,
profissionais da jurisprudência veicular, caminho e semeadura
das ambições eleitorais. É uma porta feliz,
que leva com mais facilidade ao comício, entre um povo que
tem a devoção da palavra, ama o orator e
fez da oralidade o rito de seu direito. Entra por ela, mui cedo,
o homem representativo, sem alusão a Émerson - aquele
homem síntese, que emerge do grupo sob as aparências
de condensador de sonhos, de receptor de anseios populares. O ofício
de jurista rende-lhe aquela extenuante glória da cortesia
plebéia, que ele afina e aquece na mesura risonha, no cumprimento
expressivo, na palavra automática.
Mas não nos desviemos. O saldo nobilitante vale bem o esquecimento de manobras das intenções pessoais e de manejos do patriciado, cioso dos privilégios.
O conceito da gratuidade venceu o tempo e chegou
até a codificação. A sabedoria civil é uma
santíssima coisa que ninguém há de desonrar
e estimar por preço numário, diz Ulpiano: Est
quidem res sanctissima civilis sapientia, quae pretio nummario
non sit aestimanda nec deshonestanda. D. 50.13.1.5.
4. O Principado alterou notavelmente a dieta jurídica,
desaparecendo a lei comicial e o direito pretório. Na diarquia
aparente estabelecida por Augusto, as fontes da lei estão
no senatus-consulto também amável à proposta
imperial de epístola ou de oração - e nas
constituições do príncipe edito, rescrito,
decreto, mandado.
Desenvolveu-se a cognição extraordinária:
em lugar da escolha arbitral republicana, um juiz imposto, iudex
datus, elemento da magistratura oficial.
A genialidade romana e a força tradicionalista
salvaram o direito, asilado na jurisprudência, entre a frieza
clínica da vontade popular inanimada e a prepotência
volitiva do soberano.
A substância do arbítrio, no príncipe, vai ganhando as aparências da orientalização, desarmando-se, na marcha, a estrutura vazia de certas formas ainda romanas. Percebe-se o progresso da aceitação, através do exame semântico de duas traduções jurídicas do princípio da legitimidade uma em Gaio, outra no Digesto.
A respeito da vontade do príncipe, Gaio escreveu nunca ter havido dúvida de que ela "faz as vezes da lei" nec umquam dubitatum est quin id legis vicem optineat.
Note-se que estamos sendo infiéis, pois não
disse isto da vontade, propriamente, mas da constitutio principis,
isto é, do que ele, querendo legislar, possuído de
consciência governativa, exara em decreto, edito ou epístola.
Vejamos agora o que está no Digesto 1.4.1: Quod
principi placuit legis habet vigorem. O que agrada ao príncipe
tem força de lei.
Talvez não seja grande o valor testimonial
das duas expressões: o autor da segunda é um contemporâneo
de Gaio, pois é Ulpiano. Mas a verdade é que ela parece
mais harmonizada com seu clima, estando no Digesto. Aliás,
o slogan sobre a vontade do príncipe, historicamente recursivo, é mais
velho e mais novo do que o tempo de Gaio. Nas horas marasmadas de
passiva modorra comum, adormecida a consciência coletiva, a
forma ditatorial sempre encontra legitimistas que lhe componham toga
e lhe harmonizem vozes, a jeito de melodia jurídica.
Preservou-se o direito graças à fidelidade zelosa de seus guardas, cujas respostas públicas, em substância, iam pesar nas sentenças dos magistrados. Elas foram arroladas por Gaio entre as fontes do direito: sententiae et opiniones eorum quibus permissum est Iura condere.
A medida adotada por Augusto valeu mesmo entre seus piores sucessores, ainda que exilassem e assim fez Nero a Cássio Longino ou enchessem a alma de tristeza e morte, como fez Tibério a Nerva pai, que se tomou de angústia e nojo por tantas baixezas e se deixou morrer de pura fome, apesar de sua boa integridade física, integro statu, corpore illaeso (Tácito. Annales. 6.26); ainda que matassem, como fez Caracala a Papiniano, que não lhe quis aprovar o fratricídio.
A jurisprudência republicana desenvolvera uma
arte inteiramente vernácula, em que luziu mui cedo a prosa
latina, cuja segurança primeiro se mostra nas letras jurídicas
do que nas literárias. O exemplo está nos fragmentos
das Doze Tábuas, cujo travejamento revela, desde então,
a linha vigorosa e parca do idioma, numa sintaxe que já era
a sintaxe da língua.
O catálogo desta jurisprudência pode
abrir-se entre os duzentos anos anteriores a Cristo, a partir de
Sexto Élio Peto, cognominado o Agudo que isto quer dizer
Catus Sextus Aelius Paetus Catus. Seguem-se, no mesmo
século, Marco Pórcio Catão, Marco Júnio
Bruto, Mânio Manílio e Públio Múcio Cévola,
o primeiro citado na dinastia juridica dos Cévolas.
Ao longo dos cem anos anteriores a Cristo, a lista continua assinalando nomes principais: Quinto Múcio Cévola, o Áugur, Quinto Múcio Cévola, o Pontífice, Caio Aquílio Galo, Sérvio Sulpício Rufo, Públio Aufídio Namusa, Públio Alfeno Varo.
Durante os séculos de Cristo primeiro, segundo
e terceiro, a resenha é de aspecto mais familiar: Labeão,
Capitão, Sabino, Cássio, Próculo, os Nervas,
Pláucio, Urseio Feroz, Javoleno, Pédio, Nerácio
(l.° século); Celso, Juliano, Pompônio, Albúrnio
Valente, Terêncio Clemente, Cecílio Africano, Venuleio,
Gaio, Meciano, Marcelo, Florentino, Cervídio Cévola
(2.° século); Papiniano, Trifonino, Paulo, Ulpiano, Marciano,
Magro, Modestino (3.º século).
5. Seus nomes refulgem nas páginas da historiografia jurídica e na glória que lhes valeu a transfusão ocidental do direito romano.
A atividade do primeiro século a.C., viva, baseadora, foi modelando o direito. Tem posição segunda, porque a primeira posição é da assembléia legislativa popular e da magistratura republicana, com sua força criadora.
O trabalho dos dois séculos posteriores, preservando aquela substância longa e sabiamente condensada, melhor a foi iluminando, analisando-lhe o formalismo, penetrando-lhe a intimidade, numa teimosia de unir, de coordenar, de sistemar até onde o consentia o pendor nativo que em tudo merece da posteridade. São consultas, comentários ao edito, comentários ao direito civil; são digestos, monografias, enquirídios chamados instituições. Com paciência e devoção armazenam largamente a matéria prima do monumento Justiniano.
Os escribas legistas de 530 tiveram de menear dois
mil livros, com mais de três milhões de linhas (versus / stikhoi).
A codificação estava a seiscentos anos do início
da idade clássica. Pode-se fazer uma idéia do que fora
a fecundidade geral, fazendo entrar na conta a notícia de
que estava quase completamente perdida, no tempo de Triboniano, a
obra dos dois primeiros, no grupo dos seis séculos.
Louva-se àqueles juristas a linguagem pura
e concisa, a unidade léxica, a especialidade terminológica
- índices de madureza e domínio. Também se admira
neles, em mérito não pequeno, o sentimento conservador,
a honesta motivação interior de quem traçava
a destinação da justiça, com os olhos na constância
patrimonial de um passado que eles iam transmitindo ao futuro.
Casuísticos, miúdos, inabstrativos, não conheciam o vezo da generalização, que leva ao canonicismo em si, pelo gosto das construções filosóficas. Fugiam da originalidade ou não podiam buscá-la. Repetiam-se, equivaliam-se. Por isto, Savigny gaiamente os chamou de "quantidades fungíveis".
O dualismo escolar que os dividiu não passou
de rivalidade esportiva ou acadêmica. Os buscadores de razões
em vão buscaram, quando lhes tentaram caracterizar os dois
bandos, imaginando encontros como de idealistas e naturalistas, analogistas
e anomalistas, peripatéticos e estóicos.
6. O nome de GAIO, em meio aos outros, é uma
incógnita. É o tipo do ilustre desconhecido, com mais
presença e fama do que seus contemporâneos e do que
os juristas anteriores. É apenas GAIUS, num tempo em que alguém
se chamava CAIUS OCTAVIUS TIDIUS TOSSIANUS IAVOLENUS PRISCUS ou LUCIUS
OCTAVIUS CORNELIUS SALVIUS IAVOLENUS AEMILIANUS.
Floresceu no tempo suave dos Antoninos. Os romanistas fazem hipóteses como podem, no esforço de configurar alguém sob as quatro letras de tão rápido apelido: Gaio.
Acham que deve ter nascido e vivido em alguma província
helenística, não em Roma. Não teve ius respondendi. É absolutamente
ignorado aos juristas seus contemporâneos. Revela grecismos
lingüísticos, freqüentes referências a coisas
provinciais. Seu nome, simples prenome, foi talvez adotado ao receber
cidadania.
Outro argumento em favor da
hipótese é sua fé sabiniana, reiterada e forte,
num sectarismo fora de moda, quando já não existiam
as duas facções. Só mesmo
quem vivesse longe de Roma.
Depois que o provincianizam, os romanistas
então o fazem pacato, claro, elementar, didático, devotamente empenhado na ciência, anacronicamente excitado por ecos de uma batalha que, longe, em Roma, de há muito
havia cessado.
Arangio-Ruiz vê dois estilos nas Instituições: um que é limpo, seu tanto antiquado, cheirando a começos da escola sabiniana; outro, que é descuidado e escuro.
Além disto, a obra denuncia o valor de pessoa muito experta em direito civil, muito informada de seus problemas, ao passo que as outras coisas de Gaio reproduzidas no Digesto são de valia nenhuma, se não são repetições das Institutas.
Com argumentos tais, o professor de Nápoles imagina o Gaio da era antonina como um desconhecido provinciano, que houvesse adotado e adaptado alguma obra elementar de GAIO Cássio Longino, publicando-a sob a responsabilidade de um simples prenome, conservado depois na edição de outras obras. Restaria descobrir se Cássio Longino alguma vez escreveu instituições.
Essa hipótese foi ventilada por Longinescu e por Huvelin.
As Instituições mostram breveza, esbeltez e elegância, que alguns acham de muita força para um só homem provinciano, da idade antonina. E acusam, por outro lado, sinais de sobremão, para além dos glossemas posclássicos.
Palavras, palavras! Ficaram perdidos aqueles séculos preciosos, em vasto e lento naufrágio de toda a sua messe abundante. A única obra inteira e quase íntegra, chegada até nós em forma quanto possível original, são estas GAI INSTITUTIONES. O mais é trigo da codificação que a prudência granjeou, desde campos dispersíssimos, após quase três séculos de hibernia. O Corpus i uris é uma vasta carga de salvados. Contém o que nos resta da idade de ouro, arca de seu pensamento jurídico. O Direito ocidental deve tudo à grande colheita, embora marcada, na sua massa, com o sinal da fábrica, o emblema triboniano, atingindo aquelas coisas muitas e máximas que por utilidade foram transformadas. Multa et maxima sunt quae propter utilitatem rerum transformata sunt. (Justiniano. Tanta, §10).
Fácil e claro, não admira que o livro de Gaio tenha rompido séculos, carregando para o alto o nome do autor. O homem, desconhecido pelos profissionais de seu tempo, em 426 terá a glória de ser incluído naquele tribunal de mortos que Teodósio criou, na Lei das Citas: Gaio, Papiniano, Ulpiano, Paulo e Modestino. Em 506, Alarico II, para a Hispania e a Aquitania, decretava a lei romana dos visigodos, Breviarium Alaricianum, em que se acha um resumo de Gaio, em companhia de sentenças de Paulo e respostas de Papiniano. Em 533, seu livro servirá de base ao que Justiniano fez editar com o mesmo nome. Não exatamente o mesmo, pois um se chama Gai Institutiones e o outro Domini nostri Iustiniani perpetuo Augusti Institutionum sive Elementorum compositorum per Tribonianum virum excelsum magistrum et ex Quaestore Sacri Palatii iurisque doctissimum et Theophilum virum magnificum iuris peritum et antecessorem huius almae urbis et Dorotheum virum magnificum quaestorium iuris peritum et antecessorem berytensium inclitae civitatis.
Depois da codificação, feitas outras
Instituições, as de Gaio desapareceram. Andavam tão
sem prestígio, em companhia das mais letras pagãs,
que um dia, no século nono, querendo um frade transcrever
umas epístolas de São Jerônimo, cujo fervor aquentasse
a quietude claustral de seu convento, tomou um texto de Gaio, que
raspou, e escreveu no lugar as cartas do eremita. De um códice
pagão fez um palimpsesto. E o códice rescrito viveu
um milênio, com São Jerônimo escondendo Gaio,
até que o descobriu Bartoldo Jorge Niebuhr, em 1816, na livraria
capitular de Verona. Por todo o tempo, através do Renascimento,
o que se conhecia da obra eram excertos e sínteses, como no
Breviário Alarício. Tratado quimicamente, o palimpsesto
de Verona revelou as Instituições ao século
dezenove, com um grande e satisfeito alarme de Savigny. Cobrando
taxa unciária de um milênio, o tempo inutilizara a duodécima
parte da obra, editada por Goeschen em 1820, depois em 1824, com
melhorias decifratórias de Bluhme. Gai Institutionum Commentarii
IV. E codice rescripto bibliothecae Veronensis a Friderico
Bluhmio iterum collato secundum edidit Io. F. L. GOESCHEN etc. Berolini
1824.
As edições atuais tomaram como base o apógrafo ou edição transcriptícia de Studemund, publicado em 1874.
7. O tratado gaiano consta de quatro comentários.
No primeiro estuda as pessoas, ius quod ad personas pertinet;
no segundo e terceiro estuda as coisas, ius quod ad res pertinet;
no quarto estuda as ações, ius quod ad actiones
pertinet.
No primeiro expõe a teoria das pessoas de direito
seu e alheio: homens livres, servos, pessoas sob poder, sob mão,
sob mancípio, sob tutela, sob curadoria. No segundo trata
do patrimônio, sua aquisição e alienação,
de herança, legado, fideicomisso. No terceiro, acabada a
herança, trata das obrigações de contrato
e de delito. As obrigações de contrato abrangem: obrigação
nascida de coisa, de palavra oral, de palavra escrita, de consenso.
As obrigações de delito são por furto, roubo,
dano.
No quarto comentário, estuda as ações contra a coisa e contra a pessoa, ações da lei, fórmulas, exceções, interditos.
8. Temos chamado de Instituições o que
entre nós costumam chamar Institutas, como os francêses Institutes;
mas os espanhóis dizem Instituciones e os italianos, Istituzioni. O
velho Morais define "instituta" como sendo "livro
elementar de direito romano, mandado compor para a escola de Direito
por Justiniano imperador". Mas acima, de instituições,
ele dissera que é "livro didático, regras, preceitos".
Escrevendo Instituições, mais não fazemos do
que tomar o latim Institutiones, nome onde se contém
o sentido de educação - actus docendi, eruditio.
Além dos responsa, das quaestiones, dos digesta,
dos commentarii, a atividade do jurista se compendiava
em lições à cupida legum iuventus de
que fala Justiniano, transformado o jurisperito em explicador a discípulos,
em mestre-escola, em antecéssor, como diz ainda
Justiniano. Estas lições eram as institutiones,
talvez publicadas num enquirídio ou manual, como o de Gaio.
9. A claridade sintética e a limpa sistemação da obra gaiana fez supor que o trabalho dele fora de cooperação adicional, complementando esforço precedente, possível resultado de vagarosa decantação. Parece difícil de admitir que tenha criado, originalmente, o acabado e harmonioso monumento. Era muito para um, no seu tempo.
A operação física de centrifugar aparta os elementos de um todo, segundo as densidades, como por exemplo as células e o sérum de suspensão, no sangue.
É uma ação abstrativa de efeitos
semelhantes ao que produz a operação racional sobre
as notas de um conceito. A filosofia grega, luminosa, encaminhou
a inteligência do homem no exercício de tal atividade,
a que foi teimosamente alérgico o temperamento romano. Por
isso não criou uma filosofia do direito, embora criasse o
direito genialmente, sob forma concreta, substancial, quase corpórea.
Fala-se em estoicismo ou academismo, no direito, mas cumpre não
confundir o que pertence à classificação da
intelectualidade romana, com o que caiba propriamente ao jurista
romano, Cícero, grande amador da filosofia, não foi
jurista, foi orador.
Se houvesse aplicado a filosofia ao direito, o romano teria praticado a centrifugação abstrativa, que não praticou. Teria generalizado e nos teria fornecido um sistema. Entretanto, foi tão avesso a este caminho que alguns romanistas querem ver interpolação triboniana em toda definição ou teoria do Corpus.
A análise racional, em dois casos consubstanciais porém matizados, pode ver a substância comum, por baixo do matiz. Mas o romano era incapaz de enxergar a redutibilidade, fascinado pela cor. Entre um spondeo e um promitto estipulados, por sob a diferença residual, pode ver-se a natureza do mesmo contrato. O romano, impedido pelo residual, pela sugestão de privilégio civil da sponsio, via contratos.
Dizemos o direito, genericamente, pelo mesmo processo
mental por que dizemos o brasileiro, em vez de os brasileiros. O
romano, dizendo ius, tinha em mente um direito, mas deste
um que se opõe a dois. Não sintetizava nem abrangia.
Justapunha e contava. Por isso, iura são os direitos,
mas num plural de intenção quantitativa, em direção
numérica.
Para ele, seria transcendência nebulosa a noção
de direito, possível hoje, sob forma centrifugada - harmonia
e síntese de notas pairando na matéria da realidade,
como os glóbulos; no sérum ou como o espírito
sobre o caos. Podemos conhecer um direito e o direito, uma lei e
a lei. O romano conhecia um direito, dois direitos. Daí, nos
tratados, a dominância expressiva dos plurais iura leges
obligationes.
10. Até nas lições de generalização que a vida ministra, o romano buscou a individuação concreta, levado pelo mesmo estado de necessidade por que primeiro simbolizou os deuses mediante coisas materiais, hominizando-os depois, antropomorficamente, sob a influência helênica.
Temos exemplo jurídico desta carência do concreto, numa criação da fórmula pretória.
Não se compreenderia uma ação que não estivesse prevista numa fórmula. E como tudo havia de caber em fórmulas, a cada direito correspondia a sua. Durante séculos foram monopólio pontifício, arma de prestígio da classe, até que se fizeram título de glória para aquele escriba Cneio Flávio, quando as divulgou.
Uma inserção formular constituía
novidade grave, comoção da rotina capaz de imortalizar
um homem, como a C. Aquílio Galo, familiar de Cícero,
que tem o nome ligado à estipulação aquiliana.
Antes dele, Ebúcio conquistara sua perenidade, introduzindo
o uso da fórmula escrita no direito civil.
Preexistindo à ação, vivia a
fórmula em modelos que bastava adaptar ao caso. Eram como
estes espelhos de procurações, petições
e sacramentos quejandos, honra e glória de escrivães,
tormento de neófitos, império ou empíreo da
revessa língua tabelioa.
A moderna capacidade abstrativa engendrou nelas o
mistério da linha em branco, a linha pontilhada, lacuna que
preencher. Ora, isso era mui difícil para um quirite. Para
ele, o drama esquematizado havia de ter configuração
integral. Então a sabedoria criou dois notáveis personagens,
sinônimos da linha em branco, mais ou menos equivalente a Fulano
e Sicrano, heróis nossos da alusão de endereço
potencial. A figura do autor é AULO AGÉRIO e a figura
do réu é NUMERIO NEGIDIO. Eis um exemplo:
Si paret Numerium Negidium Aulo Agerio sestertium
decem milia dare oportere, iudex Numerium Negidium Aulo Agerio
sestertium decem milia condemnato. Si non paret, absolvito.
Os prenomes Aulus e Numerius são
da pequena lista de prenomes romanos. Mas não são vulgares
os nomes Agerius e Negidius, inteiramente fictício
o último.
É de supor que a escolha se tenha inspirado
ou num simbolismo ritual ou na malícia da praça, ligado
o nome de Agério, autor ou querelante, à idéia
de ágere, demandar; e ligado o nome de Negídio,
réu ou querelado, à idéia de negare.
Também os prenomes têm sugestão, pois Aulus lembra
aula, panela ou pote, e Numerius lembra número. Aulus,
recordando aula, recorda tesouro guardado, como na aulula ou
panela de ouro, da comédia Aulularia, de Plauto.
Aulo Agério é Agério e é Aulo.
Como Agério, é autor, actor, e age, demanda, querela,
reclama. Corno Aulo, é um paneleiro preocupado com sua aula
auri, esforçado em replenar sua arca numária.
Numério Negídio é Negídio e é Numério. Como Negídio, nega e, sendo Numério, quer evitar que lhe diminuam o cabedal.
Assim podia ser a interpretação popular.
Mas a ciência etimológica é "negidia" com
relação a numerus e Numerius, prenome em que se vê a
transformação de Numasios, forma ligada a Numa.
Além de Agério e Negídio, havia os Caios, Tícios, Mévios, Semprônios, Seios, com que topa sempre o leitor, no formularismo dos vários atos jurídicos.
11. Acostumada a crítica às variadas
amostras da codificação justiniana, de que se desprende
um grande efeito parcelar, fracionário, com muitas sugestões
de primarice, é natural que experimente sensação
de maravilha, ao contemplar a obra gaiana, ordenada e elegante, único
espelho em que se reflete a corpo inteiro a difícil expressão
e figura do direito clássico.
12. Atraído pelo formalismo de que se revestia
o negócio jurídico entre os romanos, procuramos nuclear
nossas observações em torno de um deles a estipulação conforme
se descreve no Códice Veronês. Mais vulgar, mais simples,
menos formal do que os outros, é também o mais importante. É o
tipo do contrato moderno, menos a obrigatoriedade coloquial da oralidade.
Na medida em que cresce, em Roma e para Roma, a importância
do peregrino, a estipulação, stipulatio,
concorre primeiro com a esponsão, sponsio, que
depois suplanta. Entrou um dia pela porta do direito gentio, ius
gentium; venceu e dominou, alimentada por aquela força
de necessidade e economia por que o mais simples acaba superando.
A evolução foi lenta, a partir daquela hora distante em que a vontade se escondia no rito sacramental, por detrás de palavras e gestos de eficácia mágica.
A família vivia dentro de uma área fechada
de produção e consumo. O câmbio extragentilicio
era fraco. A primeira forma de crédito deve ter sido uma venda
fiduciária, talvez de um escravo, talvez de um filho, talvez
de si mesmo. Vendido, ficava preso ao credor, nexus, pagando
em trabalho o preço, até que pudesse voltar ao estado
primitivo, em uma cerimônia de retrovenda.
Depois começou a divulgar-se um negócio
mais humano e mais praticável, em que um terceiro garante
o tomador, mediante solene e sagrada promessa, cuja natureza vem
acusada na do verbo religioso spondere, libar. Spondere guardou
sempre lembrança de sua antiga importância, mais forte
do que promittere, pois contém ênfase da promessa. É prometer,
mas ritualmente, quodam solemni ritu promittere, é prometer
com mais vigor, maiorem se obligandi vim significat quam promittere.
Do garantir por segundo a ser segundo e garantir por si era natural a passagem, com o natural progresso das transações.
Há romanistas que vêem a origem do direito
das obrigações no costume da entrega expiatória,
a noxae deditio do lesador ao lesado.
O campo histórico, mal demarcado, nevoento,
permite suposições. Noxae deditio, nexum, sponsio, obligatio,
lá se perdem, figuras confusamente entrevistas, mais adivinhadas
do que entrevistas.
Fosse automancipação ou fosse autopignoração,
a verdade é que o nexo deve ter criado situações
dramáticas, ao longo do IV século a. C., entre a plebe
devedora e o patriciado credor. Insolvência e rigor, mau estar
e maus tratos, situação incomportável, conforme
o quadro está em Lívio, até que a lei petélia
, de 326 a. C., permitisse transformar-se o regime das obrigações,
pela introdução da resposta patrimonial, antes da resposta
corporal, do devedor: bona debitoris non corpus obnoxium esse.
Daí por diante floresceu a estipulação. Spondeo e promitto vão
adquirindo valor prático da mesma densidade, apenas separados
os verbos por uma linha formal de nobreza e privilégio: spondeo é verbo
civil de que não usa o peregrino.
A estipulação floresceu. Com sua estirpe
comercialmente gentia, o romano levou-a aos quatro cantos do Império.
Ela venceu o tempo, transpôs evoluções e incorporou-se
ao vocabulário ocidental, com o sentido de ajuste, contrato,
cláusula.
O bom Morais, depois de nos apresentar a figura romana, diz que estipulação, entre nós, é promessa de palavra, em conseqüência de proposta ou pedimento. Como se vê, o conceito ainda está preso ao conceito antigo.
Os dicionários de hoje dirão como o
Larousse: clause, convention énoncée dans
un contrat. Ou como Webster: act of stipulating; a contracting
of agreeing, or that which is stipulated, or agreed upon; covenant;
contract; also, any article, item or condition, in an agreement;
as, stipulation to furnish troops.
Para o romano, era um contrato de pergunta e resposta,
formal e estreito. Define um dicionário latino: Stipulatio
est contractus qui fit per interrogationem unius et alterius responsionem,
ex quibus paritur obligatio.
13. A origem de sua instituição é tão
escura como é discutida a imagem semântica, o valor
de termo que motivou o batismo - stipulatio.
E fácil de supor que o nome lhe veio de algum ato simbólico. Isto é proposição que está pedindo o ritualismo de outrora. Qual fosse ele, porém, não sabem os historiadores, nem os juristas, nem os etimólogos.
O estudo lingüístico aproxima, cognaticiamente,
os vocábulos da família "stip", mas não
resolve a passagem semântica. Achou-se o corpo. Da alma não
foi possível descobrir o caminho.
Stipulatio é um correlativo etimológico
de stipulari, de stipula, de stips, de stipes,
de stipare, de stipendium. No mapa indo-europeu, stipulatio tem
parentes, v. g ., no alemão steif e
no inglês stiff rijo, firme.
- Stipare significa apertar comprimir
condensar.
- Stips stipis é moedinha, óbulo,
moeda cunhada - nummus signatus o que lembra stipare.
Lembra também stipendium estipêndio soldo
tributo haplologia de stipi-pendium, em que o segundo
elemento representa pendere, pesar, como no tempo do aes
grave, não amoedado, em que se pesava o metal do pagamento.
- Stips stipitis é o estipe estípite caule espique tronco da planta.
- Stipula é o que os botânicos
chamam de estípula. É colmo cana haste palha. Nome
de matéria fraca e leve. Por isto foi misturado com a imagem
da inconsistência: flamma de stipula é fogo
de palha. Traduzindo Jó, São Jerônimo empregou stipula e folium,
numa antítese entre o vigor e a debilidade: contra folium
quod vento rapitur ostendis potentiam tuam et stipulam siccam perseq
ueris (Jó. 13.25).
- Stipulari é propor determinadas condições de um contrato, certis verbis interrogare vel rogare aliquem an velit quippiam facere aut dare.
- Stipulatio, em outra definição
(Digesto 45.1.5), é um
concebimento de palavras por que o interrogado responde que dará ou
fará o que
lhe perguntam: verborum conceptio quibus is qui interrogatur
daturum facturumve se quod interrogatus est responderit.
14. Pensando no sentido de stipare, stips, stipes,
a imaginação semântica percebe uma nota comum,
que é a idéia
de firme, contida na raiz representada por stip -. Assim,
a moeda cunhada, stips,
lembra o ato de consolidar, estipar, o metal fundido; nas plantas
frágeis, o estípite lembra a parte mais forte.
A idéia firme, parece, está contida na palavra stipulari e seu derivado stipulatio.
Discutindo as hipóteses conhecidas, o DEL [ Dictionnaire Étymologique du Latin] de Ernout-Meillet conclui: En somme rien n'empêche absolument d'expliquer stipulor par je dresse, j'affermis.
Varrão e Festo ligaram stipulari a stips,
moeda. Para eles, stipulari é prometer dinheiro: cum
spondetur pecunia, quod stipulari dicitur.
Paulo, repetido por Justiniano, derivou stipulatio de
um suposto adjetivo stipulus, cujo sentido seria - firme. Hoc
nomine indo utitur quia stipulum apud veteres firmum appellabatur,
forte a stipite descendens. (Instituições. 3.15).
Acontece, porém, dizem os latinistas, que o
adjetivo stipulus não tem comprovação
de existência, forjado talvez para explicar stipulatio.
15. Entretanto, a mais divulgada e imaginosa teoria
sobre a origem do verbo stipulari é a de Isidoro,
o santo bispo hispalense (560/636). No seu tratado das origens ou
etimologias, ele declara: Veteres enim, quando sibi aliquid promittebant,
stipulam tenentes frangebant, quam iterum iungentes sponsiones suas
agnoscebant: com efeito os antigos, quando se prometiam alguma
coisa, segurando um graveto, aí o quebravam; depois, rejungindo
as partes, comprovavam seus combinados.
Uma vantagem, pelo menos, aqui está: a visualização ritual, de que precisávamos. A vontade transfundida em gesto que lhe dá consistência tranqüilizadora, ponto de partida para reivindicação posterior. Isidoro de Sevilha apresenta-nos o homem antigo procedendo de jeito que contenta a verossimilhança: quebra uma estípula ou graveto, em fragmentos documentais. Para a sua etimologia, pois, estipular vem de estípula. O achado é pitoresco, dramatizável, satisfazendo plenamente nossa compreensão teatral. A explicação tem sido reproduzida por dicionaristas e também por romanistas.
Girard opõe-lhe restrições. Meillet, mestre de mestres, não lhe dá atenção e até se louva nas restrições de Girard. Empertiga-se contra seu formalismo rústico um outro formalismo - o formalismo intelectualizante: não pareceria bem ter nascido de origem assim a tão abstrata estipulação.
Mas o que falta à teoria do bispo hispalense é companhia de autoridades. Veio tarde, à hora da decadência. Onde teria ele obtido uma informação que, por exemplo, Varrão não conhece? Lembremo-nos, porém, do grande naufrágio, muitas vezes sem rastro, da massa de produção intelectual da antigüidade.
A explicação isidoriana tem aparência morfológica e psicológica. Cativa nossa imaginação, nossa fome de racional, eternamente excitada de porquês.
A estipulação a graveto acorda-se à idéia de um estado primitivo e rude. (Ressalve-se que primitivo é palavra aqui empregada segundo uma licença por que chamamos primitivo um homem que tem milênios de evolução).
16. No que dizemos não vai defesa à declaração etimológica, porém sim à verossimilhança, de que é rica a suposição de um estipular a graveto.
A tese etimológica do Hispalense tem contra si o argumento de omissão. Não há notícia dela nos autores romanos. Os soldados da compilação que o grande Triboniano comandou, por autoridade de Justiniano, é de presumir que a não encontraram nos milhões de linhas que percorreram, em milhares do livros. Ou, se deram com ela, não lhe deram fé, ou porque seria em afirmacão de modesto penhor, ou porque a idéia de firmeza contratual dominava os legistas, subjugados pela derivação de Paulo, que Justiniano consagrou.
Recorde-se que o jurisconsulto romano era comumente
apaixonado pela etimologia. Palavra de utilidade jurídica
assim como stipulatio não podia escapar à pesquisa
da origem, entre quem as vivia buscando. Fazendo cabedal da ciência
de Labeão, por exemplo, diz-se que ele foi gênio multiforme,
sabedor de gramática e dialética, analogista chefe,
especialmente inclinado às etimologias, com que muito ilustrou
suas doutrinas. O que Labeão representou de verdade, os outros
juristas quereriam ser, empregando os mesmos recursos, deitando-se às
mesmas preferências inclusive etimologia. Era de escapar
um vocábulo de todo dia e toda hora, como stipulatio?
Ou Paulo repetiu doutrina corrente, veiculando um étimo pacífico,
ou os compiladores se descartaram de alguma outra, ou ... enfim,
para que mais suposições?
Uma das provas do muito uso é a extensão
do sentido. Chegando esta a uma deslocação polar, então
a prova é forte. Estipular é declarar condições "perguntando".
Estipulador é o reus stipulandi, é o interrogador,
o qui contractum initurus interrogat; assim como o outro é o
promissor, o reus promittendi, o qui respondet.
Estipulação é quase o mesmo que palavras do
interrogante, assim como sponsio é palavras do respondente.
Ora, no correr dos tempos, stipulari chegou a tomar o sentido
de promittere. Assim está empregado em Paulo, assim
usado por Ulpiano; no primeiro: si certo loco condicturum se
quis stipulatus sit (Digesto. 13.4.7); no segundo: si
decem aut Stichum stipulatus solvam quinque. (12.6.26).
Esta semantização polar revela duas coisas: o muito uso das palavras estipular e estipulação e, segundo o que convém ao tema de nosso trabalho a evanescência do formalismo, da sacralidade vocabular, segundo a marcha em que andou o direito romano, do sinal da vontade para a vontade: da aparência para a intenção.
Foi mudança grande esta: tomar liberdade de
destroçar palavra que nem de brinquedo se podia usar, pois
dita de brinquedo fazia nascer a obrigação, à pura
força de sua magia. Stipulationes omnes fere ipso iure
sic subsistere intelligebantur ut ad obligationem, etiam iocandi
animo interpositae, ipso iure prodessent. O vínculo
não
estava em alguma anuência contratual, mas num consentimento
misterioso, um vigor divino que os vocábulos tinham, segundo
se guardava o rito, que gera efeito, mesmo contra a intenção
da parte. Nesse tempo, o ius era uma fórmula religiosa
com força de lei. Ainda não se havia dividido em ius e fas ou,
mesmo dividido, vinha tingido de fas. Ius é o
que humanamente se permite, como fas o que divinamente
se permite. Ad religionem fas, ad homines iura pertinent.
Na medida em que a sintaxe do religioso foi sendo abrangida pelo fas,
também o ius se foi laicizando. Mas seus cognatos iurare e iusiurandum jamais
descoraram.
O ius desprendeu-se devagar, progredindo no sentido terrestre, esvaziando-se etimologicamente, enquanto a vocação realista do romano, agarrado à fórmula, ia cristalizando genialmente o precioso legado.
17. A estipulação era de procedência
gentia, profana. Alastrou-se com o ius gentium, aprovada
em sua simplicidade.
A genuína estipulação romana é asponsio,
colóquio ritual e solene, conjugação do verbo spondere e
só ele: centum mihi dari spondes? - spondeo.
Varrão ligou a origem de spondere a sponte. Spondere
a sponte, nam id valet et a voluntate. Mas o romano já desconfiava
do cognatismo entre spondere e o grego spéndo
quamvis dicatur a graeca voce figurata esse, diz Gaio (3.93).
Spondere é prometer solenemente.
Teve uso especial no casamento. Qui uxorem ducturus erat ab eo
onde ducenda erat stipulabatur eam in matrimonium datum iri; qui
ducturus erat itidem spondebat. (Sérvio Sulpício,
ap. DEL, ErnoulMeillet). Era o contrato de casamento, sponsalia,
entre a sponsa e o sponsus.
A sponsio era uma obligatio verbis, utroque
loquente, numa pergunta e resposta, diversa da stipulatio gentia
pela exclusividade verbal do seu direito quirício. Mas tal
exclusividade tem origem numa reserva religiosa e não de
soberba nacional.
Temos de partir de hora arcaica, uma hora pré-histórica
do ius sacrum, momento social em que a Família e
o Estado se acham dominados por uma superação religiosa.
No âmbito gentilício avulta o pater, revestido
de poderes divinos e humanos, zeloso dos mores que vão
criando uma constelação de praxes éticas, cheias
de fas e de fides, nebulosas para nós,
em sua distância indocumentada. A atividade intrafamiliar vai
abrindo-se, devagar, às relações interfamiliares,
animando a civitas, cristalizando normas em que se condensa
um ius entre sacro e civil, com seu objetivo humano e sua
força cominatória de poderes supra-humamos. Aparece
nos atos o formalismo hierático dos gestos simbólicos
e a ênfase das palavras rituais. A lição vem
mais dos deuses do que da experiência. O que se pretende é lícito, é direito,
ou não é: fas est, ius est. A norma poderosa,
entranhada de ameaças extraterrestres, ainda não se
configurou em contornos definitivos, seguros, que o tempo lhe dará.
Num orbe claramente confinado, de homens e deuses, ela vive num intermúndio
nebular em que se encontram as vontades imortais e os anseios dos
mortais. Temerosa, adivinhada por intérpretes, ela desce até os
homens, para cada relação que eles procuram. O seu
custódio universal é o pontífice, esta figura
de eleição que compreende a linguagem dos deuses. Ele
regula o calendário e os rituais do procedimento a que o homem
deve cingir-se: proclama os dias fastos, em que os deuses permitem
resolver questões jurídicas e determina a cerimônia
legisacional. A transgressão é nefas, divinamente
reprovada e a sanção é um piaculum,
expiação religiosa, ou uma consecratio às
divindades infernais. A reivindicação comum é um sacramentum,
um depósito de garantia apostado entre as partes: a importância
do iniustum se reverte em sacrifício.
E notável, entre os romanos, que a lei não
lhes tenha surgido em bloco, num código, ou expressão
abrangente inicial, por alguma revelação divina, como
entre povos orientais. Seu direito não provém de uma
denormação geral, colocada à porta de entrada
da consciência coletiva. Não teve Mano, Sólon
ou Moisés que de algum modo lhe recebesse tábuas de
lei. Foi seu destino conformá-la devagar, na longa experiência
aditiva da estratificação.
18. Essa experiência primeiro se desenvolveu
nas relações intrafamiliares, onde o pater é chefe,
sacerdote e juiz. Como sacerdote, comunica-se com os deuses, rendendo-lhes
as miúdas satisfações que sempre querem. Juiz
e chefe, aplica o ius e rege a família, que tem
sob poder, sob mão, sob mancipio in potestate, in manu,
in mancipio: os filhos, os clientes, os libertos e os servos;
a mulher; o nexo ou adicto, o in loco servi um devedor
insolvente. Sua alçada vai até o direito de vida e
morte, ius vitae et necis.
A religião enche com seu clima o ambiente doméstico.
Dele nos pinta quadro célebre Fustel de Coulanges: sua casa é o
que para nós é um templo: lar, paredes, portas, limiar,
são deuses; deuses os limites, os antepassados, seu túmulo
e altar. O dia é uma sucessão de atos religiosos levantar,
deitar, comer, sair. Com atos religiosos se assinalam as fases importantes
da vida nascimento, virilidade, morte. O chefe sacrifica em casa,
na cúria, na gens, na tribo, participa no culto
da cidade, dança ao ritmo da flauta, conduz carros de deuses,
serve no lectistérnio aos divinos comensais, vive assombrado
pelos seus mortos, que aplaca em muitos e complicados ritos. Em tudo
se previne com augúrios e contra agouros, vira o rosto a
um mau sinal, recita uma fórmula encantada, não pronuncia
umas tantas palavras, grava em tabuinhas votos que deposita junto
ao deus, treme se lhe contam que choveu sangue ou que um boi falou,
readquirindo tranqüilidade após alguma cerimônia
expiatória. Tem fórmulas contra incêndios, contra
doenças e modos eficazes de recitar, cuspindo, por exemplo,
de maneira diferente, vinte-e-sete vezes. Um agouro interrompe uma
atividade iniciada - uma assembléia popular, uma deliberação
do senado. É bravo na guerra, mas vai confiado no augúrio
que lhe prometeu a vitória.
19. Esse romano foi criando o ius civile,
desentranhando-o passo a passo, enfaixado em formalismos, da simbiose
inicial, em que o divino mais o humano se misturam.
Coulanges também nos apresenta esse direito, na sua fase de mistura, resíduo de uma herança indo-européia. Não é ainda a consciência do justo e do injusto, mas o fruto pragmático de costumes religiosos. A terra consagrada pelo túmulo ancestral faz-se propriedade, o lar que passa de pai a filho é a herança da imposta tradição do culto familar. É assim que nasce o direito.
Os deuses comunicaram a lei aos homens, sob forma
auspicial, gravada em livros sagrados, num estilo de arrestos breves,
como um versículo de Moisés ou um esloca de Mano.
Assim como a religião era civil quer dizer
da cidade assim o direito. O estado de cidade, civitas,
são regalias e obrigações do civis perante
os deuses e os outros cives da urbe. Ao peregrino, tais
direitos não lhe cabem. Em tese, ele é um ser excomungado
e sem defesa, pior situação do que de escravo, pois
este participa da família, de seu culto.
Seu nome é hostis: sua condição é débil.
Está longe da integração e tão próximo
da adversidade, que o mesmo vocábulo se aplicou ao inimigo.
Contra ele, o peregrino, seja eterna a garantia, rezam as Doze Tábuas: adversus
hostem aeterna auctoritas esto.
O tempo e a utilidade intervirão em seu favor.
Adquire proteção, fazendo-se cliente. Passará de hostis a hospes,
desenvolverá o ius gentium e terá um pretor,
a partir de 242 a. C.
O privilégio civil era impressionante e formal.
O romano que o perdesse por capitis deminutio ficava desamparado
e impedido, sem culto nem família. Coulanges lembra o exemplo
de Régulo, dramatizado por Horácio, na ode 5 do livro
3. Prisioneiro de Cartago, servus hostium, fora a Roma levar
uma proposta inimiga. Expôs sua embaixada e concitou o Senado
contra Cartago, mas sob forma de conselho, não de sentença,
pois não era mais senador. Mulher e filhos, conta Horácio,
a ele correm, mas são repelidos, pois não tem mulher
nem filhos: fertur pudicae coniugis osculum/parvosque natos,
ut capitis minor/a se removisse.
20. Eis o clima da sponsio, cujo fórmula
sacra não podia ser profanada em boca de peregrino. Se até a
simples presença do extra-gentilício turbava um rito
sagrado, não seria imaginável que pudesse pronunciar
palavras de uma fórmula religiosa, entre um povo que acreditava
na magia vocabular.
Recitada fielmente, uma prece era capaz de mover um deus a deixar uma cidade inimiga. "Tu, ó grandíssimo que proteges essa cidade, oro-te, adoro-te, peço-te que deixes essa cidade, esse povo, esses templos, esses lugares sagrados. Afastando-te deles, vem a Roma, para minha casa e para os meus. Que nossa cidade, nossos templos, nossos lugares sagrados te sejam mais agradáveis e queridos. Toma-nos sob tua guarda. Se o fizeres, fundarei um templo em tua honra." (Ap. Coulanges)
Se caía a cidade, ficava provada a eficácia, pois o deus a tinha abandonado, fazendo-se quinta-coluna.
Religião e Direito haviam de nascer misturados, segundo o primitivo formalismo. As relações com a divindade romana têm a cor transacional das sociais. Teme-se ao deus, que se aplaca adulando e a quem se pede prometendo pagamento. E uma estipulação. Quando ele não atende, é sempre devido a uma contingência de imperfeição formal, no rito complexo e miúdo: uma atitude, um gesto, um pormenor da indumentária, a integridade vocabular, a vítima, a lenha do sacrifício, a perfeição dos atos e movimentos, o dia, a hora, os participantes, o lugar...
A crua impiedade provocava ruidoso castigo, segundo
lhe coube a Cláudio Pulcro, na batalha naval de Drépano,
em 249, durante a Primeira Guerra Púnica, ao ser derrotado
por Adérbal, em punição de sua irreverência
com os frangos sagrados. Não querendo estes comer, por ocasião
da consulta auspicial, então Cláudio os fez jogar n'água,
a fim de que ao menos bebessem: ut saltem biberent quoniam esse
nollent.
21. Na medida em que a Urbe vai romanizando a Itália
e a Bacia Mediterrânea, o afluxo peregrino faz que a sponsio vá cedendo à stipulatio.
O particularismo do espírito municipal será subtituído por um conceito de nação bastante vizinho do moderno, concretizado na genial constância que criou um Império, ordenou um Mundo, gerou um Estado e implantou o Direito.
Entretanto, o mesmo particularismo perdera a Grécia, por não ter tido sabedoria internacional, capacidade de se impor e compreender, de dominar e respeitar, de adaptar e adaptar-se.
A corrupção, lei natural das coisas, desromanizará Roma. Seu Direito, porém, ficará impresso no mapa do império.
Sob o influxo do direito gentio e da helenização,
com a involução do princípio de sacralidade,
também ele se desformalizará, até certo limite,
mas, substancialmente, resistirá a toda decadência,
até mesmo à bizantinização, exibindo
sua atlética estrutura na codificação justiniana.
Venceu a influência helênica, a turbação
oriental, firme no seu espírito prático, na sua vocação
de realidade. Envolvia-se ainda nas complicadíssimas obrigações
de uma ortodoxia infantil, na rudez de um Cincinato, num tempo em
que, desde a área helenística, soprava sobre o mar
o vento grego da abstração, espalhando o pólen
da metafísica, sob a forma de imortalidade, alma, inteligência
divina, energia íntima das coisas; em que os poetas, em vez
do solene rito homérico, surgiam com imaginações
novas de arte, e não de religião. Pitágoras
conceituara um ser supremo, Anaxágoras, um deus inteligência,
os sofistas agrediam velhos enganos, o homem duvidara das velhas
leis. Crescia o livre exame e Aristóteles descobrira que a
lei é a razão, enquanto os estóicos pregavam
que o homem acha dentro de si o dever e a recompensa.
22. A estrutura jurídica salvou-se da fecundação oriental pelo vigor de seu robusto formalismo, de etimologia religiosa. Foi prova não pequena resistir ao embate espiritual de Leste, embate que lhe esvaziou algumas articulações, mas não lhe abalou o arcabouço.
Roma helenizou-se em arte, asiatizou-se em religião, enfilosofou-se um pouco, socialmente, até o limite da alergia nacional. E seu direito, para além do que fora patrimônio comum, resistiu à subtileza helênica, apenas se matizando de algum colorido que sintonizava com a peculiaridade nativa, com a estóica natureza do campônio latino.
O embate foi grande e demorado, pois a influência
helênica principia, através da Etrúria, no afeiçoamento
rudimentar da primeira urbanização. O domínio
da Magna Grécia Tarento em 272, Siracusa em 212 aumentou
o contacto. Nasce a literatura com um tarentino, um campânio
e um calabrês Andronico, Névio e Ênio. Inespeculativo
e inabstrato, o romano contenta-se com o ensino trivial leitura
e escrita soletrando as Doze Tábuas. Entretanto, a vernaculidade
com o servo e o liberto gregos ia enriquecendo a inteligência.
Embora ainda não se exiba, o patrício tem pedagogos
que lhe educam o filho e lhe transmitem as harmonias helênicas,
para o gosto do uso íntimo.
A conquista do Oriente pôs a Grécia à disposição
de Roma. No entanto, que diferença no povo de agora! Quantum
mutatus ab illo! Era uma Grécia minada de asiaticismo,
esvaída, irreconhecível.
Quando se repete a célebre observação
de Horácio a respeito da Grécia vencida, escrevem Bloch
e Carcopino, cumpre lembrar que aquilo era uma Grécia mancomunada
com bárbaros, roída de influências orientais,
enervada e lângüida, a pagar em desfibramento e falta
de civismo a prosperidade carreada pelos diádocos.
Na ingestão maciça das vitórias
orientais, também Roma se dissolveria no delíquio da
crença, da família, da sobriedade. Não demorou
o escândalo das Bacanais, festas dionisíacas introduzidas
na cidade e na península por um adivinho grego de baixa estirpe.
A novidade seduziu, com seus rituais noturnos e clandestinos, seus
juramentos, falsificações e assassínios. Provocaram
um senatusconsulto de coibição. Um inquérito
afeiçoou os acontecimentos nas proporções de
um vasto conluio. Em 186, presos ou mortos, foram mais de seis mil.
A forte reação acusava o estranho vigor
da ação. A sociedade costuma, de si, guardar paciência
com males de moda, pois sempre se espera que vão como vieram.
Reage tardiamente, em geral. A doença, porém, não
era uma só: era multiforme, tenaz, aliciante, como toda novidade.
Parafraseando o evangelista João, pode afirmar-se que o espírito
sopra onde quer spiritus ubi vult spirat. O espírito
helenístico minou a sociedade romana. Sabido que a imitação
costuma escolher o pior do imitável, seja feita uma idéia
do transtorno. O pitagorismo fora importado de Tarento. Atraía
pela sua elevação, mas abalava a crença oficial,
reduzindo a mitologia a símbolos da unidade suprema. Ênio,
cantor de avitos feitos, entretanto compôs uma sátira
religiosa à moda filosófica e traduziu um livro ímpio
de Evêmero. Surgiram os cépticos, pois não.
Cláudio Pulcro, Caio Flamínio, Cláudio Marcelo,
figuras da guerra cartaginesa, revelaram seu nenhum respeito aos
auspícios religiosos.
Depois de Pidna, em 168, o grande intercâmbio
ajudou a divulgação do estoicismo, do neoacademismo
e do epicurismo, carreada esnobisticamente pelo patriciado, enquanto
na praça o veículo popular da infiltração
era o teatro, prazenteiro e salso, no chiste grosso de Plauto, encenador
de cortesãs, alcoviteiros, senhores libertinos e servos malandros.
A tradição e saudade da prisca virtus reagia ineficazmente. Em 161 foi proibido que houvesse na cidade filósofos e rétores. Em 154, Marco Pórcio Catão, o Censorino, octogenário e duro, exigiu do Senado que despachasse imediatamente, recambiando à origem,
uma embaixada ateniense que fora a Roma pleitear interesses numários e se esquecera na cidade a ensinar filosofia. Eram eles o estóico Diógenes Babilônio, o peripatético de nome Critolau Faselita e o acadêmico chamado Carnéades Cireneu.
O rude italiota que, havia cinqüenta anos, trouxera Ênio para Roma, via em Sócrates um charlatão e em toda a espécie grega gente inútil e odiosa. Havia declarado, com muito de profeta, que Roma estaria perdida se alguma vez aquela raça lhe transferisse as suas letras.
23. Cresceu, conformou-se, tomou estrutura e personalfdade
o ius civile, desprendido lentamente do ius sacrum.
Laicizou-se, envolvido em sentido terrestre, o velho termo religioso
e jurídico de herança indo-européia. Até a
roupagem gráfica mudou, acompanhando a evolução
fônica, pois as formas primitivas eram ious e iousa,
passadas a ius e iura. Além da desditongação,
recebera aquela metabolia fonética apelidada rotacismo entre
os lingüistas. Chamando ao r de letra canina denominação
de uso romano diz Forcellini: Antiquissimi iousa dixerunt nec
litteras geminabant nec utebantur littera canina r; postea abjecta
diphthongo et sibilante littera in capinam versa iura dixerunt. Usando
de fantasia, era o caso anunciar que o vocábulo minguara foneticamente
para que significasse a míngua semântica de seu antigo
valor religioso.
Afastou-se do altar e dos penetrais pontifícios,
escolhendo morada entre os patrícios, depois da divulgação
flaviana, no início do terceiro século ante Christum.
Mas não se desprendeu de seu robusto formalismo,
apoiado na religião, nos mores, na fides,
na sobriedade, na teimosa rotina, embora se diminuísse o conteúdo
no esquecimento etimológico, na involução dessacralizante,
na simples marcha temporal.
Simplificou-se, maleável, no encontro viário
do ius gentium, profano e terrestre, descerimonioso e comum, útil
e humilde. A partir das Doze Tábuas, o ius civile vai
limitando sua peculiaridade às relações familiares,
invadindo o ius gentium o campo das relações
patrimoniais.
Em 242 a.C. foi criada a magistratura especial do
estrangeiro, o pretor peregrino, qui inter peregrinos aut inter
cives et peregrinos ius diceret. Junto a ele, em vez da solenidade per
aes et libram, valia a simples transação; em
vez da mancipatio ritual, a simples tradição;
em vez da sponsio sacramental, a estipulação.
Havia de influir no romano esta lhaneza do direito gentio. Além disto, ao que parece, ele não passava de um direito romano aplicado a peregrinos ou de uma interpretação romana do direito estrangeiro.
24. Cícero, transfundindo ao latim uma abstração
helênica, faz coincidir o ius gentium com o ius
naturale: E Gaio dirá, no fim da estrada clássica: Quod
quisque populus ipse sibi ius constituit, id ipsius proprium est
vocaturque ius civile, quasi ius proprium civitatis; quod vero naturalis
ratio inter omnes homines constituit, id apud omnes populos peraeque
custoditur vocaturque ius gentium, quasi quo iure omnes gentes utuntur.
Bonfante procura restringir o sentido de naturalis
ratio em Gaio, alegando que não se invoca a razão
humana, porém sim a lógica das coisas, vale dizer,
das instituições jurídicas. Parece-nos demais
subtil o discrime. Se Gaio fala em coisas constituídas entre
todos os homens e observadas por igual entre todos os povos, a ratio que
as constituiu é a razão. Reor e ratio,
em latim, partem de um sentido primeiro que é contar e conta;
mas desde a inseminação da inteligência romana
pela filosofia e pela retórica, adquiriu o sentido que Bonfante
lhe quer negar: é uma resposta fiel do grego logos,
vocábulo também dos dois sentidos conta e razão.
A nosso ver, o que se poderia alegar é que tais discriminações, puramente disquisitórias, de alcance prático subtil, porventura não entravam no arrazoado jurídico, na lição concreta e casuística da era clássica. A naturalis ratio de Gaio, sendo naturalis ratio num jurista, assinalaria já, como na era pós-clássica, efeitos do clima oriental.
No entretanto, como concluir, se naufragou a documentação?
O entender de Cícero tem cores de evidência, apenas se podendo objetar que não é jurídica e sim filosófica a sua teoria, sua, até onde não é dos gregos que lha ensinaram.
Foi depois das guerras púnicas, diz Horácio,
que o romano, tardiamente, começou a interessar-se nas agudezas
dos livros gregos: Serus enim graecis admovit acumina chartis
et, post punica bella quietus... (Epístolas.2.1.161).
Começou em tal época uma revolução intelectual
que repercutiria no direito. Sua unidade teocrática ia cedendo à franca
distinção do humano e do divino, criando-se a oposição
que enxergou Sérvio, e depois Isidoro, nos conceitos de fas e ius.
Escreveu o primeiro que o lícito pertence à religião
e o direito aos homens ad religionem fas, ad homines iura pertinent.
O segundo repetiu o mesmo, com outras palavras: o licito é lei
divina, o direito lei humana fas lex divina, ius lex humana
est.
Riccardo Orestano disserta sobre a matéria
num trabalho intitulado Elemento divino ed elemento umano nel
diritto di Roma, Milano, 1941. Aponta a infiltração
racional a que já nos temos referido, cita o caso de Políbio
afirmando que um Estado de seres racionais torna a religião
inútil e o caso de Quinto Múcio Cévola, o Pontífice,
a declarar que a religião é um engano conveniente ao
povo. Fala da atmosfera de simples e vaga religiosidade que ia tomando
lugar ao espírito de religião e dominando a era republicana
em que se ergueu o edifício leigo do direito privado.
O patrício intelectualizado, que jamais tentara
a metafísica da crença e dos mores, importou
simplesmente o direito natural, o princípio de que a lei impera
na consciência do homem, imbuindo-se da diferença aristotélica
entre lei humana e lei da natureza díkaion nomikón,
díkaion physikón. Cícero dirá,
apud Orestano: initium iuris a natura ductum; natura ius est
quod non opinio genuit sed quaedam in natura vis insevit, ut religionem,
pietatem, gratiam, vindicationem, observantiam, veritatem.
A mentalidade do jurista romano fugia da especulação. Mas daí a negar-lhe ponto de vista ideal, afirma o autor acima referido, vai um abismo que a doutrina moderna tem abusivamente transposto, dando por interpolados os textos que contêm substância filosófica.
25. Podia ser conceito já cristalizado na escola
clássica o conceito de direito natural em Ulpiano, repetido
por Justiniano (Instituições. 1. 2): ius
naturale est quod natura omnia animalia docuit. Interpolação
ou não, é difícil calcular-lhe a densidade abstrativa. É generalização
a que o romano chegou após mil anos de marcha e em que somos
levados, possivelmente, a ver mais substância do que tinha,
após outros mil anos.
Para o romano, e seu estado de espírito positivo,
o ius estava no costume, na lei, na fórmula, no
pretor. É expressivo que ele figurasse o direito na pessoa
do magistrado, chamando de ius o lugar em que se pedia
justiça: ius dicitur locus in quo ius dicitur. (D.1.1.11).
Na mesmice rudimentar das fórmulas e palavras apoiadas
no efeito dítico da exibição motora ia condensando-se
a lenta e cauta sabedoria da intuição, descobrindo
a tranqüila vantagem do arranjo social, comparado com os efeitos
da justiça pessoal, a ímpia satisfação
da força reprovada pelos deuses. Provar o direito ante o céu
e a terra é preocupação que domina a linha pré-histórica
e a marcha histórica do processo romano: dias fastos e nefastos,
sacramento legisacional, juramentos, atos comiciais como testamento
e adrogação, a comum abundância de testemunhas
em todo negócio...
Isto vinha da oralidade.
Do espírito de concreteza vinha o regime do
caso a caso, a incapacidade comum de sintetizar e simplificar. Da
sacralidade, do valor típico da forma, vinha o discriminar
do que para a razão era identificável, como sponsio e stipulatio.
Do caso a caso ainda, vinha a preocupação de exaurir,
fingindo, para resolver, situações inúteis,
por impossíveis ou logicamente nulas. Nulidade lógica
não lhe chega, pois lhe cumpre nulidade expressa, num direito
vincado de materialidade, em longos séculos de submissão
ao mundo objetivo.
Por sua natureza agarrada, era impelido ao hábito de acervar, a este método estatístico hoje encontrável, sob forma de mania, entre o povo ianque, em quem se aponta, pela subtil dedutiva da ciência européia, a falta de conclusões, a debilidade teórica ao lado de gigantesca massa experimental.
Criando o Direito, não lhe criou o romano a
ciência, isto é, aquela coisa mais do que o simples
conhecimento pragmático. Ele criou o direito 'fazendo' e não
'especulando'. Sua falta de imaginação foi um elemento
catalítico para o bom senso com que resolveu situações
positivas, dominando empiricamente o mistério de relações
injuntivamente apresentadas como de origem divina.
O ius nasceu da actio, do procedimento
que a realidade social admitia. Direito e ação se regeneram:
a ação legal é projeção do direito
e o direito é projeção dela, numa linha correlativa
em que avulta a actio, pois ela é quem revela o
direito, puro sistema, entre os romanos, puro sistema de ações
concedidas. Não se determinava que o autor podia usar de tal
direito, mas que tal ação lhe era concedida. O código
do direito privado não é um código de direitos,
mas um código de ações, desde aquele celebrado liber
actionum de Cneio Flávio. O postulado de que a cada
direito corresponde uma ação pode ser interpretado,
por um espírito de hoje, como significando: existe tal direito,
logo deve estar armado de sua ação. Para o viés
mental do romano, seria de inverter, dizendo: existe esta ação,
logo deve existir o direito correspondente.
Nesta observação apenas se contém
vontade de vincar a rotina pragmática, pois cumpre reconhecer
o seu lugar ao ius sob forma estática, o direito
como nível de consciência, gerado ciclicamente na evolução,
batendo às portas do pretor, em busca de forma dinâmica,
forma de ação em que se encarnava a sua realidade.
Concretizemos a vaguice num exemplo. Na idade mágica do sacramentalismo,
pronunciada a fórmula, feito o negócio, estava feito: cum
nexum faciet mancipiumque, uti língua nuncupassit ita ius
esto, rezavam as Doze Tábuas. Mas o tempo e a experiência,
subindo o teor humano do ius, foram mostrando que não
era direito manter valor e integridade para uma transação
dolosa. Gerou-se a forma estática, replenando o nível
de consciência até se determinar a forma dinâmica
na exceptio doli, que celebrizou C. Aquílio Galo.
26. Imaginemos que fosse o heleno,
em lugar do romano, a criar o direito que temos. A hipótese rescende a paradoxo, caso admitamos que o racionalismo ateniense dissolveria em abstrações o monumento íntegro da criação romana. Mas instituiria a ciência
do direito.
Sua inteligência, aquecida no contacto oriental,
diluiu em análise o compêndio do mundo que lhe transmitira
a sucessão ariana. Encarnou os deuses, hominizando-os em
fantástica teoria de paixões e forças, que sua
clara sensibilidade fingiu, na plástica de Fídias e
de Homero.
A compreensão romana do mundo é primária, cheia de modéstia
racional e pragmatismo.
A necessidade de compreender espevitou a agudeza helênica, no seu notável esforço de coordenar a sintaxe da matéria, dos deuses e dos seres humanos. Os deuses acabaram reduzidos a símbolos, avançando a perquirição no caminho da síntese final, que conclui na Vontade ou Inteligência suprema. Perscrutou-se nos fenômenos inapreensíveis à primeira vista, rastreou-se o princípio da harmonia natural, tentando surpreender a intimidade das relações secretas e a identidade substancial que anda sob a diversidade aparente.
A mesma necessidade de compreender fez que o romano
concretizasse o mistério numa divindade. Em vez de despovoar,
sobrepovoou seu Olimpo. William Thomson Kelvin, físico inglês
do século dezenove, dizia-se incapaz de entender o que não
pudesse armar em modelo mecânico. Nisto o romano se parecia
com ele: só aceitava o inexplicado quando o armava sob a forma
de um deus. Além daquele batalhão de deuses que recebeu
da herança comum, transformado em exército pela importação
cosmopolita, havia um deus de segunda linha para cada mistério
ou maravilhazinha. O nome era um rótulo que amansava o prurido
especulativo. O gosto da ordem ficava satisfeito; contentava-se bem
o formalismo; e a dinâmica do divino escusava elucidações
racionais.
A religião era severa, de rudeza campônia,
primeiro sem templos, depois sem faustos, até o dia em que
lhe veio a grandeza monumental, importada de leste. Faltava-lhe a
vocação da forma e a sensualidade estética dos
helenos. Uma pedra, uma lança, bastavam a concretizar a presença
de Jove ou de Marte, índices da força escura que regia
o mundo. Sobravam-lhe, porém, o grave senso da ordem, a pesada
honestidade, a temperada vontade que ia amoldar a terra em normas
de morfologia romana.
Santo Agostinho, depois de Varrão, fez larga
resenha de deuses que talvez mal valessem um lugar entre os capite
censi, abaixo das cinco classes tulianas. Mas a função
deles interessa ao que vimos dizendo: preenchiam, na imaginação
romana, o lugar da explicação lógica para as
ignorâncias fundamentais. Fenômenos do nascer, crescer,
nutrir-se, andar, dormir, falar, etc., cada um tinha seu deus: Sentinus
dá o sentimento, Posverta protege o nascimento, Ops ajuda
o recém-nascido, Vaticanus abre a boca para o alimento, Edusa
preside à nutrição. Abeona e Adeona assistem
a quem vai ou a quem vem. Numéria ensina a contar, Camena,
a cantar, Potina, a beber, Cunina, a dormir... etc. Germinar, florescer,
granar, madurar, ceifar... são coisas que dependem
de Sator. Seia, Segecia, Flora, Lacturcia, Matura, Tutelina...
Não admira que Varrão tenha noticiado mais de trinta mil deuses no panteão e que Petrônio gracejasse, declarando ser mais fácil encontrar um deus do que um homem: facilius possis deum quam hominem invenire.
27. Esse o antigo mundo romano que o sol de leste teve de iluminar intensamente, a fim de lhe ensanchar a rasteirice do céu, a estreiteza dos horizontes e lhe traspassar com um pouco de luz a opacidade atmosférica. Num mundo em que as noções não podem ser translúcidas nem subtis, em que o limiar de sensibilidade é inferior, cumpre-lhe visibilidade forte, encorpamento, consubstância grossa, formalismo. Assim tinha de ser no Direito.
Mas da influência que o pensamento grego teria exercido no pensamento jurídico de Roma falam discordemente os romanistas.
A opinião dominante é que os juristas clássicos, bons causuístas, foram impropensos à abstração, inferiores na pura elaboração científica.
A conclusão é pacífica, vista sob este enunciado. Mas até onde haveria influído o grego na inferioridade, melhorando-a? A questão muito convém a nosso tema, pois a razão foi letal ao formalismo, entrado em declínio do momento em que a vontade começou a predominar, na lenta destruição da eficiência mágica do rito.
Bonfante apresenta duas posições extremas
como a de Perozzi, que nega abstração à jurisprudência
clássica, e a de Sokolowski, diametral, pois admite que ela
meneou conceitos filosóficos, foi íntima das doutrinas
subtis, em nada lhe repugnando abstrações. Perozzi
vê reflexo helênico pós-clássico e sinal
de interpolação em todo lugar, no Corpus,
onde surge definição ou teoria. Sokolowski vê no
Digesto um mau espelho, imperialmente reduzido, e de plano, a um
vasto repertório de casos, agravado o mal pela decadência
dos tempos.
Julgando exagerada uma e outra posição, Bonfante quer uma linha média: a jurisprudência clássica não foi imune ao pensamento helênico: este a libertou do espírito tradicionalista, mas as concepões especificas da filosofia apenas lhe serviram de adorno, enfeitando, mais do que influindo nas decisões.
Parece-nos que a filosofia helênica exerceu uma ação de presença, atuando no direito segundo o limite em que atuou sobre o intelectual romano, polindo-lhe o espírito, amaciando-lhe a concreta rudeza, iniciando-lhe o amor da cogitação não pragmática, sublimando-lhe um ócio que irritava Catão.
Entretanto, quem ler os tratados de Cícero
terá vontade não pequena de avançar até o
ponto de vista de Sokolowski. Eles são um prospecto vivo da
atitude romana frente ao helenismo. O De oratore, por exemplo, é obra
tomada de grande familiaridade com a retórica e a filosofia.
São diálogos colocados no ano de 91 a.C. e em que figuram
principalmente dois grandes mestres da palavra, Lúcio Licínio
Crasso e Marco Antônio, avô do conhecido triúnviro.
Ressumbra de tudo uma viva afirmação de romanidade,
convencida de seu melhor destino, em orgulhosa exaltação
do orador, aquele composto romano de tribuno, advogado e jurista.
De entre as mesuras admirativas à sabedoria ateniense, escorre um fio despectivo de atitude suficientista, em que se percebe a antítese de duas vocações históricas, pragmatismo e contemplação, vista esta como arte verbosa de infinita dialética epistemológica, ao passo que, no romano, a palavra é ação. A argúcia empenhada pelo grego na conquista do conhecimento, empregou o romano em deslindar a engenharia de seu direito. A inteligência que analisa o mundo, responde a percuciência que concerta relações de utilidade social.
No platônico recesso de Túsculo, durante
um feriado romano, conversam as grandes figuras que Cícero
lá reuniu: Crasso, hospedeiro, Antônio, Múcio
Cévola, Sulpício, Cota, Cátulo e seu mano Júlio
César Estrabão. O grego, para todos, é uma segunda
língua. Têm seu estágio de leste, sua passagem
por Atenas, sua matrícula retórica. Admiram o helenismo,
cujo esplendor conhecem, mas raciocinam com a maioridade orgulhosa
de quem tem outra missão.
A certa altura, Crasso, buscando assinalar a filosofia mais útil ao orador, após descartar-se dos estóicos para quem o não sábio é escravo, ladrão, insensato... e dos epicureios cuja hedonística repugna à severidade nativa acabou descobrindo a vantagem dos peripatéticos e dos neo-acadêmicos da ala de Carnéades. Então Sulpício declara não carecer de Aristóteles, de Carnéades, nem de filósofo nenhum: Ego vero neque Aristotelem istum neque Carneadem nec philosophorum quemdam desidero...
Criticando os que fazem da vida um permanente filosofar,
Cátulo acha que um homem de facilidade natural, que pensa
no foro, no senado, no processo, no negócio público,
não há de gastar tanto tempo quanto quem ainda aprendia
quando morreu: Non tantum ingenioso homini et ei qui forum, qui
curiam, qui causas, qui rempublicam spectet, opus esse arbitror temporis
quantum sibi ii sumpserunt quos discentes vita defecit.
Reserva maior se vê em Antônio, ao confessar que quando toma um livro grego nada lhe pede para a sua eloqüência. Lê por gosto, nos lazeres. Se logra alguma coisa é como quando anda ao sol e fica tostado, embora sem intenção de tomar banho de sol: ut cum in sole ambulem, etiamsi ego ob aliud ambulem, fieri a satura tamen ut colorer.
Em outro passo anuncia ter resolvido filosofar como
o Neoptólemo de Ênio: um pouco só, que muito
desagrada: sic decrevi philosophari potius ut Neoptolemus apud
Ennium paucis, nam omnino haud placet.
Crasso afirma que a realidade é magna silva que os gregos já não podem compreender. Por isso a juventude, aprendendo, desaprende: rerum est silva magna quam graeci iam non tenerent; ob eamque causam iuventus nostra dedisceret paene discendo.
Falando de quem haja de ensinar a oratória, e dizendo que o latim e a natureza das coisas permitem assimilar a adiantada ciência grega, declara que este será homem erudito, que, quando existir, vencerá até os gregos: quando extiterint etiam graecis erunt anteponendi.
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