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Educação e Humanismo
Livro O formalismo quirício e a estipulação em Gaio
Vida: 1949

O formalismo quirício e a estipulação em Gaio – parte 1

 

O pretendente que ora vai expor sua discreta lição viveu momentos de ansiedade seletiva, entre os molti personaggi in cerca d'autore que lhe andaram em torno, sussurrando promessas ao ouvido.

Olhando o calendário, ele viu o tempo volteando as horas com uma pressa intolerável a quem tem prazo curto e dias racionadíssimos pela obrigação trivial.

Pensando no instrumental de pesquisa, ele corou da ousadia que é meter-se alguém na empresa de uma tese sobre direito romano, tão somente apoiado em alguns manuais, embora sabendo que, na especialidade, a caudal bibliográfica é amazônica, talvez oceânica, fluindo de um manancial extraordinário em freqüência e teor, nestes últimos cem anos.

Meditando na miséria nacional dos meios que pode achar um curioso da antigüidade clássica e sopesando a modéstia do disponível pessoal, ele esteve a imaginar a situação de um advogado de província, nos primeiros dias do sexto século, antes da compilação justiniana, apenas munido de alguns códices desparelhados, mas tendo notícia das centenas, dos milhares de leis e comentários, em que andaria disperso o direito de que cuidava.

Acabou escolhendo um tema difícil, com pressuposto de visadas abrangentes, claro exame panorâmico, força de síntese. Ora, os romanos jamais sintetizaram nem o sabiam fazer. Iam construindo o seu direito por justaposição, acumulando os casos, em obra de pedra insossa – ou de pedra em sosso, como dizia enganadamente o nosso bom Luís de Sousa. Não conheciam argamassa jurídica, eles os notabilíssimos canteiros de vias, pontes e aquedutos.

Dir-se-á que a romanística de hoje supriu a falha. Ainda não. Ela vive entregue à pesquisa especializada. É recente e abundante, mas tomara lhe sobrar tempo com que reajustar o vasto corpo do direito justiniano às verdadeiras medidas da fazenda original, que os alfaiates do grande codificador, mui à vontade, recortaram. Tomara tempo só para os emblemas tribonianos.

Entretanto, mesmo difícil, nosso tema adquiriu limite conveniente ao contraste, devido à referência estabelecida, com a estipulação em Gaio, cujo lugar buscamos entremostrar, na jurisprudência clássica, lugar dele e daquelas Instituições cheias da estima e preço que lhes granjeou a condição de salvado, no grande naufrágio do milênio jurídico.

Nossa lição pretende a que o direito quirício é formalista e ritual, por uma determinação histórica, fundada na psicologia do grupo, e por determinação contingente, a da oralidade jurídica, e tomou, para referência especial, a estipulação de Gaio.

Agora, já que temos alegadas nossas alegações, peçamos, in iure, ao pretor, uma fórmula nova para o momento apud iudicem: Aequitas iudex esto. si paret auctorem probabiliter de ea re disseruisse absolvito. Si non paret condemnato.

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1. O tempo em que floresceu Gaio foi o terceiro quartel do século dois post Christum. Suas Instituições estão localisadas por volta do ano 161 e os romanistas verificaram que ainda escrevia depois de 178. Teria nascido no reinado de Úlpio Nerva Trajano, 98/117, ou no de Tito Élio Adriano, 117/138, escrevendo sob Tito Élio Adriano Antonino Pio e Marco Aurélio Antonino, portanto entre 138 e 180. É uma época de imperadores sábios e humanos, tonalizada de esplendor jurídico.

A linha temporal permite situar Gaio entre Celso e Juliano, de um lado, e Papiniano, do outro. Públio Juvêncio CELSO Tito Aufídio Oeno Severiano é o nome todo de um, balanceado pelo nome todo do outro – Lúcio Otávio Cornélio Sálvio JULIANO Emiliano. Ambos floresceram na primeira metade do século. Juliano é corifeu sabiniano. Celso, proculiano, é Celso filho, com um pai que também foi mestre da mesma escola. No parecer de alguns, foram os dois maiores juristas que deu cada seita. Em tamanho de nome, sem dúvida, foram grandes. Estamos longe da simplicidade primitiva; contente com três vocábulos – prenome nome e cognome: Quinto Múcio Cévola ou Sérvio Sulpício Rufo.

O jurista que floresceu depois de Gaio, Emílio Papiniano, está em fim e passagem de século, mandado à morte por Caracala, em 212, por não haver querido justificar o fratricídio que vitimou Geta, sombra temida pelo gladiatório imperador que dormia com leões. Este Papiniano deveu mais ao caráter e valentia moral, o que é muito bem devido, o prestígio que desfrutou na devoção jurídica. Em companhia de Júlio Paulo e de Domício Ulpiano, ilumina ele o tempo dos Severos.

Ia arrefecendo o calor proselitista. Cessara a refrega escolar entre sabinianos e proculianos. Crescia a orientalização, crescia o contraste da expansão cristã, e Diocleciano entrou pela porta formal de um absolutismo que existia de fato, pondo selo à morte da chamada diarquia do Principado.

Fenece o esplendor jurídico. Papiniano, Paulo e Ulpiano, são os últimos clássicos.

Após dois séculos de vigor, três séculos de hibernia, de fermentação e deliquescência, até que se compilasse a codificação embalsamadora e gloriosa de Justiniano.

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2. Gaio é o último dos sabinianos. E um retardatário. Fala, a cada passo, em seus praeceptores e nos diversae scholae auctores, justamente num tempo em que Roma já não ouvia ecos de rebates e posições, entre os comandados de Masúrio Sabino e os de Semprônio Próculo. A dicotomia sabínio-proculiana fora mais de verbalismo que de doutrina. Produzira uma divergência pormenorista, insubstancial, e colorida numa fluida subtileza inútil.

Dizia, por exemplo, o sabiniano, que uma besta de carga era res mancipi, coisa de mancípio, desde o nascimento. Respondia o proculiano que só o era depois de amansada. Afirmava o sabiniano que a propriedade da coisa abandonada cessava no ato do abandono, re derelicta. O proculiano era de parecer que isto só acontecia na ocupação da coisa por alguém.

Doutrinava o sabiniano que a dação em pagamento, datio in solutum, extinguia a obrigação ipso iure, por direito. Achava o proculiano que a eficácia extintiva era por força de exceção, ope exceptionis.

As duas escolas não passaram de um partidarismo grupal, alimentado em simpatias pessoais, segundo o proselitismo das stationes, das estações ou pontos, desde os quais se ensinava publicamente o direito ou se dava consulta jurídica.

A divergência é historicamente assinalada como tendo avultado nos tempos de Labeão e Capitão, sob o regime de Augusto. São dois jurisconsultos igualmente famosos. Mas, se Caio Ateio Capitão é fundador da escola, o nome quem lhe deu foi Sabino. Se Marcos Antístio Labeão cria a outra, o batismo lhe veio de Próculo.

Marcos Antístio era filho de Labeão, também jurisconsulto, partidário de Pompeu e de Bruto. Em 42 a. C., após a derrota de Filipos, o pai Labeão cavou na tenda uma cova e suicidou-se. O filho Labeão, fiel à severidade paterna, recusou o consulado que Augusto lhe oferecera. Vivia seis meses no campo, escrevendo, e seis meses na cidade, ensinando. Nascido em 50 a. C., morreu no ano dez post Christum, legando à jurisprudência uma obra de quatrocentos livros, que o tempo consumiu.

Horácio fez ao nome uma referência pejorativa: Labeone insanior inter sanos dicatur (Sátiras. I.3.82). Os comentadores do poeta endereçam o golpe ao filho. Mas acontece que a sátira é do ano 36, quando Marcos tinha 14 anos. Cabe melhor ao pai, o que se matara, derrotado, na mesma batalha em que Horácio – também partidário de Bruto e seu tribuno militar – fugiu com muito pouca cerimônia, largando o escudo, confessa ele, desairosamente: et celerem fugam sensi, relicta non pene parmula. (Odes, II.7).

Ateio Capitão era mais flexível, politicamente, do que seu rival. Aceitou honrarias e o lugar de cônsul que o outro recusara. Morreu no ano 22 post Christum.

O epônimo da escola, porém, foi Masúrio Sabino, que não ocupou altos cargos mas teve o ius respondendi, em tempos de Tibério.

Este ius respondendi fora instituído por Augusto, com aquela prudência digna de elogio, que também manifestou em outras sabedorias de seu governo, e consistia num poder, avalizado pelo imperador, de opinar em matéria jurídica. O legisperito emitia um parecer cuja sentença ia respaldada na autoridade do príncipe, ex auctoritate principis.

Masúrio Sabino deixou três livros sobre o direito civil, que vogaram bem, tempo em fora, como provam os comentários ad Sabinum de Pompônio, Ulpiano e Paulo.

De que Próculo tenha sido influente é sinal o fato de a escola de Labeão chamar-se proculiana.

Ao longo de quase dois séculos, a historiografia registrou alguns nomes nos dois quadros. E, mais do que nomes, coisa pouca. São sabinianos Masúrio Sabino, Caio Cássio Longino, Célio Sabino, Javoleno Prisco, Sálvio Juliano. Em matéria de apelidação, Javoleno quer paridade com Juliano e Celso, pois seu nome todo é Caio Otávio Tídio Tossiano Javoleno Prisco. São proculianos Coceio Nerva, chamado Nerva pai, seguido de Nerva filho e mais: Próculo, Pégaso, Juvêncio Celso pai, Juvêncio Celso filho, Nerácio Prisco.

E outros de uma e outra parte.

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3. O ius respondendi destes consultores jurídicos do Estado, figuras do consistório, havia corado de vivo matiz o prestígio da jurisprudência. Era um prestígio que jamais lhe faltara, desde os tempos da sacralidade pontifícia, quando o direito andava recolhido aos penetrais, na frase de Lívio reconditum in penetralibus pontificum (9.46.5).

Então, quem tinha uma dúvida ou um caso, buscava um sacerdote que lhe explicasse como proceder. Cícero ainda afirmou que nenhum pontífice pode ser bom, que desconhece o direito civil: pontificem bonum neminem esse nisi qui ius civile cognoscit.

Por volta de 300 a. C., um escriba de Ápio Cláudio Cego, Cneio Flávio por nome, divulgou audazmente o técnico segredo, publicando um liber actionum – coleção de fórmulas, espécie de O secretário do advogado. Era o princípio da idade leiga. Cinqüenta anos mais tarde, abria escola jurídica e respondia em público nada menos do que um sumo pontífice. Seu nome, Tibério Coruncânio, foi conservado em glória porque assim fez e também porque identifica o primeiro homem de linhagem plebéia a conseguir as honras do supremo pontificado. Pontífices, áugures, cônsules, censores, todo o patriciado se enobrece com o oficio de consultor jurídico do povo, acautelando, opinando, patrocinando, pois é um ofício de cavere, respondere, agere.

O prudente, com tão conceituoso apelido, é um técnico e previne aparte com os segredinhos da misteriosa dieta, para que faça bem seu negócio: cavere; ilumina com um parecer abalisado a matéria de alguma lide: respondere; defende a lide perante o juiz, faz o advocatus, o patronus, o orator: agere.

A função é gratuita e prestigiosa. Rodeia o jurisconsulto aquela fama e aura em que o povo ateniense envolvia um artista. Ele é o príncipe da cidade, o princeps civitatis, na expressão de Cícero. Mui cedo, na manhã, àquela hora tão romana da salutatio, a fila de sua porta metrifica a extensão de sua glória profissional. Como em todo grupo humano, para alguns juristas de vocação, existem muitos por conveniência, profissionais da jurisprudência veicular, caminho e semeadura das ambições eleitorais. É uma porta feliz, que leva com mais facilidade ao comício, entre um povo que tem a devoção da palavra, ama o orator e fez da oralidade o rito de seu direito. Entra por ela, mui cedo, o homem representativo, sem alusão a Émerson - aquele homem síntese, que emerge do grupo sob as aparências de condensador de sonhos, de receptor de anseios populares. O ofício de jurista rende-lhe aquela extenuante glória da cortesia plebéia, que ele afina e aquece na mesura risonha, no cumprimento expressivo, na palavra automática.

Mas não nos desviemos. O saldo nobilitante vale bem o esquecimento de manobras das intenções pessoais e de manejos do patriciado, cioso dos privilégios.

O conceito da gratuidade venceu o tempo e chegou até a codificação. A sabedoria civil é uma santíssima coisa que ninguém há de desonrar e estimar por preço numário, diz Ulpiano: Est quidem res sanctissima civilis sapientia, quae pretio nummario non sit aestimanda nec deshonestanda. D. 50.13.1.5.

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4. O Principado alterou notavelmente a dieta jurídica, desaparecendo a lei comicial e o direito pretório. Na diarquia aparente estabelecida por Augusto, as fontes da lei estão no senatus-consulto – também amável à proposta imperial de epístola ou de oração - e nas constituições do príncipe – edito, rescrito, decreto, mandado.

Desenvolveu-se a cognição extraordinária: em lugar da escolha arbitral republicana, um juiz imposto, iudex datus, elemento da magistratura oficial.

A genialidade romana e a força tradicionalista salvaram o direito, asilado na jurisprudência, entre a frieza clínica da vontade popular inanimada e a prepotência volitiva do soberano.

A substância do arbítrio, no príncipe, vai ganhando as aparências da orientalização, desarmando-se, na marcha, a estrutura vazia de certas formas ainda romanas. Percebe-se o progresso da aceitação, através do exame semântico de duas traduções jurídicas do princípio da legitimidade – uma em Gaio, outra no Digesto.

A respeito da vontade do príncipe, Gaio escreveu nunca ter havido dúvida de que ela "faz as vezes da lei" – nec umquam dubitatum est quin id legis vicem optineat.

Note-se que estamos sendo infiéis, pois não disse isto da vontade, propriamente, mas da constitutio principis, isto é, do que ele, querendo legislar, possuído de consciência governativa, exara em decreto, edito ou epístola.

Vejamos agora o que está no Digesto 1.4.1: Quod principi placuit legis habet vigorem. O que agrada ao príncipe tem força de lei.

Talvez não seja grande o valor testimonial das duas expressões: o autor da segunda é um contemporâneo de Gaio, pois é Ulpiano. Mas a verdade é que ela parece mais harmonizada com seu clima, estando no Digesto. Aliás, o slogan sobre a vontade do príncipe, historicamente recursivo, é mais velho e mais novo do que o tempo de Gaio. Nas horas marasmadas de passiva modorra comum, adormecida a consciência coletiva, a forma ditatorial sempre encontra legitimistas que lhe componham toga e lhe harmonizem vozes, a jeito de melodia jurídica.

Preservou-se o direito graças à fidelidade zelosa de seus guardas, cujas respostas públicas, em substância, iam pesar nas sentenças dos magistrados. Elas foram arroladas por Gaio entre as fontes do direito: sententiae et opiniones eorum quibus permissum est Iura condere.

A medida adotada por Augusto valeu mesmo entre seus piores sucessores, ainda que exilassem – e assim fez Nero a Cássio Longino – ou enchessem a alma de tristeza e morte, como fez Tibério a Nerva pai, que se tomou de angústia e nojo por tantas baixezas e se deixou morrer de pura fome, apesar de sua boa integridade física, integro statu, corpore illaeso (Tácito. Annales. 6.26); ainda que matassem, como fez Caracala a Papiniano, que não lhe quis aprovar o fratricídio.

A jurisprudência republicana desenvolvera uma arte inteiramente vernácula, em que luziu mui cedo a prosa latina, cuja segurança primeiro se mostra nas letras jurídicas do que nas literárias. O exemplo está nos fragmentos das Doze Tábuas, cujo travejamento revela, desde então, a linha vigorosa e parca do idioma, numa sintaxe que já era a sintaxe da língua.

O catálogo desta jurisprudência pode abrir-se entre os duzentos anos anteriores a Cristo, a partir de Sexto Élio Peto, cognominado o Agudo – que isto quer dizer Catus – Sextus Aelius Paetus Catus. Seguem-se, no mesmo século, Marco Pórcio Catão, Marco Júnio Bruto, Mânio Manílio e Públio Múcio Cévola, o primeiro citado na dinastia juridica dos Cévolas.

Ao longo dos cem anos anteriores a Cristo, a lista continua assinalando nomes principais: Quinto Múcio Cévola, o Áugur, Quinto Múcio Cévola, o Pontífice, Caio Aquílio Galo, Sérvio Sulpício Rufo, Públio Aufídio Namusa, Públio Alfeno Varo.

Durante os séculos de Cristo primeiro, segundo e terceiro, a resenha é de aspecto mais familiar: Labeão, Capitão, Sabino, Cássio, Próculo, os Nervas, Pláucio, Urseio Feroz, Javoleno, Pédio, Nerácio (l.° século); Celso, Juliano, Pompônio, Albúrnio Valente, Terêncio Clemente, Cecílio Africano, Venuleio, Gaio, Meciano, Marcelo, Florentino, Cervídio Cévola (2.° século); Papiniano, Trifonino, Paulo, Ulpiano, Marciano, Magro, Modestino (3.º século).

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5. Seus nomes refulgem nas páginas da historiografia jurídica e na glória que lhes valeu a transfusão ocidental do direito romano.

A atividade do primeiro século a.C., viva, baseadora, foi modelando o direito. Tem posição segunda, porque a primeira posição é da assembléia legislativa popular e da magistratura republicana, com sua força criadora.

O trabalho dos dois séculos posteriores, preservando aquela substância longa e sabiamente condensada, melhor a foi iluminando, analisando-lhe o formalismo, penetrando-lhe a intimidade, numa teimosia de unir, de coordenar, de sistemar – até onde o consentia o pendor nativo – que em tudo merece da posteridade. São consultas, comentários ao edito, comentários ao direito civil; são digestos, monografias, enquirídios chamados instituições. Com paciência e devoção armazenam largamente a matéria prima do monumento Justiniano.

Os escribas legistas de 530 tiveram de menear dois mil livros, com mais de três milhões de linhas (versus / stikhoi). A codificação estava a seiscentos anos do início da idade clássica. Pode-se fazer uma idéia do que fora a fecundidade geral, fazendo entrar na conta a notícia de que estava quase completamente perdida, no tempo de Triboniano, a obra dos dois primeiros, no grupo dos seis séculos.

Louva-se àqueles juristas a linguagem pura e concisa, a unidade léxica, a especialidade terminológica - índices de madureza e domínio. Também se admira neles, em mérito não pequeno, o sentimento conservador, a honesta motivação interior de quem traçava a destinação da justiça, com os olhos na constância patrimonial de um passado que eles iam transmitindo ao futuro.

Casuísticos, miúdos, inabstrativos, não conheciam o vezo da generalização, que leva ao canonicismo em si, pelo gosto das construções filosóficas. Fugiam da originalidade ou não podiam buscá-la. Repetiam-se, equivaliam-se. Por isto, Savigny gaiamente os chamou de "quantidades fungíveis".

O dualismo escolar que os dividiu não passou de rivalidade esportiva ou acadêmica. Os buscadores de razões em vão buscaram, quando lhes tentaram caracterizar os dois bandos, imaginando encontros como de idealistas e naturalistas, analogistas e anomalistas, peripatéticos e estóicos.

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6. O nome de GAIO, em meio aos outros, é uma incógnita. É o tipo do ilustre desconhecido, com mais presença e fama do que seus contemporâneos e do que os juristas anteriores. É apenas GAIUS, num tempo em que alguém se chamava CAIUS OCTAVIUS TIDIUS TOSSIANUS IAVOLENUS PRISCUS ou LUCIUS OCTAVIUS CORNELIUS SALVIUS IAVOLENUS AEMILIANUS.

Floresceu no tempo suave dos Antoninos. Os romanistas fazem hipóteses como podem, no esforço de configurar alguém sob as quatro letras de tão rápido apelido: Gaio.

Acham que deve ter nascido e vivido em alguma província helenística, não em Roma. Não teve ius respondendi. É absolutamente ignorado aos juristas seus contemporâneos. Revela grecismos lingüísticos, freqüentes referências a coisas provinciais. Seu nome, simples prenome, foi talvez adotado ao receber cidadania.

Outro argumento em favor da hipótese é sua fé sabiniana, reiterada e forte, num sectarismo fora de moda, quando já não existiam as duas facções. Só mesmo quem vivesse longe de Roma.

Depois que o provincianizam, os romanistas então o fazem pacato, claro, elementar, didático, devotamente empenhado na ciência, anacronicamente excitado por ecos de uma batalha que, longe, em Roma, de há muito havia cessado.

Arangio-Ruiz vê dois estilos nas Instituições: um que é limpo, seu tanto antiquado, cheirando a começos da escola sabiniana; outro, que é descuidado e escuro.

Além disto, a obra denuncia o valor de pessoa muito experta em direito civil, muito informada de seus problemas, ao passo que as outras coisas de Gaio reproduzidas no Digesto são de valia nenhuma, se não são repetições das Institutas.

Com argumentos tais, o professor de Nápoles imagina o Gaio da era antonina como um desconhecido provinciano, que houvesse adotado e adaptado alguma obra elementar de GAIO Cássio Longino, publicando-a sob a responsabilidade de um simples prenome, conservado depois na edição de outras obras. Restaria descobrir se Cássio Longino alguma vez escreveu instituições.

Essa hipótese foi ventilada por Longinescu e por Huvelin.

As Instituições mostram breveza, esbeltez e elegância, que alguns acham de muita força para um só homem provinciano, da idade antonina. E acusam, por outro lado, sinais de sobremão, para além dos glossemas posclássicos.

Palavras, palavras! Ficaram perdidos aqueles séculos preciosos, em vasto e lento naufrágio de toda a sua messe abundante. A única obra inteira e quase íntegra, chegada até nós em forma quanto possível original, são estas GAI INSTITUTIONES. O mais é trigo da codificação que a prudência granjeou, desde campos dispersíssimos, após quase três séculos de hibernia. O Corpus i uris é uma vasta carga de salvados. Contém o que nos resta da idade de ouro, arca de seu pensamento jurídico. O Direito ocidental deve tudo à grande colheita, embora marcada, na sua massa, com o sinal da fábrica, o emblema triboniano, atingindo aquelas coisas muitas e máximas que por utilidade foram transformadas. Multa et maxima sunt quae propter utilitatem rerum transformata sunt. (Justiniano. Tanta, §10).

Fácil e claro, não admira que o livro de Gaio tenha rompido séculos, carregando para o alto o nome do autor. O homem, desconhecido pelos profissionais de seu tempo, em 426 terá a glória de ser incluído naquele tribunal de mortos que Teodósio criou, na Lei das Citas: Gaio, Papiniano, Ulpiano, Paulo e Modestino. Em 506, Alarico II, para a Hispania e a Aquitania, decretava a lei romana dos visigodos, Breviarium Alaricianum, em que se acha um resumo de Gaio, em companhia de sentenças de Paulo e respostas de Papiniano. Em 533, seu livro servirá de base ao que Justiniano fez editar com o mesmo nome. Não exatamente o mesmo, pois um se chama Gai Institutiones e o outro Domini nostri Iustiniani perpetuo Augusti Institutionum sive Elementorum compositorum per Tribonianum virum excelsum magistrum et ex Quaestore Sacri Palatii iurisque doctissimum et Theophilum virum magnificum iuris peritum et antecessorem huius almae urbis et Dorotheum virum magnificum quaestorium iuris peritum et antecessorem berytensium inclitae civitatis.

Depois da codificação, feitas outras Instituições, as de Gaio desapareceram. Andavam tão sem prestígio, em companhia das mais letras pagãs, que um dia, no século nono, querendo um frade transcrever umas epístolas de São Jerônimo, cujo fervor aquentasse a quietude claustral de seu convento, tomou um texto de Gaio, que raspou, e escreveu no lugar as cartas do eremita. De um códice pagão fez um palimpsesto. E o códice rescrito viveu um milênio, com São Jerônimo escondendo Gaio, até que o descobriu Bartoldo Jorge Niebuhr, em 1816, na livraria capitular de Verona. Por todo o tempo, através do Renascimento, o que se conhecia da obra eram excertos e sínteses, como no Breviário Alarício. Tratado quimicamente, o palimpsesto de Verona revelou as Instituições ao século dezenove, com um grande e satisfeito alarme de Savigny. Cobrando taxa unciária de um milênio, o tempo inutilizara a duodécima parte da obra, editada por Goeschen em 1820, depois em 1824, com melhorias decifratórias de Bluhme. Gai Institutionum Commentarii IV. E codice rescripto bibliothecae Veronensis a Friderico Bluhmio iterum collato secundum edidit Io. F. L. GOESCHEN etc. Berolini 1824.

As edições atuais tomaram como base o apógrafo ou edição transcriptícia de Studemund, publicado em 1874.

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7. O tratado gaiano consta de quatro comentários. No primeiro estuda as pessoas, ius quod ad personas pertinet; no segundo e terceiro estuda as coisas, ius quod ad res pertinet; no quarto estuda as ações, ius quod ad actiones pertinet.

No primeiro expõe a teoria das pessoas de direito seu e alheio: homens livres, servos, pessoas sob poder, sob mão, sob mancípio, sob tutela, sob curadoria. No segundo trata do patrimônio, sua aquisição e alienação, de herança, legado, fideicomisso. No terceiro, acabada a herança, trata das obrigações – de contrato e de delito. As obrigações de contrato abrangem: obrigação nascida de coisa, de palavra oral, de palavra escrita, de consenso. As obrigações de delito são por furto, roubo, dano.

No quarto comentário, estuda as ações contra a coisa e contra a pessoa, ações da lei, fórmulas, exceções, interditos.

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8. Temos chamado de Instituições o que entre nós costumam chamar Institutas, como os francêses – Institutes; mas os espanhóis dizem Instituciones e os italianos, Istituzioni. O velho Morais define "instituta" como sendo "livro elementar de direito romano, mandado compor para a escola de Direito por Justiniano imperador". Mas acima, de instituições, ele dissera que é "livro didático, regras, preceitos". Escrevendo Instituições, mais não fazemos do que tomar o latim Institutiones, nome onde se contém o sentido de educação - actus docendi, eruditio. Além dos responsa, das quaestiones, dos digesta, dos commentarii, a atividade do jurista se compendiava em lições à cupida legum iuventus de que fala Justiniano, transformado o jurisperito em explicador a discípulos, em mestre-escola, em antecéssor, como diz ainda Justiniano. Estas lições eram as institutiones, talvez publicadas num enquirídio ou manual, como o de Gaio.

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9. A claridade sintética e a limpa sistemação da obra gaiana fez supor que o trabalho dele fora de cooperação adicional, complementando esforço precedente, possível resultado de vagarosa decantação. Parece difícil de admitir que tenha criado, originalmente, o acabado e harmonioso monumento. Era muito para um, no seu tempo.

A operação física de centrifugar aparta os elementos de um todo, segundo as densidades, como por exemplo as células e o sérum de suspensão, no sangue.

É uma ação abstrativa de efeitos semelhantes ao que produz a operação racional sobre as notas de um conceito. A filosofia grega, luminosa, encaminhou a inteligência do homem no exercício de tal atividade, a que foi teimosamente alérgico o temperamento romano. Por isso não criou uma filosofia do direito, embora criasse o direito genialmente, sob forma concreta, substancial, quase corpórea. Fala-se em estoicismo ou academismo, no direito, mas cumpre não confundir o que pertence à classificação da intelectualidade romana, com o que caiba propriamente ao jurista romano, Cícero, grande amador da filosofia, não foi jurista, foi orador.

Se houvesse aplicado a filosofia ao direito, o romano teria praticado a centrifugação abstrativa, que não praticou. Teria generalizado e nos teria fornecido um sistema. Entretanto, foi tão avesso a este caminho que alguns romanistas querem ver interpolação triboniana em toda definição ou teoria do Corpus.

A análise racional, em dois casos consubstanciais porém matizados, pode ver a substância comum, por baixo do matiz. Mas o romano era incapaz de enxergar a redutibilidade, fascinado pela cor. Entre um spondeo e um promitto estipulados, por sob a diferença residual, pode ver-se a natureza do mesmo contrato. O romano, impedido pelo residual, pela sugestão de privilégio civil da sponsio, via contratos.

Dizemos o direito, genericamente, pelo mesmo processo mental por que dizemos o brasileiro, em vez de os brasileiros. O romano, dizendo ius, tinha em mente um direito, mas deste um que se opõe a dois. Não sintetizava nem abrangia. Justapunha e contava. Por isso, iura são os direitos, mas num plural de intenção quantitativa, em direção numérica.

Para ele, seria transcendência nebulosa a noção de direito, possível hoje, sob forma centrifugada - harmonia e síntese de notas pairando na matéria da realidade, como os glóbulos; no sérum ou como o espírito sobre o caos. Podemos conhecer um direito e o direito, uma lei e a lei. O romano conhecia um direito, dois direitos. Daí, nos tratados, a dominância expressiva dos plurais iura leges obligationes.

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10. Até nas lições de generalização que a vida ministra, o romano buscou a individuação concreta, levado pelo mesmo estado de necessidade por que primeiro simbolizou os deuses mediante coisas materiais, hominizando-os depois, antropomorficamente, sob a influência helênica.

Temos exemplo jurídico desta carência do concreto, numa criação da fórmula pretória.

Não se compreenderia uma ação que não estivesse prevista numa fórmula. E como tudo havia de caber em fórmulas, a cada direito correspondia a sua. Durante séculos foram monopólio pontifício, arma de prestígio da classe, até que se fizeram título de glória para aquele escriba Cneio Flávio, quando as divulgou.

Uma inserção formular constituía novidade grave, comoção da rotina capaz de imortalizar um homem, como a C. Aquílio Galo, familiar de Cícero, que tem o nome ligado à estipulação aquiliana. Antes dele, Ebúcio conquistara sua perenidade, introduzindo o uso da fórmula escrita no direito civil.

Preexistindo à ação, vivia a fórmula em modelos que bastava adaptar ao caso. Eram como estes espelhos de procurações, petições e sacramentos quejandos, honra e glória de escrivães, tormento de neófitos, império ou empíreo da revessa língua tabelioa.

A moderna capacidade abstrativa engendrou nelas o mistério da linha em branco, a linha pontilhada, lacuna que preencher. Ora, isso era mui difícil para um quirite. Para ele, o drama esquematizado havia de ter configuração integral. Então a sabedoria criou dois notáveis personagens, sinônimos da linha em branco, mais ou menos equivalente a Fulano e Sicrano, heróis nossos da alusão de endereço potencial. A figura do autor é AULO AGÉRIO e a figura do réu é NUMERIO NEGIDIO. Eis um exemplo:

Si paret Numerium Negidium Aulo Agerio sestertium decem milia dare oportere, iudex Numerium Negidium Aulo Agerio sestertium decem milia condemnato. Si non paret, absolvito.

Os prenomes Aulus e Numerius são da pequena lista de prenomes romanos. Mas não são vulgares os nomes Agerius e Negidius, inteiramente fictício o último.

É de supor que a escolha se tenha inspirado ou num simbolismo ritual ou na malícia da praça, ligado o nome de Agério, autor ou querelante, à idéia de ágere, demandar; e ligado o nome de Negídio, réu ou querelado, à idéia de negare. Também os prenomes têm sugestão, pois Aulus lembra aula, panela ou pote, e Numerius lembra número. Aulus, recordando aula, recorda tesouro guardado, como na aulula ou panela de ouro, da comédia Aulularia, de Plauto.

Aulo Agério é Agério e é Aulo. Como Agério, é autor, actor, e age, demanda, querela, reclama. Corno Aulo, é um paneleiro preocupado com sua aula auri, esforçado em replenar sua arca numária.

Numério Negídio é Negídio e é Numério. Como Negídio, nega e, sendo Numério, quer evitar que lhe diminuam o cabedal.

Assim podia ser a interpretação popular. Mas a ciência etimológica é "negidia" com relação a numerus e Numerius, prenome em que se vê a transformação de Numasios, forma ligada a Numa.

Além de Agério e Negídio, havia os Caios, Tícios, Mévios, Semprônios, Seios, com que topa sempre o leitor, no formularismo dos vários atos jurídicos.

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11. Acostumada a crítica às variadas amostras da codificação justiniana, de que se desprende um grande efeito parcelar, fracionário, com muitas sugestões de primarice, é natural que experimente sensação de maravilha, ao contemplar a obra gaiana, ordenada e elegante, único espelho em que se reflete a corpo inteiro a difícil expressão e figura do direito clássico.

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12. Atraído pelo formalismo de que se revestia o negócio jurídico entre os romanos, procuramos nuclear nossas observações em torno de um deles – a estipulação – conforme se descreve no Códice Veronês. Mais vulgar, mais simples, menos formal do que os outros, é também o mais importante. É o tipo do contrato moderno, menos a obrigatoriedade coloquial da oralidade.

Na medida em que cresce, em Roma e para Roma, a importância do peregrino, a estipulação, stipulatio, concorre primeiro com a esponsão, sponsio, que depois suplanta. Entrou um dia pela porta do direito gentio, ius gentium; venceu e dominou, alimentada por aquela força de necessidade e economia por que o mais simples acaba superando.

A evolução foi lenta, a partir daquela hora distante em que a vontade se escondia no rito sacramental, por detrás de palavras e gestos de eficácia mágica.

A família vivia dentro de uma área fechada de produção e consumo. O câmbio extragentilicio era fraco. A primeira forma de crédito deve ter sido uma venda fiduciária, talvez de um escravo, talvez de um filho, talvez de si mesmo. Vendido, ficava preso ao credor, nexus, pagando em trabalho o preço, até que pudesse voltar ao estado primitivo, em uma cerimônia de retrovenda.

Depois começou a divulgar-se um negócio mais humano e mais praticável, em que um terceiro garante o tomador, mediante solene e sagrada promessa, cuja natureza vem acusada na do verbo religioso spondere, libar. Spondere guardou sempre lembrança de sua antiga importância, mais forte do que promittere, pois contém ênfase da promessa. É prometer, mas ritualmente, quodam solemni ritu promittere, é prometer com mais vigor, maiorem se obligandi vim significat quam promittere.

Do garantir por segundo a ser segundo e garantir por si era natural a passagem, com o natural progresso das transações.

Há romanistas que vêem a origem do direito das obrigações no costume da entrega expiatória, a noxae deditio do lesador ao lesado.

O campo histórico, mal demarcado, nevoento, permite suposições. Noxae deditio, nexum, sponsio, obligatio, lá se perdem, figuras confusamente entrevistas, mais adivinhadas do que entrevistas.

Fosse automancipação ou fosse autopignoração, a verdade é que o nexo deve ter criado situações dramáticas, ao longo do IV século a. C., entre a plebe devedora e o patriciado credor. Insolvência e rigor, mau estar e maus tratos, situação incomportável, conforme o quadro está em Lívio, até que a lei petélia , de 326 a. C., permitisse transformar-se o regime das obrigações, pela introdução da resposta patrimonial, antes da resposta corporal, do devedor: bona debitoris non corpus obnoxium esse.

Daí por diante floresceu a estipulação. Spondeo e promitto vão adquirindo valor prático da mesma densidade, apenas separados os verbos por uma linha formal de nobreza e privilégio: spondeo é verbo civil de que não usa o peregrino.

A estipulação floresceu. Com sua estirpe comercialmente gentia, o romano levou-a aos quatro cantos do Império. Ela venceu o tempo, transpôs evoluções e incorporou-se ao vocabulário ocidental, com o sentido de ajuste, contrato, cláusula.

O bom Morais, depois de nos apresentar a figura romana, diz que estipulação, entre nós, é promessa de palavra, em conseqüência de proposta ou pedimento. Como se vê, o conceito ainda está preso ao conceito antigo.

Os dicionários de hoje dirão como o Larousse: clause, convention énoncée dans un contrat. Ou como Webster: act of stipulating; a contracting of agreeing, or that which is stipulated, or agreed upon; covenant; contract; also, any article, item or condition, in an agreement; as, stipulation to furnish troops.

Para o romano, era um contrato de pergunta e resposta, formal e estreito. Define um dicionário latino: Stipulatio est contractus qui fit per interrogationem unius et alterius responsionem, ex quibus paritur obligatio.

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13. A origem de sua instituição é tão escura como é discutida a imagem semântica, o valor de termo que motivou o batismo - stipulatio.

E fácil de supor que o nome lhe veio de algum ato simbólico. Isto é proposição que está pedindo o ritualismo de outrora. Qual fosse ele, porém, não sabem os historiadores, nem os juristas, nem os etimólogos.

O estudo lingüístico aproxima, cognaticiamente, os vocábulos da família "stip", mas não resolve a passagem semântica. Achou-se o corpo. Da alma não foi possível descobrir o caminho.

Stipulatio é um correlativo etimológico de stipulari, de stipula, de stips, de stipes, de stipare, de stipendium. No mapa indo-europeu, stipulatio tem parentes, v. g ., no alemão steif e no inglês stiff – rijo, firme.

- Stipare significa apertar comprimir condensar.

- Stips stipis é moedinha, óbulo, moeda cunhada - nummus signatus – o que lembra stipare. Lembra também stipendium – estipêndio soldo tributo – haplologia de stipi-pendium, em que o segundo elemento representa pendere, pesar, como no tempo do aes grave, não amoedado, em que se pesava o metal do pagamento.

- Stips stipitis é o estipe estípite caule espique tronco da planta.

- Stipula é o que os botânicos chamam de estípula. É colmo cana haste palha. Nome de matéria fraca e leve. Por isto foi misturado com a imagem da inconsistência: flamma de stipula é fogo de palha. Traduzindo Jó, São Jerônimo empregou stipula e folium, numa antítese entre o vigor e a debilidade: contra folium quod vento rapitur ostendis potentiam tuam et stipulam siccam perseq ueris (Jó. 13.25).

- Stipulari é propor determinadas condições de um contrato, certis verbis interrogare vel rogare aliquem an velit quippiam facere aut dare.

- Stipulatio, em outra definição (Digesto 45.1.5), é um concebimento de palavras por que o interrogado responde que dará ou fará o que lhe perguntam: verborum conceptio quibus is qui interrogatur daturum facturumve se quod interrogatus est responderit.

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14. Pensando no sentido de stipare, stips, stipes, a imaginação semântica percebe uma nota comum, que é a idéia de firme, contida na raiz representada por stip -. Assim, a moeda cunhada, stips, lembra o ato de consolidar, estipar, o metal fundido; nas plantas frágeis, o estípite lembra a parte mais forte.

A idéia firme, parece, está contida na palavra stipulari e seu derivado stipulatio.

Discutindo as hipóteses conhecidas, o DEL [ Dictionnaire Étymologique du Latin] de Ernout-Meillet conclui: En somme rien n'empêche absolument d'expliquer stipulor par je dresse, j'affermis.

Varrão e Festo ligaram stipulari a stips, moeda. Para eles, stipulari é prometer dinheiro: cum spondetur pecunia, quod stipulari dicitur.

Paulo, repetido por Justiniano, derivou stipulatio de um suposto adjetivo stipulus, cujo sentido seria - firme. Hoc nomine indo utitur quia stipulum apud veteres firmum appellabatur, forte a stipite descendens. (Instituições. 3.15).

Acontece, porém, dizem os latinistas, que o adjetivo stipulus não tem comprovação de existência, forjado talvez para explicar stipulatio.

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15. Entretanto, a mais divulgada e imaginosa teoria sobre a origem do verbo stipulari é a de Isidoro, o santo bispo hispalense (560/636). No seu tratado das origens ou etimologias, ele declara: Veteres enim, quando sibi aliquid promittebant, stipulam tenentes frangebant, quam iterum iungentes sponsiones suas agnoscebant: com efeito os antigos, quando se prometiam alguma coisa, segurando um graveto, aí o quebravam; depois, rejungindo as partes, comprovavam seus combinados.

Uma vantagem, pelo menos, aqui está: a visualização ritual, de que precisávamos. A vontade transfundida em gesto que lhe dá consistência tranqüilizadora, ponto de partida para reivindicação posterior. Isidoro de Sevilha apresenta-nos o homem antigo procedendo de jeito que contenta a verossimilhança: quebra uma estípula ou graveto, em fragmentos documentais. Para a sua etimologia, pois, estipular vem de estípula. O achado é pitoresco, dramatizável, satisfazendo plenamente nossa compreensão teatral. A explicação tem sido reproduzida por dicionaristas e também por romanistas.

Girard opõe-lhe restrições. Meillet, mestre de mestres, não lhe dá atenção e até se louva nas restrições de Girard. Empertiga-se contra seu formalismo rústico um outro formalismo - o formalismo intelectualizante: não pareceria bem ter nascido de origem assim a tão abstrata estipulação.

Mas o que falta à teoria do bispo hispalense é companhia de autoridades. Veio tarde, à hora da decadência. Onde teria ele obtido uma informação que, por exemplo, Varrão não conhece? Lembremo-nos, porém, do grande naufrágio, muitas vezes sem rastro, da massa de produção intelectual da antigüidade.

A explicação isidoriana tem aparência morfológica e psicológica. Cativa nossa imaginação, nossa fome de racional, eternamente excitada de porquês.

A estipulação a graveto acorda-se à idéia de um estado primitivo e rude. (Ressalve-se que primitivo é palavra aqui empregada segundo uma licença por que chamamos primitivo um homem que tem milênios de evolução).

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16. No que dizemos não vai defesa à declaração etimológica, porém sim à verossimilhança, de que é rica a suposição de um estipular a graveto.

A tese etimológica do Hispalense tem contra si o argumento de omissão. Não há notícia dela nos autores romanos. Os soldados da compilação que o grande Triboniano comandou, por autoridade de Justiniano, é de presumir que a não encontraram nos milhões de linhas que percorreram, em milhares do livros. Ou, se deram com ela, não lhe deram fé, ou porque seria em afirmacão de modesto penhor, ou porque a idéia de firmeza contratual dominava os legistas, subjugados pela derivação de Paulo, que Justiniano consagrou.

Recorde-se que o jurisconsulto romano era comumente apaixonado pela etimologia. Palavra de utilidade jurídica assim como stipulatio não podia escapar à pesquisa da origem, entre quem as vivia buscando. Fazendo cabedal da ciência de Labeão, por exemplo, diz-se que ele foi gênio multiforme, sabedor de gramática e dialética, analogista chefe, especialmente inclinado às etimologias, com que muito ilustrou suas doutrinas. O que Labeão representou de verdade, os outros juristas quereriam ser, empregando os mesmos recursos, deitando-se às mesmas preferências – inclusive etimologia. Era de escapar um vocábulo de todo dia e toda hora, como stipulatio? Ou Paulo repetiu doutrina corrente, veiculando um étimo pacífico, ou os compiladores se descartaram de alguma outra, ou ... enfim, para que mais suposições?

Uma das provas do muito uso é a extensão do sentido. Chegando esta a uma deslocação polar, então a prova é forte. Estipular é declarar condições "perguntando". Estipulador é o reus stipulandi, é o interrogador, o qui contractum initurus interrogat; assim como o outro é o promissor, o reus promittendi, o qui respondet. Estipulação é quase o mesmo que palavras do interrogante, assim como sponsio é palavras do respondente. Ora, no correr dos tempos, stipulari chegou a tomar o sentido de promittere. Assim está empregado em Paulo, assim usado por Ulpiano; no primeiro: si certo loco condicturum se quis stipulatus sit (Digesto. 13.4.7); no segundo: si decem aut Stichum stipulatus solvam quinque. (12.6.26).

Esta semantização polar revela duas coisas: o muito uso das palavras estipular e estipulação e, segundo – o que convém ao tema de nosso trabalho – a evanescência do formalismo, da sacralidade vocabular, segundo a marcha em que andou o direito romano, do sinal da vontade para a vontade: da aparência para a intenção.

Foi mudança grande esta: tomar liberdade de destroçar palavra que nem de brinquedo se podia usar, pois dita de brinquedo fazia nascer a obrigação, à pura força de sua magia. Stipulationes omnes fere ipso iure sic subsistere intelligebantur ut ad obligationem, etiam iocandi animo interpositae, ipso iure prodessent. O vínculo não estava em alguma anuência contratual, mas num consentimento misterioso, um vigor divino que os vocábulos tinham, segundo se guardava o rito, que gera efeito, mesmo contra a intenção da parte. Nesse tempo, o ius era uma fórmula religiosa com força de lei. Ainda não se havia dividido em ius e fas ou, mesmo dividido, vinha tingido de fas. Ius é o que humanamente se permite, como fas o que divinamente se permite. Ad religionem fas, ad homines iura pertinent. Na medida em que a sintaxe do religioso foi sendo abrangida pelo fas, também o ius se foi laicizando. Mas seus cognatos iurare e iusiurandum jamais descoraram.

O ius desprendeu-se devagar, progredindo no sentido terrestre, esvaziando-se etimologicamente, enquanto a vocação realista do romano, agarrado à fórmula, ia cristalizando genialmente o precioso legado.

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17. A estipulação era de procedência gentia, profana. Alastrou-se com o ius gentium, aprovada em sua simplicidade.

A genuína estipulação romana é asponsio, colóquio ritual e solene, conjugação do verbo spondere e só ele: centum mihi dari spondes? - spondeo.

Varrão ligou a origem de spondere a sponte. Spondere a sponte, nam id valet et a voluntate. Mas o romano já desconfiava do cognatismo entre spondere e o grego spéndo quamvis dicatur a graeca voce figurata esse, diz Gaio (3.93).

Spondere é prometer solenemente. Teve uso especial no casamento. Qui uxorem ducturus erat ab eo onde ducenda erat stipulabatur eam in matrimonium datum iri; qui ducturus erat itidem spondebat. (Sérvio Sulpício, ap. DEL, ErnoulMeillet). Era o contrato de casamento, sponsalia, entre a sponsa e o sponsus.

A sponsio era uma obligatio verbis, utroque loquente, numa pergunta e resposta, diversa da stipulatio gentia pela exclusividade verbal do seu direito quirício. Mas tal exclusividade tem origem numa reserva religiosa e não de soberba nacional.

Temos de partir de hora arcaica, uma hora pré-histórica do ius sacrum, momento social em que a Família e o Estado se acham dominados por uma superação religiosa. No âmbito gentilício avulta o pater, revestido de poderes divinos e humanos, zeloso dos mores que vão criando uma constelação de praxes éticas, cheias de fas e de fides, nebulosas para nós, em sua distância indocumentada. A atividade intrafamiliar vai abrindo-se, devagar, às relações interfamiliares, animando a civitas, cristalizando normas em que se condensa um ius entre sacro e civil, com seu objetivo humano e sua força cominatória de poderes supra-humamos. Aparece nos atos o formalismo hierático dos gestos simbólicos e a ênfase das palavras rituais. A lição vem mais dos deuses do que da experiência. O que se pretende é lícito, é direito, ou não é: fas est, ius est. A norma poderosa, entranhada de ameaças extraterrestres, ainda não se configurou em contornos definitivos, seguros, que o tempo lhe dará. Num orbe claramente confinado, de homens e deuses, ela vive num intermúndio nebular em que se encontram as vontades imortais e os anseios dos mortais. Temerosa, adivinhada por intérpretes, ela desce até os homens, para cada relação que eles procuram. O seu custódio universal é o pontífice, esta figura de eleição que compreende a linguagem dos deuses. Ele regula o calendário e os rituais do procedimento a que o homem deve cingir-se: proclama os dias fastos, em que os deuses permitem resolver questões jurídicas e determina a cerimônia legisacional. A transgressão é nefas, divinamente reprovada e a sanção é um piaculum, expiação religiosa, ou uma consecratio às divindades infernais. A reivindicação comum é um sacramentum, um depósito de garantia apostado entre as partes: a importância do iniustum se reverte em sacrifício.

E notável, entre os romanos, que a lei não lhes tenha surgido em bloco, num código, ou expressão abrangente inicial, por alguma revelação divina, como entre povos orientais. Seu direito não provém de uma denormação geral, colocada à porta de entrada da consciência coletiva. Não teve Mano, Sólon ou Moisés que de algum modo lhe recebesse tábuas de lei. Foi seu destino conformá-la devagar, na longa experiência aditiva da estratificação.

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18. Essa experiência primeiro se desenvolveu nas relações intrafamiliares, onde o pater é chefe, sacerdote e juiz. Como sacerdote, comunica-se com os deuses, rendendo-lhes as miúdas satisfações que sempre querem. Juiz e chefe, aplica o ius e rege a família, que tem sob poder, sob mão, sob mancipio – in potestate, in manu, in mancipio: os filhos, os clientes, os libertos e os servos; a mulher; o nexo ou adicto, o in loco servi – um devedor insolvente. Sua alçada vai até o direito de vida e morte, ius vitae et necis.

A religião enche com seu clima o ambiente doméstico. Dele nos pinta quadro célebre Fustel de Coulanges: sua casa é o que para nós é um templo: lar, paredes, portas, limiar, são deuses; deuses os limites, os antepassados, seu túmulo e altar. O dia é uma sucessão de atos religiosos – levantar, deitar, comer, sair. Com atos religiosos se assinalam as fases importantes da vida – nascimento, virilidade, morte. O chefe sacrifica em casa, na cúria, na gens, na tribo, participa no culto da cidade, dança ao ritmo da flauta, conduz carros de deuses, serve no lectistérnio aos divinos comensais, vive assombrado pelos seus mortos, que aplaca em muitos e complicados ritos. Em tudo se previne com augúrios e contra agouros, vira o rosto a um mau sinal, recita uma fórmula encantada, não pronuncia umas tantas palavras, grava em tabuinhas votos que deposita junto ao deus, treme se lhe contam que choveu sangue ou que um boi falou, readquirindo tranqüilidade após alguma cerimônia expiatória. Tem fórmulas contra incêndios, contra doenças e modos eficazes de recitar, cuspindo, por exemplo, de maneira diferente, vinte-e-sete vezes. Um agouro interrompe uma atividade iniciada - uma assembléia popular, uma deliberação do senado. É bravo na guerra, mas vai confiado no augúrio que lhe prometeu a vitória.

19. Esse romano foi criando o ius civile, desentranhando-o passo a passo, enfaixado em formalismos, da simbiose inicial, em que o divino mais o humano se misturam.

Coulanges também nos apresenta esse direito, na sua fase de mistura, resíduo de uma herança indo-européia. Não é ainda a consciência do justo e do injusto, mas o fruto pragmático de costumes religiosos. A terra consagrada pelo túmulo ancestral faz-se propriedade, o lar que passa de pai a filho é a herança da imposta tradição do culto familar. É assim que nasce o direito.

Os deuses comunicaram a lei aos homens, sob forma auspicial, gravada em livros sagrados, num estilo de arrestos breves, como um versículo de Moisés ou um esloca de Mano.

Assim como a religião era civil – quer dizer da cidade – assim o direito. O estado de cidade, civitas, são regalias e obrigações do civis perante os deuses e os outros cives da urbe. Ao peregrino, tais direitos não lhe cabem. Em tese, ele é um ser excomungado e sem defesa, pior situação do que de escravo, pois este participa da família, de seu culto.

Seu nome é hostis: sua condição é débil. Está longe da integração e tão próximo da adversidade, que o mesmo vocábulo se aplicou ao inimigo. Contra ele, o peregrino, seja eterna a garantia, rezam as Doze Tábuas: adversus hostem aeterna auctoritas esto.

O tempo e a utilidade intervirão em seu favor. Adquire proteção, fazendo-se cliente. Passará de hostis a hospes, desenvolverá o ius gentium e terá um pretor, a partir de 242 a. C.

O privilégio civil era impressionante e formal. O romano que o perdesse por capitis deminutio ficava desamparado e impedido, sem culto nem família. Coulanges lembra o exemplo de Régulo, dramatizado por Horácio, na ode 5 do livro 3. Prisioneiro de Cartago, servus hostium, fora a Roma levar uma proposta inimiga. Expôs sua embaixada e concitou o Senado contra Cartago, mas sob forma de conselho, não de sentença, pois não era mais senador. Mulher e filhos, conta Horácio, a ele correm, mas são repelidos, pois não tem mulher nem filhos: fertur pudicae coniugis osculum/parvosque natos, ut capitis minor/a se removisse.

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20. Eis o clima da sponsio, cujo fórmula sacra não podia ser profanada em boca de peregrino. Se até a simples presença do extra-gentilício turbava um rito sagrado, não seria imaginável que pudesse pronunciar palavras de uma fórmula religiosa, entre um povo que acreditava na magia vocabular.

Recitada fielmente, uma prece era capaz de mover um deus a deixar uma cidade inimiga. "Tu, ó grandíssimo que proteges essa cidade, oro-te, adoro-te, peço-te que deixes essa cidade, esse povo, esses templos, esses lugares sagrados. Afastando-te deles, vem a Roma, para minha casa e para os meus. Que nossa cidade, nossos templos, nossos lugares sagrados te sejam mais agradáveis e queridos. Toma-nos sob tua guarda. Se o fizeres, fundarei um templo em tua honra." (Ap. Coulanges)

Se caía a cidade, ficava provada a eficácia, pois o deus a tinha abandonado, fazendo-se quinta-coluna.

Religião e Direito haviam de nascer misturados, segundo o primitivo formalismo. As relações com a divindade romana têm a cor transacional das sociais. Teme-se ao deus, que se aplaca adulando e a quem se pede prometendo pagamento. E uma estipulação. Quando ele não atende, é sempre devido a uma contingência de imperfeição formal, no rito complexo e miúdo: uma atitude, um gesto, um pormenor da indumentária, a integridade vocabular, a vítima, a lenha do sacrifício, a perfeição dos atos e movimentos, o dia, a hora, os participantes, o lugar...

A crua impiedade provocava ruidoso castigo, segundo lhe coube a Cláudio Pulcro, na batalha naval de Drépano, em 249, durante a Primeira Guerra Púnica, ao ser derrotado por Adérbal, em punição de sua irreverência com os frangos sagrados. Não querendo estes comer, por ocasião da consulta auspicial, então Cláudio os fez jogar n'água, a fim de que ao menos bebessem: ut saltem biberent quoniam esse nollent.

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21. Na medida em que a Urbe vai romanizando a Itália e a Bacia Mediterrânea, o afluxo peregrino faz que a sponsio vá cedendo à stipulatio.

O particularismo do espírito municipal será subtituído por um conceito de nação bastante vizinho do moderno, concretizado na genial constância que criou um Império, ordenou um Mundo, gerou um Estado e implantou o Direito.

Entretanto, o mesmo particularismo perdera a Grécia, por não ter tido sabedoria internacional, capacidade de se impor e compreender, de dominar e respeitar, de adaptar e adaptar-se.

A corrupção, lei natural das coisas, desromanizará Roma. Seu Direito, porém, ficará impresso no mapa do império.

Sob o influxo do direito gentio e da helenização, com a involução do princípio de sacralidade, também ele se desformalizará, até certo limite, mas, substancialmente, resistirá a toda decadência, até mesmo à bizantinização, exibindo sua atlética estrutura na codificação justiniana. Venceu a influência helênica, a turbação oriental, firme no seu espírito prático, na sua vocação de realidade. Envolvia-se ainda nas complicadíssimas obrigações de uma ortodoxia infantil, na rudez de um Cincinato, num tempo em que, desde a área helenística, soprava sobre o mar o vento grego da abstração, espalhando o pólen da metafísica, sob a forma de imortalidade, alma, inteligência divina, energia íntima das coisas; em que os poetas, em vez do solene rito homérico, surgiam com imaginações novas de arte, e não de religião. Pitágoras conceituara um ser supremo, Anaxágoras, um deus inteligência, os sofistas agrediam velhos enganos, o homem duvidara das velhas leis. Crescia o livre exame e Aristóteles descobrira que a lei é a razão, enquanto os estóicos pregavam que o homem acha dentro de si o dever e a recompensa.

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22. A estrutura jurídica salvou-se da fecundação oriental pelo vigor de seu robusto formalismo, de etimologia religiosa. Foi prova não pequena resistir ao embate espiritual de Leste, embate que lhe esvaziou algumas articulações, mas não lhe abalou o arcabouço.

Roma helenizou-se em arte, asiatizou-se em religião, enfilosofou-se um pouco, socialmente, até o limite da alergia nacional. E seu direito, para além do que fora patrimônio comum, resistiu à subtileza helênica, apenas se matizando de algum colorido que sintonizava com a peculiaridade nativa, com a estóica natureza do campônio latino.

O embate foi grande e demorado, pois a influência helênica principia, através da Etrúria, no afeiçoamento rudimentar da primeira urbanização. O domínio da Magna Grécia – Tarento em 272, Siracusa em 212 – aumentou o contacto. Nasce a literatura com um tarentino, um campânio e um calabrês – Andronico, Névio e Ênio. Inespeculativo e inabstrato, o romano contenta-se com o ensino trivial – leitura e escrita – soletrando as Doze Tábuas. Entretanto, a vernaculidade com o servo e o liberto gregos ia enriquecendo a inteligência. Embora ainda não se exiba, o patrício tem pedagogos que lhe educam o filho e lhe transmitem as harmonias helênicas, para o gosto do uso íntimo.

A conquista do Oriente pôs a Grécia à disposição de Roma. No entanto, que diferença no povo de agora! Quantum mutatus ab illo! Era uma Grécia minada de asiaticismo, esvaída, irreconhecível.

Quando se repete a célebre observação de Horácio a respeito da Grécia vencida, escrevem Bloch e Carcopino, cumpre lembrar que aquilo era uma Grécia mancomunada com bárbaros, roída de influências orientais, enervada e lângüida, a pagar em desfibramento e falta de civismo a prosperidade carreada pelos diádocos.

Na ingestão maciça das vitórias orientais, também Roma se dissolveria no delíquio da crença, da família, da sobriedade. Não demorou o escândalo das Bacanais, festas dionisíacas introduzidas na cidade e na península por um adivinho grego de baixa estirpe. A novidade seduziu, com seus rituais noturnos e clandestinos, seus juramentos, falsificações e assassínios. Provocaram um senatusconsulto de coibição. Um inquérito afeiçoou os acontecimentos nas proporções de um vasto conluio. Em 186, presos ou mortos, foram mais de seis mil.

A forte reação acusava o estranho vigor da ação. A sociedade costuma, de si, guardar paciência com males de moda, pois sempre se espera que vão como vieram. Reage tardiamente, em geral. A doença, porém, não era uma só: era multiforme, tenaz, aliciante, como toda novidade. Parafraseando o evangelista João, pode afirmar-se que o espírito sopra onde quer – spiritus ubi vult spirat. O espírito helenístico minou a sociedade romana. Sabido que a imitação costuma escolher o pior do imitável, seja feita uma idéia do transtorno. O pitagorismo fora importado de Tarento. Atraía pela sua elevação, mas abalava a crença oficial, reduzindo a mitologia a símbolos da unidade suprema. Ênio, cantor de avitos feitos, entretanto compôs uma sátira religiosa à moda filosófica e traduziu um livro ímpio de Evêmero. Surgiram os cépticos, pois não. Cláudio Pulcro, Caio Flamínio, Cláudio Marcelo, figuras da guerra cartaginesa, revelaram seu nenhum respeito aos auspícios religiosos.

Depois de Pidna, em 168, o grande intercâmbio ajudou a divulgação do estoicismo, do neoacademismo e do epicurismo, carreada esnobisticamente pelo patriciado, enquanto na praça o veículo popular da infiltração era o teatro, prazenteiro e salso, no chiste grosso de Plauto, encenador de cortesãs, alcoviteiros, senhores libertinos e servos malandros.

A tradição e saudade da prisca virtus reagia ineficazmente. Em 161 foi proibido que houvesse na cidade filósofos e rétores. Em 154, Marco Pórcio Catão, o Censorino, octogenário e duro, exigiu do Senado que despachasse imediatamente, recambiando à origem, uma embaixada ateniense que fora a Roma pleitear interesses numários e se esquecera na cidade a ensinar filosofia. Eram eles o estóico Diógenes Babilônio, o peripatético de nome Critolau Faselita e o acadêmico chamado Carnéades Cireneu.

O rude italiota que, havia cinqüenta anos, trouxera Ênio para Roma, via em Sócrates um charlatão e em toda a espécie grega gente inútil e odiosa. Havia declarado, com muito de profeta, que Roma estaria perdida se alguma vez aquela raça lhe transferisse as suas letras.

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23. Cresceu, conformou-se, tomou estrutura e personalfdade o ius civile, desprendido lentamente do ius sacrum. Laicizou-se, envolvido em sentido terrestre, o velho termo religioso e jurídico de herança indo-européia. Até a roupagem gráfica mudou, acompanhando a evolução fônica, pois as formas primitivas eram ious e iousa, passadas a ius e iura. Além da desditongação, recebera aquela metabolia fonética apelidada rotacismo entre os lingüistas. Chamando ao r de letra canina – denominação de uso romano – diz Forcellini: Antiquissimi iousa dixerunt nec litteras geminabant nec utebantur littera canina r; postea abjecta diphthongo et sibilante littera in capinam versa iura dixerunt. Usando de fantasia, era o caso anunciar que o vocábulo minguara foneticamente para que significasse a míngua semântica de seu antigo valor religioso.

Afastou-se do altar e dos penetrais pontifícios, escolhendo morada entre os patrícios, depois da divulgação flaviana, no início do terceiro século ante Christum.

Mas não se desprendeu de seu robusto formalismo, apoiado na religião, nos mores, na fides, na sobriedade, na teimosa rotina, embora se diminuísse o conteúdo no esquecimento etimológico, na involução dessacralizante, na simples marcha temporal.

Simplificou-se, maleável, no encontro viário do ius gentium, profano e terrestre, descerimonioso e comum, útil e humilde. A partir das Doze Tábuas, o ius civile vai limitando sua peculiaridade às relações familiares, invadindo o ius gentium o campo das relações patrimoniais.

Em 242 a.C. foi criada a magistratura especial do estrangeiro, o pretor peregrino, qui inter peregrinos aut inter cives et peregrinos ius diceret. Junto a ele, em vez da solenidade per aes et libram, valia a simples transação; em vez da mancipatio ritual, a simples tradição; em vez da sponsio sacramental, a estipulação.

Havia de influir no romano esta lhaneza do direito gentio. Além disto, ao que parece, ele não passava de um direito romano aplicado a peregrinos ou de uma interpretação romana do direito estrangeiro.

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24. Cícero, transfundindo ao latim uma abstração helênica, faz coincidir o ius gentium com o ius naturale: E Gaio dirá, no fim da estrada clássica: Quod quisque populus ipse sibi ius constituit, id ipsius proprium est vocaturque ius civile, quasi ius proprium civitatis; quod vero naturalis ratio inter omnes homines constituit, id apud omnes populos peraeque custoditur vocaturque ius gentium, quasi quo iure omnes gentes utuntur.

Bonfante procura restringir o sentido de naturalis ratio em Gaio, alegando que não se invoca a razão humana, porém sim a lógica das coisas, vale dizer, das instituições jurídicas. Parece-nos demais subtil o discrime. Se Gaio fala em coisas constituídas entre todos os homens e observadas por igual entre todos os povos, a ratio que as constituiu é a razão. Reor e ratio, em latim, partem de um sentido primeiro que é contar e conta; mas desde a inseminação da inteligência romana pela filosofia e pela retórica, adquiriu o sentido que Bonfante lhe quer negar: é uma resposta fiel do grego logos, vocábulo também dos dois sentidos – conta e razão.

A nosso ver, o que se poderia alegar é que tais discriminações, puramente disquisitórias, de alcance prático subtil, porventura não entravam no arrazoado jurídico, na lição concreta e casuística da era clássica. A naturalis ratio de Gaio, sendo naturalis ratio num jurista, assinalaria já, como na era pós-clássica, efeitos do clima oriental.

No entretanto, como concluir, se naufragou a documentação?

O entender de Cícero tem cores de evidência, apenas se podendo objetar que não é jurídica e sim filosófica a sua teoria, sua, até onde não é dos gregos que lha ensinaram.

Foi depois das guerras púnicas, diz Horácio, que o romano, tardiamente, começou a interessar-se nas agudezas dos livros gregos: Serus enim graecis admovit acumina chartis et, post punica bella quietus... (Epístolas.2.1.161). Começou em tal época uma revolução intelectual que repercutiria no direito. Sua unidade teocrática ia cedendo à franca distinção do humano e do divino, criando-se a oposição que enxergou Sérvio, e depois Isidoro, nos conceitos de fas e ius. Escreveu o primeiro que o lícito pertence à religião e o direito aos homens – ad religionem fas, ad homines iura pertinent. O segundo repetiu o mesmo, com outras palavras: o licito é lei divina, o direito lei humana – fas lex divina, ius lex humana est.

Riccardo Orestano disserta sobre a matéria num trabalho intitulado Elemento divino ed elemento umano nel diritto di Roma, Milano, 1941. Aponta a infiltração racional a que já nos temos referido, cita o caso de Políbio afirmando que um Estado de seres racionais torna a religião inútil e o caso de Quinto Múcio Cévola, o Pontífice, a declarar que a religião é um engano conveniente ao povo. Fala da atmosfera de simples e vaga religiosidade que ia tomando lugar ao espírito de religião e dominando a era republicana em que se ergueu o edifício leigo do direito privado.

O patrício intelectualizado, que jamais tentara a metafísica da crença e dos mores, importou simplesmente o direito natural, o princípio de que a lei impera na consciência do homem, imbuindo-se da diferença aristotélica entre lei humana e lei da natureza – díkaion nomikón, díkaion physikón. Cícero dirá, apud Orestano: initium iuris a natura ductum; natura ius est quod non opinio genuit sed quaedam in natura vis insevit, ut religionem, pietatem, gratiam, vindicationem, observantiam, veritatem.

A mentalidade do jurista romano fugia da especulação. Mas daí a negar-lhe ponto de vista ideal, afirma o autor acima referido, vai um abismo que a doutrina moderna tem abusivamente transposto, dando por interpolados os textos que contêm substância filosófica.

25. Podia ser conceito já cristalizado na escola clássica o conceito de direito natural em Ulpiano, repetido por Justiniano (Instituições. 1. 2): ius naturale est quod natura omnia animalia docuit. Interpolação ou não, é difícil calcular-lhe a densidade abstrativa. É generalização a que o romano chegou após mil anos de marcha e em que somos levados, possivelmente, a ver mais substância do que tinha, após outros mil anos.

Para o romano, e seu estado de espírito positivo, o ius estava no costume, na lei, na fórmula, no pretor. É expressivo que ele figurasse o direito na pessoa do magistrado, chamando de ius o lugar em que se pedia justiça: ius dicitur locus in quo ius dicitur. (D.1.1.11). Na mesmice rudimentar das fórmulas e palavras apoiadas no efeito dítico da exibição motora ia condensando-se a lenta e cauta sabedoria da intuição, descobrindo a tranqüila vantagem do arranjo social, comparado com os efeitos da justiça pessoal, a ímpia satisfação da força reprovada pelos deuses. Provar o direito ante o céu e a terra é preocupação que domina a linha pré-histórica e a marcha histórica do processo romano: dias fastos e nefastos, sacramento legisacional, juramentos, atos comiciais como testamento e adrogação, a comum abundância de testemunhas em todo negócio...

Isto vinha da oralidade.

Do espírito de concreteza vinha o regime do caso a caso, a incapacidade comum de sintetizar e simplificar. Da sacralidade, do valor típico da forma, vinha o discriminar do que para a razão era identificável, como sponsio e stipulatio. Do caso a caso ainda, vinha a preocupação de exaurir, fingindo, para resolver, situações inúteis, por impossíveis ou logicamente nulas. Nulidade lógica não lhe chega, pois lhe cumpre nulidade expressa, num direito vincado de materialidade, em longos séculos de submissão ao mundo objetivo.

Por sua natureza agarrada, era impelido ao hábito de acervar, a este método estatístico hoje encontrável, sob forma de mania, entre o povo ianque, em quem se aponta, pela subtil dedutiva da ciência européia, a falta de conclusões, a debilidade teórica ao lado de gigantesca massa experimental.

Criando o Direito, não lhe criou o romano a ciência, isto é, aquela coisa mais do que o simples conhecimento pragmático. Ele criou o direito 'fazendo' e não 'especulando'. Sua falta de imaginação foi um elemento catalítico para o bom senso com que resolveu situações positivas, dominando empiricamente o mistério de relações injuntivamente apresentadas como de origem divina.

O ius nasceu da actio, do procedimento que a realidade social admitia. Direito e ação se regeneram: a ação legal é projeção do direito e o direito é projeção dela, numa linha correlativa em que avulta a actio, pois ela é quem revela o direito, puro sistema, entre os romanos, puro sistema de ações concedidas. Não se determinava que o autor podia usar de tal direito, mas que tal ação lhe era concedida. O código do direito privado não é um código de direitos, mas um código de ações, desde aquele celebrado liber actionum de Cneio Flávio. O postulado de que a cada direito corresponde uma ação pode ser interpretado, por um espírito de hoje, como significando: existe tal direito, logo deve estar armado de sua ação. Para o viés mental do romano, seria de inverter, dizendo: existe esta ação, logo deve existir o direito correspondente.

Nesta observação apenas se contém vontade de vincar a rotina pragmática, pois cumpre reconhecer o seu lugar ao ius sob forma estática, o direito como nível de consciência, gerado ciclicamente na evolução, batendo às portas do pretor, em busca de forma dinâmica, forma de ação em que se encarnava a sua realidade. Concretizemos a vaguice num exemplo. Na idade mágica do sacramentalismo, pronunciada a fórmula, feito o negócio, estava feito: cum nexum faciet mancipiumque, uti língua nuncupassit ita ius esto, rezavam as Doze Tábuas. Mas o tempo e a experiência, subindo o teor humano do ius, foram mostrando que não era direito manter valor e integridade para uma transação dolosa. Gerou-se a forma estática, replenando o nível de consciência até se determinar a forma dinâmica na exceptio doli, que celebrizou C. Aquílio Galo.

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26. Imaginemos que fosse o heleno, em lugar do romano, a criar o direito que temos. A hipótese rescende a paradoxo, caso admitamos que o racionalismo ateniense dissolveria em abstrações o monumento íntegro da criação romana. Mas instituiria a ciência do direito.

Sua inteligência, aquecida no contacto oriental, diluiu em análise o compêndio do mundo que lhe transmitira a sucessão ariana. Encarnou os deuses, hominizando-os em fantástica teoria de paixões e forças, que sua clara sensibilidade fingiu, na plástica de Fídias e de Homero.

A compreensão romana do mundo é primária, cheia de modéstia racional e pragmatismo.

A necessidade de compreender espevitou a agudeza helênica, no seu notável esforço de coordenar a sintaxe da matéria, dos deuses e dos seres humanos. Os deuses acabaram reduzidos a símbolos, avançando a perquirição no caminho da síntese final, que conclui na Vontade ou Inteligência suprema. Perscrutou-se nos fenômenos inapreensíveis à primeira vista, rastreou-se o princípio da harmonia natural, tentando surpreender a intimidade das relações secretas e a identidade substancial que anda sob a diversidade aparente.

A mesma necessidade de compreender fez que o romano concretizasse o mistério numa divindade. Em vez de despovoar, sobrepovoou seu Olimpo. William Thomson Kelvin, físico inglês do século dezenove, dizia-se incapaz de entender o que não pudesse armar em modelo mecânico. Nisto o romano se parecia com ele: só aceitava o inexplicado quando o armava sob a forma de um deus. Além daquele batalhão de deuses que recebeu da herança comum, transformado em exército pela importação cosmopolita, havia um deus de segunda linha para cada mistério ou maravilhazinha. O nome era um rótulo que amansava o prurido especulativo. O gosto da ordem ficava satisfeito; contentava-se bem o formalismo; e a dinâmica do divino escusava elucidações racionais.

A religião era severa, de rudeza campônia, primeiro sem templos, depois sem faustos, até o dia em que lhe veio a grandeza monumental, importada de leste. Faltava-lhe a vocação da forma e a sensualidade estética dos helenos. Uma pedra, uma lança, bastavam a concretizar a presença de Jove ou de Marte, índices da força escura que regia o mundo. Sobravam-lhe, porém, o grave senso da ordem, a pesada honestidade, a temperada vontade que ia amoldar a terra em normas de morfologia romana.

Santo Agostinho, depois de Varrão, fez larga resenha de deuses que talvez mal valessem um lugar entre os capite censi, abaixo das cinco classes tulianas. Mas a função deles interessa ao que vimos dizendo: preenchiam, na imaginação romana, o lugar da explicação lógica para as ignorâncias fundamentais. Fenômenos do nascer, crescer, nutrir-se, andar, dormir, falar, etc., cada um tinha seu deus: Sentinus dá o sentimento, Posverta protege o nascimento, Ops ajuda o recém-nascido, Vaticanus abre a boca para o alimento, Edusa preside à nutrição. Abeona e Adeona assistem a quem vai ou a quem vem. Numéria ensina a contar, Camena, a cantar, Potina, a beber, Cunina, a dormir... etc. Germinar, florescer, granar, madurar, ceifar... são coisas que dependem de Sator. Seia, Segecia, Flora, Lacturcia, Matura, Tutelina...

Não admira que Varrão tenha noticiado mais de trinta mil deuses no panteão e que Petrônio gracejasse, declarando ser mais fácil encontrar um deus do que um homem: facilius possis deum quam hominem invenire.  

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27. Esse o antigo mundo romano que o sol de leste teve de iluminar intensamente, a fim de lhe ensanchar a rasteirice do céu, a estreiteza dos horizontes e lhe traspassar com um pouco de luz a opacidade atmosférica. Num mundo em que as noções não podem ser translúcidas nem subtis, em que o limiar de sensibilidade é inferior, cumpre-lhe visibilidade forte, encorpamento, consubstância grossa, formalismo. Assim tinha de ser no Direito.

Mas da influência que o pensamento grego teria exercido no pensamento jurídico de Roma falam discordemente os romanistas.

A opinião dominante é que os juristas clássicos, bons causuístas, foram impropensos à abstração, inferiores na pura elaboração científica.

A conclusão é pacífica, vista sob este enunciado. Mas até onde haveria influído o grego na inferioridade, melhorando-a? A questão muito convém a nosso tema, pois a razão foi letal ao formalismo, entrado em declínio do momento em que a vontade começou a predominar, na lenta destruição da eficiência mágica do rito.

Bonfante apresenta duas posições extremas como a de Perozzi, que nega abstração à jurisprudência clássica, e a de Sokolowski, diametral, pois admite que ela meneou conceitos filosóficos, foi íntima das doutrinas subtis, em nada lhe repugnando abstrações. Perozzi vê reflexo helênico pós-clássico e sinal de interpolação em todo lugar, no Corpus, onde surge definição ou teoria. Sokolowski vê no Digesto um mau espelho, imperialmente reduzido, e de plano, a um vasto repertório de casos, agravado o mal pela decadência dos tempos.

Julgando exagerada uma e outra posição, Bonfante quer uma linha média: a jurisprudência clássica não foi imune ao pensamento helênico: este a libertou do espírito tradicionalista, mas as concepões especificas da filosofia apenas lhe serviram de adorno, enfeitando, mais do que influindo nas decisões.

Parece-nos que a filosofia helênica exerceu uma ação de presença, atuando no direito segundo o limite em que atuou sobre o intelectual romano, polindo-lhe o espírito, amaciando-lhe a concreta rudeza, iniciando-lhe o amor da cogitação não pragmática, sublimando-lhe um ócio que irritava Catão.

Entretanto, quem ler os tratados de Cícero terá vontade não pequena de avançar até o ponto de vista de Sokolowski. Eles são um prospecto vivo da atitude romana frente ao helenismo. O De oratore, por exemplo, é obra tomada de grande familiaridade com a retórica e a filosofia. São diálogos colocados no ano de 91 a.C. e em que figuram principalmente dois grandes mestres da palavra, Lúcio Licínio Crasso e Marco Antônio, avô do conhecido triúnviro. Ressumbra de tudo uma viva afirmação de romanidade, convencida de seu melhor destino, em orgulhosa exaltação do orador, aquele composto romano de tribuno, advogado e jurista.

De entre as mesuras admirativas à sabedoria ateniense, escorre um fio despectivo de atitude suficientista, em que se percebe a antítese de duas vocações históricas, pragmatismo e contemplação, vista esta como arte verbosa de infinita dialética epistemológica, ao passo que, no romano, a palavra é ação. A argúcia empenhada pelo grego na conquista do conhecimento, empregou o romano em deslindar a engenharia de seu direito. A inteligência que analisa o mundo, responde a percuciência que concerta relações de utilidade social.

No platônico recesso de Túsculo, durante um feriado romano, conversam as grandes figuras que Cícero lá reuniu: Crasso, hospedeiro, Antônio, Múcio Cévola, Sulpício, Cota, Cátulo e seu mano Júlio César Estrabão. O grego, para todos, é uma segunda língua. Têm seu estágio de leste, sua passagem por Atenas, sua matrícula retórica. Admiram o helenismo, cujo esplendor conhecem, mas raciocinam com a maioridade orgulhosa de quem tem outra missão.

A certa altura, Crasso, buscando assinalar a filosofia mais útil ao orador, após descartar-se dos estóicos – para quem o não sábio é escravo, ladrão, insensato... – e dos epicureios – cuja hedonística repugna à severidade nativa – acabou descobrindo a vantagem dos peripatéticos e dos neo-acadêmicos da ala de Carnéades. Então Sulpício declara não carecer de Aristóteles, de Carnéades, nem de filósofo nenhum: Ego vero neque Aristotelem istum neque Carneadem nec philosophorum quemdam desidero...

Criticando os que fazem da vida um permanente filosofar, Cátulo acha que um homem de facilidade natural, que pensa no foro, no senado, no processo, no negócio público, não há de gastar tanto tempo quanto quem ainda aprendia quando morreu: Non tantum ingenioso homini et ei qui forum, qui curiam, qui causas, qui rempublicam spectet, opus esse arbitror temporis quantum sibi ii sumpserunt quos discentes vita defecit.

Reserva maior se vê em Antônio, ao confessar que quando toma um livro grego nada lhe pede para a sua eloqüência. Lê por gosto, nos lazeres. Se logra alguma coisa é como quando anda ao sol e fica tostado, embora sem intenção de tomar banho de sol: ut cum in sole ambulem, etiamsi ego ob aliud ambulem, fieri a satura tamen ut colorer.

Em outro passo anuncia ter resolvido filosofar como o Neoptólemo de Ênio: um pouco só, que muito desagrada: sic decrevi philosophari potius ut Neoptolemus apud Ennium paucis, nam omnino haud placet.

Crasso afirma que a realidade é magna silva que os gregos já não podem compreender. Por isso a juventude, aprendendo, desaprende: rerum est silva magna quam graeci iam non tenerent; ob eamque causam iuventus nostra dedisceret paene discendo.

Falando de quem haja de ensinar a oratória, e dizendo que o latim e a natureza das coisas permitem assimilar a adiantada ciência grega, declara que este será homem erudito, que, quando existir, vencerá até os gregos: quando extiterint etiam graecis erunt anteponendi.

 

 

 

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