1. VÉRTICE DA CULTURA
O Caraça foi um vértice retangular
de cultura, não havendo outro igual no curso do Brasil
oitocentista. Entregue por dom João VI, em 1820, à
congregação vicentina dos lazaristas, seu regime
estendeu-se a Mariana (1853) e a Diamantina (1864), num triângulo
imperial de humanidades clássicas. Ficara sendo casa-mãe
a casa que o Ir. Lourenço construíra, em 1774, e
legara depois ao príncipe regente, em 1806.
Anterior à Independência, o Caraça
colégio antecede também os cursos jurídicos
de S. Paulo e Recife, como ainda o Colégio Pedro II, cujo
primeiro vice-reitor, chamado por Bernardo de Vasconcelos, foi
o padre Leandro de Castro, primeiro superior do Caraça.
Pelo século afora, Caraça-Mariana-Diamantina,
que recebiam nossa mocidade, iam nutrindo sua hominidade com humanidades
clássicas francesas. O diploma superior tirava-se depois,
sobretudo em S. Paulo, visto o pendor jurídico do mineiro,
que ganhou assim três famas celebradas: renome de latinista,
mais o de ter ponderação mediterrânea e de
ser bom político.
2.O CARAÇA PORTUGUÊS
Por volta de 1770, surgia no Caraça um peregrino.
Vinha possivelmente do Tejuco, e do negócio diamantino,
cujo dono, contratador infiel, um dia teve de regressar a Portugal,
que é longo o braço do rei. Então fugiu dali
o nosso peregrino, como franciscano terceiro, sob o nome de Ir.
Lourenço de Nossa Senhora. Chegando ao ermo alpestre, perto
de Santa Bárbara e de Catas Altas, comprou a sesmaria do
Caraça. Certa parte da serra, vista de ponto certo, faz
lembrar uma cara. Tal a razão do nome segundo já Aires
do Casal, na Corografia brasílica, obra de 1817.
Até hoje se ignora, no nome do terceiro franciscano,
que nome de família se escondia. Não pôde convencer
os exigentes, nem mesmo o testamento que ditou, em Mariana, com
data de 1806. Constam ali, juntos com o do lugar de nascimento,
os nomes de seus pais, mas não o seu. Depois de legar a
sua alteza, com claras condições, o patrimônio
que legava, assinou só com o nome conhecido. Note-se que
o documento, tendo ficado escondido, só foi descoberto
80 anos depois, na matriz de Catas Altas. Ante a falta de dados,
continuava livre o imaginar: ou era um simples imigrante português
ou era um nobre da família Távora, escapado ao marquês
de Pombal. A segunda versão, tão lisonjeira, sempre
constou mais forte e mais seguida.
Fosse quem fosse, buscava agora paz e penitência.
No sítio foi erguendo eremitério e capela, dedicada
a Nossa Senhora Mãe dos Homens, em 1774. Circundando a morada
e seus campos vizinhos, paredes rochosas, num recinto de montes,
fechavam fora o mundo e sua alteridade, cujo rumor bloqueia a vez
do ensimesmar-se, do estar consigo mesmo e de se hominizar. Era
de fato um horto bem concluso, um vero paraíso, voz que
significa "recinto", no iraniano de onde vem.
Ali, por mais de 40 anos, manteve o Ir. Lourenço, em muitos peregrinos, a devoção de subir até a serra, em busca do santuário.
Em 1816, Augusto de Saint-Hilaire esteve no lugar.
Nas Viagens ao Brasil, narra o que viu, no volume primeiro,
de 1830. Pelo que mostra, descrevendo, continua até hoje
a mesma construção do fundador, exceto a igreja
gótica de 1883, no lugar da colonial de 1779 e o pavilhão
do padre Boavida (no fim da década de 80) que, destruído
pelo incêndio, em 1968, forçou o fechamento do colégio.
Ala de residência e aulas dos alunos, nele ficava ainda a
biblioteca, onde a paciência de dois séculos, juntara
livros de vários séculos, desde os incunábulos
da imprensa. Tal incineração relembra outro funesto,
ano 47 antes de Cristo, estando Júlio César em Alexandria:
aí 40 mil volumes se queimaram.
Saint-Hilaire, nos seus três dias de Caraça,
além de recolher 70 espécimes botânicos, esteve
muito a conversar com o Ir. Lourenço, falecido três
anos mais tarde. Dando-lhe a idade de 92 anos, fala de um ancião
alquebrado mas lúcido. Admira de o ouvir perguntar, desde
tão longe, que fora feito de Napoleão, depois de
haver caído em mãos inglesas.
3. O CARAÇA LAZARISTA PORTUGUÊS
No mesmo ano em que morria o santo irmão,
tinham partido de Lisboa, vindos para missões em Mato Grosso,
dois padres lazaristas portugueses - Leandro de Castro e Antônio
Viçoso. Mas ganharam do rei outro destino, junto com a herança
do Caraça. Ali pisaram o chão do fundador, em abril
de 1820. Foi primeiro superior da casa o primeiro dos dois sacerdotes.
O outro, 23 anos mais tarde, seria bispo de Mariana. Em novembro
do ano de 20, chegaram os primeiros alunos. Até meado o
século, foi muita a luta que sustentar, entre calma e tormenta.
Além de a procedência lusitana ser pobre de pessoal,
faltava ligação com a de Paris, a casa-mãe
daqui. Mas eram ricos de espírito, como se vê pelo Regulamento
do Caraça, datado de 1835. Em Voz
de Minas, 1945, diz Alceu Amoroso Lima, pág. 142: "é um
modelo de verdadeiro humanismo pedagógico, em que a autoridade
harmoniosamente se combina com a personalidade e a suavidade"; "é de
uma atualidade incrível".
4. O CARAÇA FRANCÊS
Depois de 1850, começaram a vir lazaristas,
sobretudo franceses, além de italianos, holandeses, e de
outras regiões européias. Até a guerra de
14, conta-se em mais de cem o número deles, sendo franceses
mais de 40 e tendo os outros, geralmente, formação
francesa, como por exemplo os brasileiros, que acabavam na França
os seus estudos. Vinda a guerra e cessada a rotina, ficou ainda
o espírito francês, nos professores caracences.
Na idade de ouro do colégio, entre 1867
e 1885, coube regê-lo ao padre Clavelin, o grande superior.
Foi engenheiro e construtor da igreja gótica, sendo que
o padre Boavida fez o órgão, usando de madeira caracense.
Ampliou para sete o número de anos, do curso de humanidades.
Elevou para mais de 300 o número de alunos, desde a faixa
dos 100 em que girava. Em 1881, recebeu Pedro II, que esteve 1á,
como cinqüenta anos antes, já fizera o pai, Pedro
I. Agora as condições eram bem outras, em pleno
florescimento. Examinando a biblioteca, disse o augusto visitante:
"É uma das melhores do Império". Argüindo
nas aulas, que funcionaram normalmente, louvou o desembaraço
dos alunos e a perícia dos mestres. Na sessão de
despedida, ao fim do dia, saudado em português, latim, francês,
inglês, italiano, espanhol, alemão e hebraico, agradeceu
a cada um de quase todos na mesma língua usada no saudar.
Mostrou quanto aproveitara, na educação que o pai
encomendara, alegando jocoso o seu motivo: "Eu e o mano Miguel
seremos os últimos burros da família." Na comitiva
de dom Pedro, estava o professor Henri Gorceix, sinal francês
de outro foco, bem perto do Caraça: a Escola de Minas,
de Ouro Preto (1876). Era dirigida por Gorceix, contando ainda
com Arthur Thiré, Ferdinand Langret e Paul Ferrand. Era
recente ainda feito no Caraça (desde 1869) o curso de um
futuro sucessor de Gorceix, Joaquim Cândido da Costa Sena,
mineiro ilustre do seu tempo.
Nos vinte anos seguintes, foi declinando o colégio,
até se fechar, em 1911, continuando porém como "escola
apostólica". Passa muito de 5 mil o número
de alunos que tivera, diz O centenário do Caraça,
um livro de 1920. Saíram dali, para o Brasil,
muitos futuros homens de valor: advogados e professores, padres
e bispos, engenheiros e médicos, parlamentares e estadistas.
Entre seus nomes ilustres, estão Afonso Pena, pai e filho,
Costa Sena e Sabino Barroso, Jerônimo e Bernardino Monteiro,
Artur Bernardes e Raul Soares, Melo Viana e Olegário Maciel.
Saint-Hilaire havia escrito: melhor lugar não
se acharia, para uma casa de educação. Pedro II havia
dito: "Só o Caraça, paga toda a viagem a Minas." "Percorrendo
a Europa, vi muitas casas de ensino, e nenhuma melhor que o Caraça." Já foi
citado acima, de Alceu Amoroso Lima, um juízo por ele emitido,
sobre o Regulamento de 1835.
Admira-se mais essa grandeza, na sua época,
olhando as dificuldades. Não era fácil de manter-se,
em tão alto recinto. À penúria geral do meio
circundante juntava-se a penúria do transporte, com acesso
de via montuosa. Os recursos do ensino, tendo de vir da Europa,
ainda tinham de vencer larga jornada, na distância imperial
do Rio até o colégio. Veja-se no poema Os burrinhos,
de Henriqueta Lisboa, como visualiza com humor a grande paciência
da tarefa: livros subindo a serra, lenta, sinuosa, em lombo de
animais, até o seu destino. (Cf Montanha
viva: Caraça).
Além da distância, penso também
na densidade social. É de 1872, tempo da fase áurea
do Caraça, o primeiro recenseamento brasileiro. Não
pretendendo mais que uma impressão global, tomo de números
redondos. Nosso povo de então, menos de 10 milhões,
tinha uns 9 milhões de analfabetos, contra uns 500 mil de
não analfabetos. Para perto de 4 milhões de brancos
(onde 300 mil estrangeiros) havia 4 milhões de mestiços
e 1 e meio milhão de escravos. Isso na proporção
geral. Na proporção provincial, primeiro estava Minas:
quase 1.700 mil livres, mais uns 400 mil escravos. Em segundo,
a Bahia: quase 1.300 mil, mais 170 mil. Abaixo Pernambuco, mais
de 700 mil e uns 89 mil. S. Paulo, 600 mil e 156 mil: contra o
total de S. Paulo, mais de 700 mil, havia em Minas mais de 2 milhões.
(Os dados que manipulo, tomei-os de um livro-inquérito,
feito por 12 autores: À margem da História da
República, 1924, edição do Anuário
do Brasil.)
Pondere-se o que foi, em termos de letras, o valor do Caraça de então, vértice retangular que gerou, com Mariana e Diamantina, um tal polígono cultural, de humanidades clássicas francesas.
4.1. O latim
Nas ciências do humano estava o forte do Caraça,
repetição européia do século. A língua
essencial era o latim, como em França, Alemanha ou Inglaterra,
onde podia ter o seu ensino até 9 anos de curso e até oito
horas por semana. Como língua ocidental de cultura, chegava
bem para todos, não carecendo de gramática separada
o ensino do vernáculo. Sem ela passaram nossos grandes estilistas
de outrora, Camões ou Vieira, Gonçalves Dias ou Rui.
Depois é que se começou a pedir, no fim do século,
então surgindo manuais como o de João Ribeiro, de
Said Ali, de Maximino Maciel. Bastava a gramática latina,
dela provindo em corolário a portuguesa, tirada por lição
nos mestres do vernáculo.
No século 18, a um jovem consulente em busca
de estilo, certo bispo francês recomendara Cícero.
O avisado explicou a sua pretensão, que era em francês,
não em latim, mas o bispo, seguro, confirmou: "Então
leia Cícero". Haverá trinta anos, houve entre
nós uma atitude parecida, mas sobre ciências exatas.
Na Universidade de S. Paulo, três contratados europeus, de
física e matemática, vendo o excessivo de tais matérias,
no currículo médio, representaram ao ministro de
então, pedindo lhe trocasse por latim o que havia de excesso.
Repetiam bem claro: dê-nos um bom latinista que lhe
daremos um bom matemático.
Era tarde, porém. Agora, as coisas mudam
mui depressa. Tivemos já duas batalhas mundiais, a de 14
e a de 40, nessa outra guerra dos cem anos. Apesar da diligência
bimilenar do esforço mediterrâneo, o sonho do civis
sum totíus mundi torvou-se por demais e, com ele, o
dizer de Lamartine: Je suis concitoyen de tout homme qui pense;
la vérité c'est mon pays. Antes havia imperialismos
nacionais, contra nativos de hominidade retardada. Agora entrou
em cena, abrindo hiatos entre irmãos, o imperialismo do
indivíduo ressentido, junto com certo nativismo regressivo,
que abre hiatos entre povos. No teor automático de seu regime
gregarizante, o homem vai perdendo, gravemente, o bom teor de sua
hominidade.
4.2. O meu Caraça
Estudei na escola apostólica, entre 1916 e 1922. Ajudei a celebrar o centenário, em 1920. A tradição francesa persistia, sem franceses, conservada por mestres formados na França, alguns europeus e os mais, brasileiros.
Pelos termos de agora, faltava pedagogia a certos
professores. Mas era, o nosso modo de viver, todo um tratado de
pedagogia, na eficácia diária da rotina, em seu
tempo integral de seis anos. Além da sucessão estudo
aula recreio, vinha ao fim do dia, todo dia, um estudo geral de
duas horas. Nas grandes férias, entre julho e setembro,
ou nas pequenas em janeiro, bem como nos suetos calendários,
faziam-se passeios pelos campos e escaladas alpestres pelos montes.
Todo dia, brincava-se nos pátios bem como nos jogos de
salão. O que mais divertia, nas férias, era o direito
de ler livros não de aula. Segundo um nível ascendente,
lia-se Júlio Verne, Wells, Conan Doyle; Macedo, Taunay,
Alencar; Herculano, Garret, Vieira, Bernardes, etc. Eram de aula
ou de férias Chateaubriand, Corneille, Racine, Bossuet;
Demóstenes, Homero, Xenofonte; Nepote, Ovídio e César;
Vergílio e Horácio; Cícero, Tito Lívio,
Tácito, Salústio. Eram franceses na edição
os textos gregos e latinos. No curso de português, o 4º ano
todo era Camões: Lusíadas, poesia épica,
mitologia clássica, Renascença européia, descobrimentos
portugueses. Começava também no quarto ano, a tradução
da Eneida.
Foi esse o meu Caraça, faz mais de 50 anos.
Simples felicidade inenarrável. Na comunhão de Deus
se resumia, unida com três outras comunhões: da natureza,
de Vergílio e de Mozart. Um menino campônio tinha
descoberto o paraíso. Inexperto da vida e sem mais referências,
foi fácil de conformar-se. Livre na inteligência e
na emoção, pôde ali definir-se como um peixe
n'água. Nada o proibiu de ser feliz.
Principais fontes:
O centenário do Caraça, edição
1920
Guia sentimental do Caraça, 1953, escrito por Sarnelius.
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