Lima Barreto e a Literatura Afro-Brasileira:

o preconceito social e étnico nas malhas da ficção

 

Elisângela Lopes*

Riverson da Silva**

 

“Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!”

Lima Barreto (“Maio”, 4/05/1911)

 

 

A contribuição de Lima Barreto para a literatura brasileira é indiscutível. Sua obra focaliza o mundo dos trabalhadores suburbanos do Rio de Janeiro – em geral pobres e descendentes de africanos, como o escritor. O desejo de retratar o que está à margem da sociedade e aqueles que lá estão impulsiona a escrita do romancista. Esse movimento de voltar-se para a periferia e de dar voz aos que nela se encontram pode ser percebido praticamente em toda a sua ficção. Em Clara dos anjos, por exemplo, o narrador preocupa-se em detalhar o ambiente, os casebres, as ruazinhas, os animais, as crianças, as discussões – tudo amontoado e em fase de expansão como “uma longa faixa que se alonga” (LIMA BARRETO: 1990, 82) – que caracterizavam o subúrbio do Rio de Janeiro. Depois de descrever esse espaço de exclusão, o narrador, incisivo, faz sua crítica:

 

Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro”. (LIMA BARRETO: 1990, 83)

 

 

O texto-denúncia de Barreto ilustra a verve político-social do escritor, capaz de trazer à tona aquilo que se deseja ver esquecido: “o quarto de despejo social”. Além disso, é veemente ao apontar o descaso governamental em relação aos pobres. Mas não só pelo retrato social presente nos seus textos e não somente pela riqueza de sua escrita, o autor deve ser destacado no universo dos grandes escritores que nosso país fez nascer. Mais do que precursor do romance social brasileiro, Lima Barreto é também um grande nome da literatura Afro-Brasileira. Considerado por Octávio Ianni como um dos fundadores dessa expressão literária, o romancista nos legou uma obra que merece ser repensada, relida, sob um novo olhar capaz de desvendar a sua relação com a literatura das margens. Segundo Ianni, o escritor conseguiu, em seus textos, assumir "a problemática do negro de modo aberto, pleno, em suas dimensões humanas, sociais, culturais e artísticas" (IANNI: 1988, 6), contribuindo assim, para uma nova visão a respeito da negritude: uma visão capaz de representar as condições a que estariam submetidos os negros, mulatos e pobres no Brasil pós-abolição.

 

A repulsa ao preconceito social e étnico pode ser facilmente percebida em Clara dos Anjos, mas está também presente em vários outros textos do autor. Nesse romance, ao mesmo tempo em que aponta a discriminação pela cor da pele, Lima Barreto enfatiza a ausência de mobilidade social na república recém-instalada. Ao retratar os gestos repressivos lançados pela elite sobre quem quer que desejasse ultrapassar as barreiras sociais minuciosamente construídas, Clara dos Anjos denuncia o lugar estático no qual deveriam para sempre permanecer negros e pobres. Nesse sentido, a protagonista, menina mestiça e pobre, surge triplamente condenada: pela cor da pele, pela posição social e por almejar a ascensão. Em determinado momento do texto, o narrador desnuda o pensamento de Marramaque, a respeito da afilhada Clara e deixa explícito como o preconceito, seja ele social, étnico ou de gênero, encontra-se incrustado numa sociedade que se diz “cordial” e como, muitas vezes, pode passar despercebido, mascarado pelo discurso:

 

Na sua vida, tão agitada e tão variada, ele [Marramaque] sempre observou a atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada; e também o mau conceito em que se têm as suas virtudes de mulher. A priori, estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os seus esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social. (LIMA BARRETO: 1990, 45)

 

Noutra passagem do mesmo livro, o narrador barretiano vai às raízes patriarcais e escravocratas responsáveis pela constituição de todo um imaginário calcado na discriminação. Embora ressaltando a contribuição da mão de obra cativa para o desenvolvimento da economia, não deixa de se condoer e de apontar a desumanidade e os sofrimentos a ela impostos pelo regime: “estávamos em plena escravatura, se bem que nos fins, mas a antiga Província do Rio de Janeiro era próspera e rica, com suas rumorosas fazendas de café, que a escravaria negra povoava e penava sob açoites e no suplício do tronco”. (LIMA BARRETO: 1990, 38) O texto evidencia a crueldade do sistema, fundado, primeiramente, no trabalho forçado; e, após a abolição, no rebaixamento social pela via do preconceito.

Por estas duas amostras, já se pode perceber o olhar e a perspectiva que norteia o escritor. Como jornalista inquieto e observador atento do mundo a sua volta, presenciou momentos decisivos da revolução burguesa em curso no país, que se inicia com a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República e se prolonga nas décadas seguintes. Para Octávio Ianni (1988), é nessa época que o problema do negro parece se revelar mais pungente: "lumpenizado no lugar de livre; proletarizado em condições adversas, em face das vantagens e dos favores concedidos por fazendeiros e governadores aos imigrantes; discriminado em termos sociais, econômicos, políticos e culturais” (IANNI: 1988, 5), o negro passa, no período pós-abolição, a ocupar o não-lugar social. Enquanto mão-de-obra, era preterido em favor dos imigrantes europeus; socialmente, pouco representava, pois ajudava a engrossar a massa de miseráveis que se espalhava pelos subúrbios do país; economicamente, não se fazia representativo, uma vez que vivia a condição de lúmpem; politicamente, era voz inaudível. Já Culturalmente era discriminado por ser visto como sujeito dotado de “pouca inteligência”, estereótipo que a literatura da época ilustra na figura do negro animalizado, na sensualidade exacerbada da mulata, na bestialização do ex-escravo, sempre servo do ex-senhor.

É desse não-lugar social que emerge a voz-denúncia de Lima Barreto capaz de explicitar os preconceitos de que ele próprio era vítima, como demonstra seu biógrafo ao comentar passagem do Diário íntimo, na qual o autor escrevera “é triste não ser branco”, numa tentativa de resumir as limitações que a cor escura da pele impunha à realização de seus projetos e desejos, à sua aceitação social, ao seu reconhecimento intelectual pela sociedade e mais do que isso, à aceitação de si mesmo, enquanto “homem de cor”. (BARBOSA: 1952, 144). O desabafo do escritor encontra eco nas últimas palavras da protagonista de Clara dos Anjos, livro considerado por Afrânio Coutinho (2001) como “a primeira tentativa no gênero de fixar a história da escravidão no Brasil” (COUTINHO: 2001, 325). Depois de refletir sobre a indiferença dos outros para com a sua desgraça e de concluir que ninguém se importaria com sua infelicidade – “uma mulatinha, filha de um carteiro” – a personagem desabafa: “Nós não somos nada nessa vida”. (LIMA BARRETO: 1990, 155)

Considerado precursor do realismo crítico brasileiro, Barreto inaugura uma nova forma de retratar a sociedade do início do século XX. De forma invertida, paródica, o escritor parte das margens para direcionar um novo olhar sobre o centro, parte do subúrbio para entender a cidade e nesse movimento inverso particulariza a sua produção literária. Põe em prática um posicionamento extremamente crítico em relação à sociedade burguesa, como já acontece em seu primeiro romance – Recordações do escrivão Isaías Caminha –, que focaliza de forma crua o mundo da imprensa e do jornalismo, satirizando as “personalidades” que o compunham, vistas como metonímia das elites da época. Já em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, corporifica-se o desmascaramento da figura do burocrata, ao mesmo tempo em que se promove a defesa de um “lugar ao sol” para o mulato vítima da violência simbólica disseminada no cotidiano da belle époque brasileira.

Em outra obra, O cemitério dos vivos, a ficção tanto convive quanto cede espaço ao memorialismo, o mesmo acontecendo com os escritos coligidos no volume Um sonho longo do futuro. Nesses instantes pungentes de reflexão autobiográfica, Lima Barreto narra as lembranças das vezes em que esteve internado no hospício. Entre diários, cartas, entrevistas e confissões dispersas, recolhemos o depoimento que resume a consciência do autor a respeito dos motivos que o levaram ao encarceramento:

 

De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda espécie de apreensões que as dificuldades da vida material, há seis anos, me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: delírios. (LIMA BARRETO: 1993, 153)

 

Os fatos subseqüentes comprovam as afirmações do escritor. E as internações não o impediram de prosseguir em seu afã de, pela escrita, refletir e posicionar-se criticamente a respeito da liberdade e da privação desta, sobretudo naquele mundo de encarcerados. De fato, é no hospício que Lima Barreto estrutura o plano de O cemitério dos vivos, como declara em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, de 31/01/1920:

 

Tenho coligido observações interessantíssimas para escrever um livro sobre a vida interna dos hospitais dos loucos. Leia O cemitério dos vivos. Nessas páginas contarei, com fartura de pormenores, as cenas mais jocosas e as mais dolorosas que se passam dentro destas paredes inexpugnáveis. (LIMA BARRETO: 1993, 308).

 

Outro escrito que merece destaque é o texto dramático “Os negros (esboço de uma peça?)” escrito em 1905 e publicado em Marginália. Seus personagens são todos negros, o cenário é negro, o mar é negro... O texto retrata “cenas nos tempos da escravidão” e nos primeiros parágrafos descreve o ambiente: um penhasco, cortado por “um estreito caminho vigiado de um e outro lado pela Morte” (p. 307), onde se encontra reunido um grupo de negros. É no primeiro diálogo da peça que percebemos que o grupo é formado por escravos fugidos que haviam andado por quatro dias, ininterruptamente, para escapar da fazenda onde viviam. Um dos personagens, a olhar o mar que parecia emendado ao céu, observa um navio que vai ao longe e inicia um processo de rememoração:

 

3º negro – Os navios, que não nos vejam eles... Quando vim, da minha terra, dentro deles... Que coisa! Era escuro, molhado... Estava solto e parecia que vinha amarrado pelo pescoço. Melhor vale a fazenda...

2º Negro – É longe a tua terra? Lá só há negro?

3º Negro – Não sei... Não sei... Era pequeno. Andei uma porção de dias. As pernas doíam-me, os braços, o corpo, e carregavam muito peso. Se queria descanso, lá vinham uns homens com chicotes. Vínhamos muitos de vários lugares. Cada qual falava uma língua. Não nos entendíamos. Todo o dia, morriam dois, quatro; e os urubus acompanhavam-nos sempre. Minha terra... Não sei... Era perto de um rio, muito largo, como o mar, mas roncava mais... Sim! Tudo era negro lá... Um dia, houve um grande estrépito, barulho, tiros e quando dei acordo de mim estava atado, amarrado e... marchei... Não sei... Não sei... (LIMA BARRETO: 1956, 308-9)

 

Ao revisitar os recônditos da memória, o 3º Negro vai promovendo um processo de lembrança marcado também pelo esquecimento e nesse processo consegue fazer uma única afirmação segura em relação a sua terra: “sim! Tudo era negro lá...”, até serem surpreendidos pela chegada dos navios negreiros e seus negociadores de homens. A ausência de lembranças nítidas, o não saber e a dúvida irão marcar o discurso desse personagem, assim como marcam também o discurso da Negra Velha: “eu não sei nada mais donde vim. Foi do ares ou do inferno? Não me lembro... “ (LIMA BARRETO: 1956, 309) Da mesma forma que no personagem masculino acima referido, a lembrança marcante da Negra Velha é o desembarque em terras brasileiras, já na condição de mercadoria: “escolheram dentre nós alguns. Experimentaram os dentes, os braços, faziam abrir as pernas, examinavam a nós, com cuidado; e, ao fim, andávamos por muitas terras. Eu fui comprada pelo coronel. (Silêncio)” (Idem)

O drama vivido pelos personagens, a condição cativa, a liberdade provisória, que a qualquer momento pode ser quebrada pela chegada do feitor e os seus capatazes, tudo isso marca o texto de uma forma muito peculiar. Um dos personagens, O Negro Velho, tem seus olhos “parados nas órbitas; não há neles nem amor, nem ódio, nem esperança, nem temor” (p.307) e a certa altura da peça desabafa: “ – O tronco faz a gente sonhar” (p. 309). A descrição do cenário, do ambiente é toda marcada pela escuridão: os personagens estão cercados por “pontas de rocha negra” (p.306) e, embaixo, por uma “cavidade escura” (p. 307). No mar, um dos personagens observa “as ondas altas, negras...” (p.310), até que tudo se transforma em uma imensa escuridão e nesse momento “o negro é intenso. Nada se vê” (p. 310). Os escravizados desejam ser engolidos por uma baleia que pudesse levá-los para um lugar onde fossem livres. Ouvem passos que se aproximam. O Negro Velho morre ali, aos olhos de todos e “durante uma pausa, ouve-se um tiro próximo” (p.312). Teria morrido pelo medo de voltar a sonhar no tronco com uma liberdade que estava experimentando naquele momento?

Além de uma significativa produção ficcional – em que o autor manifesta seus vínculos com a afro-descendência não apenas em termos temáticos, mas também através de um ponto de vista vinculado a sua constituição identitária e ao seu existir como afro-brasileiro – há que se ressaltar sua atuação na imprensa da época. E surge então o cronista muitas vezes ácido e polêmico, outras tantas marcado por um olhar poético sobre o cotidiano que lhe é dado viver. Destacaríamos uma crônica que vem a público na Gazeta da Tarde, em 1911. Seu título é “Maio” e nela o leitor se depara com as impressões do menino Lima Barreto sobre o dia 13 de maio de 1888, data da Abolição da Escravatura. Ele conta que, dias antes, seu pai havia chegado em casa e dito a ele: “a lei da Abolição vai passar no dia dos teus anos” (LIMA BARRETO: 1995, 127). E, de fato, foi o que se sucedeu: naquele dia, um domingo, o menino Lima Barreto foi levado pelo pai para o Largo do Paço, local onde as pessoas se aglomeravam para comemorar a assinatura da lei. E narra na crônica que viu de longe “o grande Patrocínio”, – o tigre da abolição. Ao descrever a cena, ressalta a alegria que havia se apoderado das pessoas:

 

Havia uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do grande casarão. Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com lenço, vivas...

Fazia sol e o dia estava claro. Jamais na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente de festa e harmonia”. (Idem)

 

Esse texto, escrito vinte e três anos depois, retrata a visão da criança a respeito do fato histórico e o deslumbramento do menino que, àquela altura, não tinha consciência do que era a nefasta instituição: “eu tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem os aspectos hediondos”. Assim, Barreto parecia querer justificar sua visão idílica, de tempos idos, a respeito da abolição, porém permite que se entremeie às lembranças a visão crítica de um intelectual inquieto, de um homem politizado, ao desabafar a certa altura do texto: “mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!”. (LIMA BARRETO: 1995: 127).

Essa crônica é muito parecida com a que foi publicada por Machado de Assis, em A semana (14/05/1893), na qual contrapõe o sol, “sócio natural das alegrias públicas”, que despontou no céu azul do Brasil em 13 de maio de 1888, e o “o céu feio e triste” de 13 de maio de 1893. Ambos, Lima Barreto e Machado de Assis, retornam ao histórico dia e retratam a alegria pública da data tão esperada, para fazer uma reflexão crítica sobre as novas amarras sociais de seu tempo.

A visão crítica de Lima Barreto sobre a sociedade de seu tempo é um fator que particulariza sua produção ficcional. Eduardo de Oliveira (1999) assim justifica a prática do desmascaramento social levada a cabo pelo romancista: “Barreto não devia agradecimentos a ninguém, não tinha interesses egoístas a proteger, por este motivo, podia ser plenamente honesto em sua descrição da sociedade, uma honestidade que por fim o levou a morte prematura devido à pobreza e ao alcoolismo”.

Revisitar a produção ficcional de Lima Barreto e perceber nela a voz das margens, o preconceito social, a discriminação racial e, principalmente, a inquietude do escritor com relação a tudo isto faz com que voltemos nossos olhos para a sociedade contemporânea a fim de observá-la criticamente. Talvez, por isso, a escrita desse homem inquieto seja tão atual. O reconhecimento intelectual, sempre almejado pelo escritor, parecia ser impedido pelos preconceitos, o que o levou a se entregar aos vícios. Tal reconhecimento veio... Agora, reconhecemos a imensa contribuição de Lima Barreto para a literatura Afro-brasileira, fazendo-o “clássico duas vezes”.

 

* Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG

** Graduando em Letras pela UFMG

 

 

Referências Bibliográficas

 

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952.

COUTINHO, Afrânio; SOUZA, J. Galante. Enciclopédia de Literatura Brasileira, 2001. Vol. I, p. 325.

IANNI, Octávio. Literatura e consciência In Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Edição Comemorativa do Centenário da Abolição da Escravatura. São Paulo, nº 28, 1988.

LIMA BARRETO, Afonso Henriques. Um longo sonho do futuro: diários, cartas, entrevistas e confissões dispersas. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1993.

_______. “Maio” In Crônicas Escolhidas. São Paulo: Ática, 1995.

_______. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Garnier, 1990.

_______. Marginália. São Paulo: Brasiliense, 1956.

OLIVEIRA, Eduardo (Org.). Quem é quem na negritude brasileira. São Paulo: Congresso Nacional Afro – Brasileiro ; Brasília : Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, 1998.

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Lino Guedes, inserção social e valorização moral do negro

Nathália Dias*

O saber lhe acalmará

A cruel e fria dor

Que lhe inspira, que lhe causa

O desdém de sua cor.

Lino Guedes

Considerado por alguns críticos como o primeiro autor do século XX a assumir um posicionamento contestador em relação ao lugar ocupado pelo negro na sociedade, Lino Guedes teve a militância como característica central de sua produção textual, e fez da afirmação racial sua motivação literária. Jornalista e escritor, filho de ex-escravos, nasceu na cidade de Socorro, interior de São Paulo - em data sobre a qual giram controvérsias - e faleceu em 4 de março de 1951, na capital do mesmo estado onde nascera. Sobre a discordância crítica que envolve o seu nascimento, as fontes consultadas especulam o dia 24 de junho de 1897 ou 23 de julho 1906, contudo, acreditamos que a primeira data citada seja a verdadeira, em razão da representativa produção discursiva de autoria “guedesiana” presente em periódicos das primeiras décadas do século.

Lino perdeu o pai ainda quando era recém-nascido, tendo a mãe poucos recursos para cuidar dele e de sua irmã, a família recebeu ajuda de um coronel da região. Essa relação de paternalismo permitiu o ingresso de Guedes na escola da cidade, onde aprendeu as primeiras letras. Mais tarde, mudou-se para Campinas, diplomou-se, descobriu novas perspectivas culturais e iniciou-se no jornalismo, meio a partir do qual a sua face de ativista político se colocaria à mostra. Após passar por alguns jornais, engajou-se na imprensa de luta em defesa do negro. Tal vertente jornalística era produzida por afrodescendentes que escreviam para seus iguais, com o intuito de afirmação racial e denúncia da segregação existente. Assim, com o intento de carreira militante e o despertar íntimo de um ideal, o autor se tornou um dos porta-vozes da causa negra, o que pode ser claramente afirmado ao considerarmos a sua posição de editor-chefe no jornal Getulino.

O nome do periódico não poderia ser mais sugestivo, uma vez que faz referência direta ao abolicionista Luiz Gama. Como é sabido, “Getulino” era o pseudônimo - que mais tarde seria incorporado ao livro Trovas Burlescas como um personagem - utilizado pelo poeta baiano para publicar suas sátiras. A obra citada edifica a figura de Luiz Gama que, através de uma discursividade ligada ao popular e voltada especificamente para ser o lugar da fala do outro, clama contra o preconceito e o branqueamento alienado dos mestiços. O poeta passa a ser, então, um porta-voz do negro e sua produção representa uma emissão coletiva, o clamor dos silenciados. Frente a este estandarte literário e social, Lino tem em vista um projeto de vida semelhante. Ele tenciona ser mensageiro de um povo, de falar por e para este grupo. A partir desta consciência ativista do escritor paulista, seus textos serão preenchidos por discursos de caráter moral e de valorização do negro.

Dessarte, considerando que a escrita engajada inclua a presença de um certo didatismo a fim de instruir o público-alvo, as obras de Guedes carregarão intrinsecamente valores que, sob sua égide, são essenciais na construção de um novo comportamento moral. Segundo ele, tal comportamento é indispensável para que o negro alcance sua emancipação, sendo necessário “combater a vadiagem, o vício, o analfabetismo e a irreligião, pois sem a base do sentimento moral e religioso, cimentada pelo trabalho, é impossível edificar a obra da emancipação do negro” (GUEDES, 1930, apud DOMINGUES, 2004, p. 366). É interessante notarmos como neste primeiro momento, a assimilação desses valores brancos e cristãos é para o autor algo imprescindível para que os afrodescendentes sejam considerados dignos. O casamento é um renascimento social, uma forma de satisfazer a sociedade, podemos perceber isto no poema “Remédio único”, do livro Dictinha (1938):

Unicamente, Dictinha,

Por sermos pretos, que horror!

Muita gente com malícia

Vê nosso sincero amor;

Faz ainda comentários

Que enche de pavor

- Negro, só dá para escândalos!

Ao depois de namorar

Acorda um dia qualquer

E vai junto coabitar...

Por um trono, uma Princesa

Foi essa gente trocar!...

 

Mas com o nosso casamento

Fartar-se-á a exigente

Sociedade, Dictinha;

Salvemos, pois nossa gente!

Dando a ela o que já lhe sobra,

Que é um nome bem decente!

 

(Dictinha, 1938).

 

O matrimônio e, consequentemente, a formação de uma família são um meio de adquirir respeito e ressurreição moral. O núcleo familiar é o instrumento básico para a construção da comunhão de interesses de uma classe, e a “solidariedade racial” inexistente em sua geração é o que Guedes quer reivindicar a partir de alguns de seus textos.

No início do século XX, o sociólogo, ativista e intelectual negro W.E.B. Du Bois introduziu no debate teórico o conceito de “dupla consciência” ao publicar, em 1903, o livro As Almas da Gente Negra, no qual problematiza o dilema das subjetividades conflitantes. De acordo com esta formulação, o eu se vê com os olhos do branco, e a mensura de sua alma é feita a partir da “medida de um mundo que continua a mirá-lo com divertido desprezo” (DU BOIS, 1999. p. 54). Esta dicotomia cultural resulta em um choque psicológico no qual a questão identitária é dilacerada. Nos primeiros escritos de Guedes, o conflito de uma consciência dupla se faz presente - claramente em Dictinha (1938), como mostrado anteriormente - através da inserção e postulação de elementos do mundo cristão-burguês-branco. O eu busca assimilação de princípios de uma cultura que não o quer próximo, com o intuito de a ela se integrar. No entanto, a sociedade continua a subjugar este eu, que a vê como modelo, mas nunca consegue dela se aproximar.

Assim, mesmo que Lino pareça “pregar uma conduta de conformismo social” (BROOKSHAW, 1983. p. 184) por meio da incorporação de valores brancos, ele a faz com o desejo de integração social, quebra de estereótipos e do complexo de inferiorização. Além disso, esta postura apresentada nos primeiros textos do autor paulista não o impede de criar posteriormente uma obra de maior dicção militante, como é o caso de Vigília de Pai João (1938), livro o qual discutiremos em outro momento deste texto. Por manter este posicionamento distinto em relação aos anseios revolucionários de outros integrantes da imprensa negra, o escritor se envolveu em diversos conflitos com algumas das principais lideranças do movimento em São Paulo.

Porém, ainda que seguindo, em sua produção inicial, um caminho discutível em busca da liberdade, a vontade de expressar a condição subalterna do negro na sociedade e construir discursos de valorização do mesmo extrapola as contestações críticas. Em “Sem Algemas?”, o eu-poético articula história junto à sua declaração de afeto e, ainda, se vale de opções vocabulares que evocam o sistema escravocrata para representar o seu amor.

Dictinha, escute uma história

muito nossa: antigamente

não faz muito tempo ainda,

foi escrava a negra gente;

os mais pesados castigos

lhe deram impunemente.

 

Mas um dia a realeza

de nossa sorte condoída,

cujo crime consistia

em ter pele enegrecida,

a liberdade nos deu;

belo gesto, não, querida?

 

O que depois ocorrera

é de ontem, por que falar?

Mas, eu ainda, Dictinha,

preciso me libertar

do penoso cativeiro

em que traz seu olhar.

(Dictinha)

Notemos como o poeta deixa aparecer um eu que se assume como negro e um Nós representante de um eu-poético que trabalha em uma dimensão pessoal e coletiva, pois tal categoria gramatical demonstra a integração daquele eu com o outro no discurso. O Nós refere-se à Dictinha, mas, também, ao público ao qual o texto é destinado, a comunidade afrodescendente. Ao produzir o discurso, o sujeito coloca em cena possibilidades de enunciação que nos mostram a sua posição em relação ao dito e, ainda, torna o outro parte integrante do jogo enunciativo.

A escrita de Lino Guedes busca a construção de uma imagem positiva do negro e os valores, mesmo que contestáveis, por ele postulados são transmitidos como forma de reverter “no branco o conceito negativo acerca do negro” (DOMINGUES, 2004, p. 367). A educação é defendida como instrumento de luta e resistência, a instrução é uma arma de superação e autoaceitação, como nos é apresentado em um dos poemas de O canto do cysne preto (1935):

O saber lhe acalmará

A cruel e fria dor

Que lhe inspira, que lhe causa

O desdém de sua cor.

A maneira como o autor enxerga a importância da educação também é apresentada na abertura do livro Vigília de Pai João (1938).

Em comemoração do cinquentenário da Abolição da Escravatura, no Brasil, a 13 de maio, em que Isabel, a Redentora, trocou seu trono pela liberdade de uma Raça, que assim que descobrir as belezas do alfabeto, se tornará a mais temida, como foi a que mais sofreu.

A educação é um instrumento de luta, um veículo indispensável para a ascensão social e a elevação do negro para além da degradação dos lugares onde a escravidão o fez imergir. Segundo Du Bois, é necessário “uma educação que incite a aspiração, que estabeleça como meta os ideais mais elevados e que privilegie como finalidades a cultura e o caráter” (1999, p. 149), para que a emancipação humana e a verdadeira conquista da liberdade sejam possíveis. O excerto acima, ainda, apresenta uma marca temporal de quando a obra foi lançada, o poema dramático foi publicado em comemoração ao cinquentenário da abolição da escravatura. Tal publicação pode ser interpretada como uma segunda resposta do escritor ao decreto de 1930, no qual Vargas determinava o fim do feriado de 13 de maio. Em 31 de maio de 1931, Lino publicou um artigo1 na primeira página do jornal Progresso, onde fez duras críticas à tentativa de apagamento desse pedaço de nossa história. Parece evidente que para ele, o feriado possuía grande importância enquanto símbolo representativo da memória e celebração da liberdade de seu povo. A eliminação da data do calendário agrediu, então, o fundo de uma consciência que viu como saída necessária a produção de uma obra mais imponente. Ao contrário das produções poéticas anteriores, a peça Vigília de Pai João (1938) busca a identificação do público de uma forma mais original, voltada para a memória e as raízes culturais do afrodescendente.

No decorrer dos versos, é notória a intenção de resgate da memória histórica do negro, a valorização de tradições do tempo da escravidão e a postura contestadora do escritor em relação à inferiorização dos afro-brasileiros. Vigília de Pai João (1938) se inicia com a cena dos escravos de café reunidos em volta de uma fogueira, uns conversam, outros dançam e tocam tambores. Pai João é o mais velho dentre eles e desempenha o importante papel de contador de suas memórias desde África na peça. Enquanto Pai João narra suas jornadas e sofrimentos, um plano é revelado aos outros presentes no terreiro e ao leitor; ele delegou ao escravo Benedicto dopar os vigias para que todos possam fugir do cativeiro. Contudo, o ancião não fará parte da fuga, pois restará na fazenda tocando tambor para que seus senhores de nada desconfiem. Em meio a isso tudo, ele conta sobre o sucesso de uma fuga que ocorrera no passado e o seu retorno ao cativeiro, pois sua amada, que no momento de enunciação deste episódio já havia falecido, ali restara. Após a fuga dos escravos, a peça termina com Pai João sozinho em cena, tocando tambor e o “banzo”, por ele evocado, toma conta do desfecho do poema dramático.

As epígrafes presentes no livro são trechos de “Vozes d’África” e “Fugindo ao cativeiro III”, de Castro Alves e Vicente de Carvalho, respectivamente. Os dois poemas apresentam a ideia de liberdade como fim dos sofrimentos dos escravos, embora de maneiras diferentes. O brado em Castro Alves é um clamor de justiça e liberdade ao Deus cristão, o referencial religioso do branco é o utilizado para construção do discurso de súplica.

Há dois mil anos eu soluço um grito...

Escuta o brado meu lá no infinito.

Meu Deus, Senhor meu Deus!...

(Alves, in: Vigília de Pai João)

 

O trecho de Vicente de Carvalho apresenta uma construção imagética que se assemelha um pouco à criada por Lino quase ao fim da obra. A semelhança é tanto com a imagem do terreiro no momento da fuga – mesmo que essa seja tomada pela melancolia do “banzo” evocado por Pai João e não por uma leveza de espírito - quanto com o amanhecer interior de cada um dos escravos que veem a liberdade mais próxima.

O dia de ser livre, tão sonhado

Lá do fundo do escuro cativeiro.

Amanhece por fim, leve e dourado

Enchendo o céu inteiro.

(Carvalho. In: Vigília de Pai João).

É interessante nos atentarmos à alusão cristã feita por Castro Alves – uma das referências literárias de Lino na construção de sua obra e carreira militante – uma vez que, mesmo sendo o discurso moral apresentando de forma mais atenuada nesta peça que em Dictinha, alguns momentos de Vigília de Pai João (1938) “buscam uma síntese difícil entre catolicismo e negritude, em que se desenha um relacionamento complexo entre o Deus cristão e o escravo negro.” (MOREIRA, 2003). O referente religioso branco cristão não é o único presente no texto, Guedes articula o catolicismo junto às crenças populares afro, e esses traços culturais não são apresentados de forma pejorativa. Aliás, tais traços têm grande importância no decorrer do texto, já que é através de um expediente astucioso que a fuga dos escravos se torna possível. A articulação antes citada nos evidencia a mudança de posicionamento político de Lino em relação ao apresentado em Dictinha, livro publicado em 1938, mas escrito em 1926. No poema dramático, percebemos uma dicção militante maior que se opõe aos ideais de assimilação exclusiva dos valores brancos explorados na obra produzida nos anos de 1920.

Assim como no poema de Castro Alves, o clamor é direcionado ao Deus cristão, dessa forma nos diz Pai João:

É deste lugar maldito

Que eu mando para o infinito

A minha queixa mais infeliz.

E da masmorra à senzala,

Que Deus ouve nossa fala,

Ouve, ao certo, e nada diz...

 

(Vigília de Pai João)

No entanto, como dito anteriormente, o referencial de crenças populares afro também se faz presente:

Pai João, tudo arranjado.

O vigia está ferrado

Num sono como o da morte!

[...]

 

Um maço de dormideira

No travesseiro escondi.

Chá de um pé de alface inteiro!

Eu mesmo quase dormi!

 

Amarrei num pé da mesa

A boa santa Thereza...

Santo Antonio na restinga.

Para acabar com o cambalacho

Pus de cabeça pra baixo

Um Santo Onofre sem pinga.

(Vigília de Pai João)

 

Isto posto, é preciso considerarmos a atitude corajosa do autor ao inserir práticas populares na peça produzida em um momento em que no país existia uma “campanha agressiva de repressão da polícia aos membros de qualquer tipo de manifestação religiosa de origem afro-brasileira” (MOREIRA, 2003). Além disso, a maneira como Pai João articula o plano de fuga de forma discreta e eficiente nos mostra, também, o empenho de Guedes em tentar desmantelar o conceito extremamente reducionista e preconceituoso do negro como ser vazio, que tem como função única utilizar a sua força de trabalho.

Pai João é, ainda, o guardião de uma memória coletiva. Ao narrar a sua história de vida desde África, pontes são criadas entre o leitor ou a plateia da peça e seus ancestrais, uma vez que Lino escreve como, pelo e para o negro. A cultura popular desse povo é trazida à obra como arcabouço de tradições do período da escravidão. A proximidade do foco narrativo mostra a posição do autor, já que há clara intenção da obra ser um reflexo de seus ideais e se aproximar do público-alvo. O ancião pode ser visto, também, como símbolo do empenho autoral no desmantelamento de estereótipos, construção de uma imagem positiva do negro, e um desejo de igualdade e reconhecimento social.

Meu pensamento não cansa!

E embora velho e acabado.

Sempre esperou Pai João

Viver com vocês num mundo

Onde gente de profundo

Sentir nos chame de irmão.

(Vigília de Pai João

 

Vigília de Pai João se assemelha ao teatro engajado que surgirá na década de 60, pois ambos objetivam alcançar o mais amplo público exposto sistematicamente aos conflitos que compõem as obras. A peça possui uma estrutura baseada na articulação “autor-obra-público”, a partir da qual o texto é o veículo de propagação dos ideais autorais que querem tangenciar e conscientizar a plateia. Outra semelhança entre essa obra de 1938 e o teatro que está por vir é a inserção e defesa de tradições culturais. Ao explorar o tema em um poema dramático, o caráter militante de Lino Guedes se torna mais evidente, pois, levando em consideração a parcela mínima de alfabetizados, ele opta por um meio de transmissão mais efetivo que permite aproximação direta com um público maior. Aliadas à escolha do gênero literário estão a seleção de opções vocabulares marcadas pela oralidade e a inserção de cantigas populares a fim de despertarem identificação no auditório. Por meio dessa recognição se pretende a criação de uma consciência coletiva da comunidade a que se destina a peça. O engajamento apresentado em Vigília de Pai João (1938) é uma atuação do poeta através da palavra, imagem, ritmo, som e história do negro.

Ao assumir a voz dos silenciados o escritor coloca-se a serviço de uma causa, a partir de suas obras, partilha valores ideológicos e políticos visando um determinado público. Essa motivação literária quer promover a elevação das tradições e ressurreição moral do povo afro. Por meio de uma linguagem simples, aparentemente destituída de pretensões literárias, o autor paulista se mostrou extremamente comprometido com seu discurso a favor do negro. Seu esforço em construir uma imagem positiva do afrodescendente, e, ainda, tentar criar um sentimento de autoaceitação entre seus irmãos frente a uma sociedade excludente extrapola os compromissos morais que prega em alguns de seus textos. A ideia de assimilação de certos valores brancos é cultuada a fim de promover a inclusão do subalterno. Contudo, tal posicionamento não resulta na desvalorização e perda da herança cultural africana. A poética de Lino quer preservar a cultura ancestral através da palavra. Ao falar como, pelo e para o negro, o escritor imprimiu um sentido positivo à imagem de seu povo. Lino Guedes merece destaque por não ter se mascarado de artifícios caricatos, ter promovido o renascimento de elementos ligados à cultura negra no Brasil e, também, por apresentar um caráter inovador que “deixou emergir no discurso poético um eu que se assumiu como negro, pretendendo ser a voz dos homens invisíveis de sua comunidade” (BERND, 1992. p. 38).

Referências

ALVES, Castro. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguillar, 1997.

BERND, Zilá. (Org.). Poesia negra brasileira - antologia. Porto Alegre: IEL/AGE, 1992.

______. Introdução à Literatura Negra. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

BROOKSHAW, David. Raça & Cor na Literatura Brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

DOMINGUES, Petrônio. Lino Guedes: de filho de ex-escravo à “elite de cor”. Revista Afro-Ásia, Salvador, n. 41, p. 133-166, 2010.

______. Uma história não contada: Negro, racismo e braqueamento em São Paulo no pós-abolição. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003.

DUARTE, Eduardo de Assis (org.). Literatura e Afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011, vol. 1, Precursores.

DU BOIS, W.E.B. As Almas da Gente Negra. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999.

GUEDES, Lino. Dictinha, separata de O canto do cisne negro. São Paulo: Cruzeiro do Sul, 1938. Coleção Hendi.

_____. Vigília de Pai João. São Paulo: Edição do autor, 1938.

MOREIRA, Paulo da Luz. “Lino Guedes e Vigília de Pai João, – articulando uma voz negra no Brasil.” Mimeo.

SANTOS, Severina Faustino dos. Reconfiguração da identidade negra na poesia modernista: as vozes de Bruno de Menezes e Lino Guedes. Dissertação de Mestrado. Campina Grande: UEPB, 2012.

 

1 É possível encontrar pequenos extratos de tal artigo em DOMINGUES, Petrônio. Lino Guedes: de filho de ex-escravo à “elite de cor”. Revista Afro-Ásia, Salvador, n. 41, p. 133-166, 2010.

 

* Nathália Dias é graduada em Letras pela FALE-UFMG e mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários desta Instituição.

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Literatura e militância em Henrique Cunha Jr.

 

Luiz Henrique Oliveira *

 

A literatura militante de Henrique Cunha Jr. faz-se pela afirmação de sua identidade afro e da crítica erigida às relações raciais no complexo social. Como ele próprio afirma no primeiro número de Cadernos negros (1978, p. 4), “a vida só tem sentido dentro de um trabalho na comunidade”. Este posicionamento explica o motivo pelo qual são retratadas personagens negras em sua variabilidade mais abrangente, ou seja, os tipos sociais do anonimato cotidiano. Aliás, cotidiano que nutre o conjunto da obra (conto e poesia), visto através do prisma dos descendentes de escravos.

A linguagem do escritor é tipicamente filosófica e corrobora para demonstrar a ascensão social do negro. Perpassa o estilo descritivista, bem próximo ao da reportagem. Relativiza dicotomias e maniqueísmos reinantes em nossa sociedade.

Falemos, primeiramente, de alguns contos de Negros na noite.

“Fato comum” remete-nos ao conjunto de situações constrangedoras pelas quais passam os negros no cotidiano brasileiro. O conto se inicia com reflexões de um narrador em terceira pessoa acerca de várias situações que envolvem a ascensão social do negro e sua ilusão de aceitação pelo estrato econômico imediatamente superior. Eis o texto:

 

essa história não contém ingredientes novos, ela repete o dia a dia. Dia a dia que aqui nos serve de relato, para fixarmos algumas idéias (...) para mais facilmente precisar a realidade. A realidade num sentido estreito, de um grupo estreito de pessoas que vivem as frustrações de uma fantasia...
(“Fato comum”, In Negros na noite, p. 9)

 

O “fato” se refere a Paulo Fusquinha, negro que, segundo o narrador, já fez sua autocrítica, o que lhe conferirá credibilidade ao fato a ser narrado. Paulo sempre procurou manter-se distante dos movimentos negros, por julgar que “não tinham nada a ver” (p. 10) as discussões ali acontecidas. Mesmo nascido sob o sol da periferia, filho de funcionário público, estudara e conseguira boa posição: funcionário do banco do estado. Perpassava os espaços da periferia e da elite, obtendo um passaporte ilusório, qual seja, o status econômico.

O problema é que as ilusões do capital não conseguem esconder por completo as apregoadas igualdades da democracia racial. Paulo, em verdade, era dois: o Paulo Fusquinha, “nome e sobrenome da periferia do Rio de Janeiro; nas altas sociedades, do túnel de Copacabana para baixo, conhecido como Negrão, Paulão, Paulo Negrão” (p. 10).

Bem empregado e residente em Copacabana, tornou-se objeto de desejo e/ou fetiche das coroas da “soçaite”. Negrão era trânsito livre, palatável. Além disso, era constantemente elogiado e apologizado pelo seu talento e erudição. O contato com o mundo da alta sociedade fê-lo esquecer-se, por um tempo, do legado impregnado em sua alcunha de periferia. É interessante notar que a (cor da) pele funciona como um significante chave ao mesmo tempo da recusa e da “aceitação”. Recusa e “aceitação”, aliás, caminham lado a lado, tapando os olhos de Negrão para a realidade. Em outras palavras, Negrão está à deriva da recusa e da percepção de sua castração, pois o um e o outro convivem distantes, mesmo dividindo o espaço. Nas palavras de Homi Bhabha (2005, p. 122) para marcar ilusoriamente a falsa aceitação, “a pele, como significante da discriminação, deve ser produzida ou processada como visível”, donde se nota que a falsa aceitação de Paulo passa principalmente pela marca constante, sobretudo nos atos enunciativos, de seu pertencimento étnico.

O fato marcante para Paulo é que ele mesmo, “aceito” pela elite vê-se deslocado quando Carlos lhe chega ao escritório procurando um gerente financeiro, “nome certo” (p. 12). Paulo ficou de dar a resposta ao fim do expediente e, então, propôs-se ao cargo em aberto. Num lapso de recusa e racismo, Carlos oferece a Paulo Negrão a necessária epifania que mudaria a vida deste:

  

_ Negrão, como é? Encontrou meu gerente?

_ Sim, Carlos, encontrei.

_ Sabia. Tinha falado para o pessoal. Você nunca falha, é o homem mais bem informado do Rio de Janeiro. Pois bem, quem é a fera.

_ Eu, Carlos.

O sorriso se desfez no rosto barbeado e a palavra é recomposta meio aos solavancos: _Tá brincando, Negrão!

_ Não, não estou. Eu sou a pessoa no modelo para seus negócios.

_ Negrão, você sabe, aqui entre nós, ninguém duvida dos seus conhecimentos, da sua capacidade, mas você sabe, na diretoria tem gente que não vai aceitar.” (idem, p. 13).

 

O fato serviu para Paulo retomar as suas origens, procurar a sua família. Buscou também proximidade com o movimento negro. Fato ocorrido no campo da ficção mas, se a arte mimetiza o real, há que se abrir os olhos para os “fatos” que se repetem cotidianamente no complexo social.

Na sequência, encontramos “Princesa Liberdade”, conto que se passa no bairro Bexiga, símbolo da junção entre a São Paulo antiga e a São Paulo progressista, também conhecido como reduto da resistência e cultura negras. “Neste endereço, se agitam quatro corpos femininos, impacientes, em meio a uma quantidade de papel, livros, roupas, instrumentos e material de uma peça de teatro: Sônia Maria, Maria Aparecida, Ângela Maria e Marilângela“ (p. 17). As quatro figuravam na vanguarda de muitas outras mulheres, cujas trajetórias estavam amarradas às injustiças e insatisfações com os limites impostos pelo tempo e pela cultura. Além disso, estavam elas engajadas em lutas do movimento negro e feminista.

Segundo o narrador-personagem, as quatro protagonistas deste conto estão unidas também por um destino comum: a procura pela liberdade “de agir, de poder ser, de poder viver muito além do simples imaginável” (p.18). Entretanto, a narrativa, estrategicamente, está dividida em dois momentos temporais: o primeiro, o da juventude das personagens, representa os anseios de cada qual, convergindo para mudanças no complexo social; o segundo, como se verá adiante, marca os destinos das quatro personagens, muito distantes dos sonhos de outrora. Ei-los:

Maria Aparecida é a primeira a deixar a morada conjunta, retornando a uma passividade de tempos em que residira no interior, “longe do dinamismo, longe das ideias calorosas, das festas, presa à vida da casa, dominada pelos olhares dos pais, dentro das mesmas restrições de tempos atrás” (p. 23). Em seguida, o narrador encontra Marilângela pregando em praça pública, “em nome de uma tal bíblia, única verdadeira sobre a face da terra” (p.23). O conforto da obscuridade era o que incomodava o narrador, que comparou a cena vista às de engajamento, protagonizadas pela amiga em tempos passados. “Triste visão do impossível, tão triste que ela preferiu não ser reconhecida abaixando a cabeça entre as páginas do livro escuro” (p. 23).

Por fim, o reencontro entre o narrador e Sônia, que decidem telefonar para Ângela. O narrador toma a linha e inicia a conversa, quando de súbito, o papo é interrompido:

_ Meu marido, ele está chegando. Vou desligar.

_ Mas escute, por que? Ele não sabe com quem você está falando.

Nervosa, com voz trêmula, a ligação foi cortada sem as despedidas habituais. Eu e Sônia nos limitamos a comentar o fato. Embora não tivéssemos sabido neste momento, houve um tapa machista, sem resposta para saber com quem ela falava ao telefone. (p. 24)

 

A cena mostra uma Ângela agora vítima daquilo que combatia. De certa forma, o autor nos coloca frente a frente com os limites da possível (?) ruptura com a tradição opressiva, machista, racista. Apenas Sônia mantinha-se firme em suas ideias e, acima de tudo, firme em vivenciar suas ideias. Por consequência, é possível estabelecer um paralelo com os movimentos subversivos em geral, que chegam a um ápice de conscientização e decaem até se tornarem incipientes. Recuos e mais recuos são golpes duros. O militante Henrique Cunha Jr. utiliza-se das letras como forma de elucidar o descendente de escravo, pois se “as Marias deixaram um discurso incompleto, (...) há outros ecos e servem de ponto de referência e reflexão para outros, mesmo que elas mesmas não o repitam agora” (p.24).

O elemento mágico serve de subsídio crítico em Negros na noite. O conto “O preto que dormia no teto” é um exemplo. A narrativa ocorre num quarto de pensão onde quatro estudantes compartilham o espaço para dormir. Entretanto, o que incomoda um personagem branco é o fato de um preto dormir no teto. A implicância revela um jogo de intolerância e racismo, que ganha intensidade com passar do texto. O embate entre os personagens revela bem o pensamento de Beauvoir (s/d, p. 16): “o ser humano só se põe se opondo”. Deslocando a afirmativa para o caso em questão, por um lado, para que o branco se afirme como sujeito e, consigo todos os preconceitos, seria a implicância a condição essencial. Por outro lado, seria pelo olhar à contrapelo da práxis social que o preto descentraria o branco. Vamos ao texto:

No outro dia se levanta quando todo o pessoal já se agita para não perder a hora, desce do teto. E meio cercado pelo companheiro insatisfeito que lhe dirige a palavra, o preto que dorme no teto com um olhar ríspido, forte e direto como nenhum branco está acostumado a ser olhado por um preto, desarma-o. Ríspido e forte, profundo e majestoso, um olhar sem sorriso e quebra-gelo. O ríspido olhar desarmou o colega, ele cinicamente muda de tom e com um traço de ironia no rosto pergunta:

_ Você quer alguma coisa?

O rapaz meio perturbado, gagueja e completa:

_ Penso que não.

(...)

Esse negócio de segurar no olhar é coisa que todo preto devia saber. Evitaria muito papo furado, Mas não. O pessoal anda apagado, escondido, encolhido, com ar de quem tem medo de bicho papão, tímidos olhares de moleque medroso, que pode ser castigado, repreendido ou barrado (p. 41-42).

 

O conto prossegue relativizando a normalidade das ações cotidianas. A implicância contra o preto que dorme no teto continua.

O autor vale-se do elemento alegórico neste ponto. A estranheza do fato do preto dormir no teto e a não compreensão do sentido daquilo pelos outros bem representa a estranheza/implicância dos branco em relação ao costumes típicos da coletividade afro-brasileira. Mais uma vez, Cunha Jr. convida a refletirmos sobre as relações raciais. Revela ainda, que, no tecido social, a hipocrisia reina de tal forma que o racismo parece ser uma via de mão dupla, e que a vítima histórica não pode e não deve revidar. Vejamos:

Como todas as manhãs, ele (o preto) se levantou, se espreguiçou, desceu pela parede e de repente deu um murro violento no sujeito (branco).

Fim. Nunca mais ninguém falou naquela história. Logicamente o sujeito resmungou, chamou o preto de violento, racista e coisas mais. Na escola, todos ficaram sabendo. Críticas e comentários pela atitude violenta não faltaram. Mas nada disto importa, afinal, que comentários podem fazer um preto que dorme no teto? Comentários são comentários, as ações são ações e dormir no teto... nada melhor do que isso. Se bem que tenha gente que prefira trepar na mesa. 

Além do universo do conto, Henrique Cunha Jr. também perpassou o universo da poesia, aliás, marcadamente pela afirmação de sua identidade e de seu coletivo. Os traços físicos são privilegiados e diferenciados, graças à benfazeja da natureza. O poema “Cabelos” é boa ilustração:

 

Cabelos enroladinhos enroladinhos
Cabelos caracóis pequenininhos
Cabelos que a natureza se deu ao luxo
De trabalhá-los e não simplesmente deixá-los
Esticados ao acaso
Cabelo pixaim

Cabelo de negro. (In Cadernos negros 1, p. 9)

 

A questão identitária aqui busca reverter a dialética “cabelo bom “ X “cabelo ruim”. O poeta usa da valorização de seus cabelos e opõe-se à mística dos cabelos lisos. Relativiza o conceito imperante de beleza, pois produto de um ponto de vista específico que carrega consigo uma determinada e complexa formação cultural.

“Mulher negra” trata da valorização do gênero feminino. O poeta procura retirá-la do costume social de atribuir à mulher negra os papéis concessivos do prazer e da privação de amores reais. Em Cunha Jr. ela ganha respeitabilidade e é desejosa em carne, osso e alma:

 

no mistério de sua cor
encontro toda a fascinação
todo o brilho da África
em mulher negra luzidia
vinda das profundezas do espírito
na noite das alucinações de minha vida
preenchendo o negro do meu coração 

seu rosto de nariz largo
seu cabelo pixaim
sua pele escura como ébano
fazem a beleza em forma negra. (In Cadernos Negros 1, p. 7).

 

Marca constante da poesia de Henrique Cunha Jr. é a valorização do fenótipo negro. Se, na cultura instaurada, a mulher ganha notabilidade também pelos traços físicos, o poeta busca valorizar a alteridade da beleza oficial. Mas para ele, a mulher negra é o Um.

Assim, nota-se que Henrique Cunha Jr. utiliza da literatura como forma de reflexão como elemento propulsor para novas realizações, como ele mesmo afirma, nos Cadernos negros 3 (1980, p. 42) ser “o caminho do reconhecimento de si, na reconstrução da história em oposição a história do branco opressor (...) Portanto é aqui e agora que se deve realizar aquilo que temos de África, quilombo e escravos”.

 

Referências

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Círculo do livro, s/d.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2005.

CUNHA JR. Henrique. Negros na noite. São Paulo: EDICON, 1987.

CUTI et all (orgs.). Cadernos negros1. São Paulo: Ed. dos autores, 1978.

CUTI et all (orgs.). Cadernos negros 3. São Paulo: Ed. dos autores, 1980.

 

Notas

Mestre em Teoria da Literatura – FALE / UFMG.


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Lino Guedes: imprensa e folhetim negro na década de 19201

Eduardo de Assis Duarte*

Negro preto cor da noite
Nunca te esqueças do açoite
que cruciou tua raça.
Em nome dela somente
faze com que nossa gente
um dia gente se faça!
Negro preto, negro preto
sê tu homem direito
como um cordel posto a prumo!
É só do teu proceder
que por certo há de nascer
a estrela do novo rumo!

Lino Guedes

Liberta dos condicionamentos essencialistas com que era apresentada no passado, a formulação das identidades configura-se no pensamento contemporâneo como vinculada estreitamente à produção de discursos. Após o vendaval epistemológico dos anos de 1960-1970 e a emergência política das chamadas minorias, cada vez mais se compreende a identidade como forjada ideologicamente nos processos sociais de identificação. Já que ninguém nasce pronto e acabado na íntegra, somos não o que pensamos ser, mas o que fazemos e o que dizemos de nós mesmos, dos outros e do mundo. Nesse contexto, torna-se instigante e necessário refletir sobre o papel exercido pelos jornais da causa negra, do início do século passado, como formuladores discursivos no processo de construção de um perfil identitário e comportamental para os brasileiros afrodescendentes. Eram órgãos pequenos, de parcas tiragens, mas ligados via de regra a movimentos de arregimentação dos remanescentes de escravos, na difícil trajetória de integração à sociedade de classes. Tinham como bandeira o combate à discriminação e a elevação moral, social e econômica do vasto contingente oriundo do regime escravocrata e abandonado à própria sorte no longo período que se segue ao day after da abolição – o 14 de maio de 1888.

Apesar de ausentes da historiografia voltada para a imprensa no Brasil, jornais como A Liberdade, Sentinela, O Kosmos, Getulino, O Clarim, O Clarim D’Alvorada, Elite ou O Patrocínio, apenas para citarmos alguns editados no Estado de São Paulo na década de 1920, fazem eco a uma jovem tradição que compõe-se de iniciativas anteriores, como O Baluarte, surgido em Campinas em 1904, tradição esta voltada para a inserção do negro na cidadania social pela via de sua incorporação ao universo da cultura letrada. Fazer do excluído um leitor para, quem sabe, vê-lo amanhã escrevendo e exercendo seus direitos – este o desafio assumido pelos intelectuais negros que viam no letramento o passaporte para a inclusão social. Dentro desse escopo, nada mais apropriado que o jornal, com seu charme de modernidade e leveza, passatempo e informação. Desse universo, tomo um exemplo a fim de explorar as relações entre imprensa, literatura e o campo identitário.

Entre 1923 e 1926, circulou em Campinas o semanário Getulino, autoproclamado “órgão de defesa dos interesses dos homens pretos”. De propriedade dos irmãos Andrade, tinha como redator-chefe Lino Guedes2, então um iniciante no mundo das letras, e como redator-secretário Gervásio de Moraes3. Miriam Nicolau Ferrara destaca o jornal campineiro como órgão por meio do qual “se iniciam, efetivamente, na imprensa negra as reivindicações que irão prosseguir até 1937”. E acrescenta: “a imprensa negra combativa surge em Campinas por tratar-se de uma cidade mais racista do que a de São Paulo, onde as pressões contra o negro eram fortes”. (FERRARA, 1985, p. 201).

O nome do periódico remete de imediato a Luiz Gama e a suas Trovas burlescas, cuja primeira edição é de 1859. Como se sabe, Getulino é o pseudônimo utilizado pelo poeta para publicar suas sátiras, e, em edições posteriores, acabou transformado em personagem e incorporado ao próprio nome do livro: a partir desse suplemento de leitura, as Trovas burlescas de Getulino vão edificando a figura do poeta afrodescendente que, por intermédio de uma dicção e, mesmo, de toda uma discursividade calcada no popular e voltada especificamente para ser o lugar da fala do Outro, assume a etnicidade reprimida, clamando contra o preconceito dos ditos brancos e o branqueamento alienado dos mestiços. Alçado assim a porta-voz, o vate negro passa a ser a voz dos que não tem voz – aquele que fala no e pelo coletivo. Ao longo do século XX, a figura de Luiz Gama torna-se emblema do movimento negro, sendo objeto de homenagens e estudos, dentre os quais destacamos Luiz Gama e sua individualidade literária, de autoria de Lino Guedes e publicado pelo autor em São Paulo, no ano de 1924.

Deste modo, já no próprio título, os jovens editores campineiros inscrevem não apenas a homenagem a um dos fundadores da literatura afro-brasileira mas, por outro lado, assinalam sua condição de leitores conscientes de seu papel pedagógico na democratização da cidade das letras, em especial no que tange à presença da população afrodescendente. No caso, trata-se de destacar, junto com a “defesa dos homens pretos”, o vínculo entre a literatura e a luta contra o preconceito racial. Num de seus artigos mais eloquentes, assim se expressa o redator-chefe:

Foi a 29 de julho do ano pretérito que se fundou entre nós o Getulino. Há um ano que seus fundadores, cheios de entusiasmo pela ideia que lhes nascera no cérebro criador, resolveram levar até o fim tão alevantada aspiração: emancipar moralmente seus irmãos, que outrora escravizados, embrutecidos, abjetos, não podiam dar cumprimento ao sublime imperativo da caridade bíblica, Resurge et ambula [...]. O Getulino é como um clarim marcial, a nossa gente tocando a reunir. [...] Nova campanha vai ser iniciada, nova luta contra o indiferentismo dessa gente que parece algemada e incapaz de progresso, que parece desconhecer por completo o que de belo e sublime há no alfabeto. (GUEDES, 1924, grifos nossos).

O texto não deixa dúvidas quanto ao papel idealizado pelos jovens intelectuais negros em sua incursão pela imprensa alternativa. Seu projeto consiste em nada menos que liderar a “emancipação moral” dos afrodescendentes, e a imagem do clarim é suficientemente explícita a esse respeito. Note-se, no entanto, que a missão moralizante se apóia na sedução da palavra impressa: o “belo” e o “sublime” da língua pátria utilizados, a favor da causa, o que significa que, para eles, o fator cultural tem um peso e um papel de relevo no lento trabalho de assunção da cidadania. Com efeito, o Getulino reproduz a feição de outros jornais da época, trazendo o texto literário em meio às notas sociais, comentários os mais diversos, notícias de interesse da comunidade, referências a fatos históricos e editoriais marcados por exortações de cunho político ou moral. Assim, além de colocar a literatura do protesto negro como marca de origem, o jornal se abastece de crônicas, poemas, crítica literária e mesmo de um pequeno romance publicado em trechos.

O Folhetim do Getulino

Para o presente trabalho, interessa-me abordar justamente este último. No caso, a narrativa intitulada A boa Severina, que ocupou a seção “Folhetim do Getulino”, durante quarenta e oito semanas, entre agosto de 1923 e setembro de 1924. Tendo como subtítulo "Cenas do cativeiro", o romance traz como indicação de autoria o nome de José de Nazareth, ao que tudo indica um pseudônimo utilizado por Lino Guedes.4

Ao adotarem a publicação do folhetim, os jovens editores do Getulino inscrevem-se numa tradição centenária na imprensa brasileira. Ao longo do século XIX, praticamente todos os nossos escritores, Alencar e Machado à frente, frequentaram as páginas dos jornais. A febre do romance romântico, utilizado como peça importante da indústria literária e jornalística, fez com que Machado traduzisse Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo, em 1866, mesmo ano do lançamento na França. Longe de ser mero ornamento, a narrativa folhetinizada teve fundamental importância na fixação do hábito de leitura e, consequentemente, na viabilização comercial da imprensa escrita.

A partir das primeiras décadas do século XX, as histórias de amor e aventuras foram cedendo espaço à crônica até se transferirem para o rádio, o cinema e, mais tarde, tornarem-se os carros-chefes da programação televisiva. Entretanto, sua presença nos rodapés dos diários marcou época e não apenas na imprensa tida como comercial. As “tiras” contendo histórias interrompidas, às vezes de forma brusca, fizeram-se presentes tanto nos incertos jornais da imprensa anarquista, quanto nos da causa negra, a exemplo de O Kosmos, órgão paulista que, em janeiro de 1924, inicia o folhetim A família escrava, de Pedro Ribeiro Vianna. Além disso, a estética do roman-feuilleton faz-se presente na ficção voltada para o grande público, como nos livros de Jorge Amado da fase engajada e mesmo depois de Gabriela cravo e canela. Acredito que esta estética ajudou em muito na constituição de um público consumidor para a literatura brasileira do século XX.5

No caso do Getulino e da narrativa de A boa Severina, o projeto implícito ao texto é o de expor as mazelas da escravidão a partir do ponto de vista das vítimas do regime. Para tanto, localiza a ação em meados do século XIX, mais precisamente em 1850, na “Fazenda São Solano”, localizada às margens do Rio Paraíba. A propriedade, “construída nos tempos coloniais”, surge no texto como espaço modelar, típico retrato de inúmeras outras, localizadas em São Paulo, Rio de Janeiro ou Minas Gerais. Já no capítulo 1, o leitor percebe que a trama pretende-se ancorada na concretude histórica, até como forma de ressaltar o caráter paradigmático dos dramas nela contidos. Ouçamos o narrador:

Basta que o leitor saiba que quanto formar a narrativa é autêntico, é verídico, pois como se impressos numa chapa fotográfica, se conservam os passados fatos, nitidamente, na retina de quem os descreve, para que se compreenda, em toda a sua extensão, o que foi o cativeiro no Brasil. (Getulino, n. 2, Campinas, 05/08/1923).

O pretendido realismo insere-se na estratégia de reconstruir, pela via da ficção, a memória da condição escrava, além, evidentemente, de apimentar o texto com a roupagem verista que lhe confere estatuto de autenticidade e maior apelo popular. Por um lado, promete-se ao leitor o relato despido das fantasias românticas de caráter paternalista ou das deformações naturalistas fundadas no darwinismo social. Por outro, se oferece os dados nada desprezíveis do testemunho e do ponto de vista interno, já que as histórias do cativeiro chegarão até o leitor por intermédio de um órgão da imprensa negra dirigido por um filho de ex-escravos. Esse é um fato marcante, pois, até então, as narrativas da escravidão surgiam na literatura brasileira quase sempre pela escrita de autores oriundos da classe senhorial. O propósito de representação da “verdade histórica” é enfatizado ainda pelas imagens da “cena” e da “chapa fotográfica”, verdadeiros paratextos presentes, um, no subtítulo do romance, o outro, no enxerto metalinguístico do primeiro capítulo. O objetivo óbvio é reforçar o caráter e o sentido documental que se quer para a ficção. Examinar até que ponto esse realismo se efetiva é um dos desafios da leitura a que me proponho.

Após construir em rápidas pinceladas a psicologia de alguns personagens – o feitor, o proprietário, a sinhá –, o romance dedica o segundo capítulo à descrição do trabalho forçado, que, naquele momento, consistia em tarefas de dez alqueires de colheita para os homens e de seis para as mulheres. Os que não atingissem o total estipulado iam para o castigo. E logo o texto destaca a figura de Maria Cassange – escrava de quarenta anos que “dera à fazenda nada menos que oito ‘crioulos’, como se chamavam os filhos de africanos nascidos no Brasil”. Tendo que cuidar de um dos pequenos, Maria é punida por ter “colhido café em menor quantidade do que o da ‘tamina’” e apanha as “relhadas” do feitor. O contraponto dramático é estabelecido logo no capítulo seguinte, centrado na figura de Pai Pedro, “velho negro, príncipe de uma das mais antigas estirpes africanas” (Getulino, n. 4, Campinas, 19/08/1923) e líder do pequeno quilombo existente nas matas próximas à fazenda.

Está, pois, montado o cenário para o transcorrer das ações. No entanto, o texto escapa a uma possível dicção triunfalista, pela qual o negro herói derrotaria o branco vilão. O que predomina é justamente o oposto. Após ligeira escaramuça, os quilombolas são enganados por D. Aguirre – um espanhol aproveitador cujo nome surge suplementado historicamente pelas narrativas das conquistas hispânicas – que, depois de tentar vendê-los a outro fazendeiro, termina entregando-os de volta ao Coronel. E esse será o desfecho predominante na maioria dos embates travados nos quarenta e oito capítulos do folhetim. Em termos de ação dramática, não há vitória definitiva que se concretize, apenas avanços delimitados e pontuais.

No episódio do fracassado quilombo, desfaz-se por completo a possível imagem de grandeza ou superioridade do velho africano. Preso à escravidão, Pai Pedro pouco tem da antiga fidalguia, não se destacando nem como guerreiro, nem como líder político. Após a captura, ele reaparece acabrunhado, cumprindo suas obrigações em silêncio até que uma doença mortal o retire da narrativa. Assim, a imagem de afrodescendente que o romance quer destacar é precisamente a do sujeito honesto e do trabalhador enquadrado nas normas vigentes, nunca a do revoltado ou do marginal. Diante disso, a violência existente é sempre obra dos brancos e o sangue derramado, o dos escravos ou escravas.

A faceta verista mostra-se ainda na incorporação de detalhes eticamente obscenos ou vazados na clave da brutalidade bestial ou do grotesco. Alguns exemplos: os suplícios físicos são rotina; a esposa do coronel pede ao padre que lhe revele segredos de confessionário dos escravos; os quilombolas recapturados são marcados a ferro quente, como, aliás, era o costume e constava dos ordenamentos jurídicos dos tempos da colônia6; já o escravo moribundo recusa a extrema-unção alegando “ser filho de padre”...

Além disso, a narrativa abre espaço para a citação e o enxerto, incorpora dados de cronistas e historiadores, passagens de Castro Alves e Machado de Assis, matérias de jornais do século XIX. Entre elas, destaca-se a longa narrativa do assassinato por afogamento de trinta e seis africanos recém-chegados, devido à cegueira adquirida durante a travessia. E ressalte-se que todas estas “cenas do cativeiro” são narradas da perspectiva das vítimas. Com isto, o romance escapa do simples descritivismo, levando as ações a virem acompanhadas da necessária reflexão, que as situa historicamente, a fim de por em relevo a desumanidade dos traficantes e dos senhores de escravos. Por outro lado, o dado escabroso, próximo em alguns momentos da estética do choque naturalista, atende às exigências do formato folhetim, com vistas a impactar e capturar a atenção do leitor.

O tom preponderante em A boa Severina é, basicamente, fatalista e vincula os afro-brasileiros, escravizados ou não, a um destino via de regra adverso. Tal é o caso da libertação e do enleio amoroso que envolve o casal formado pela mucama Severina e o escravo Laurindo e que é o objeto central destas reflexões. Antigo minerador mal-adaptado à grande plantação, o personagem é ajudado (e, ao mesmo tempo, punido) pelo acaso. Um belo dia, o jovem encontra perdido em meio à horta da fazenda um valioso anel pertencente a D. Margarida, esposa do Coronel e senhora de seu destino mesmo depois da alforria. Ato contínuo, repassa a joia, em pleno confessionário, ao Padre Marcondes, implorando a este, sob juramento de reposição futura, que a vendesse e com o dinheiro comprasse a sua liberdade. E assim se faz. Como em todo folhetim, o império da ação se efetiva quase sempre em detrimento da análise psicológica e de uma reflexão mais profunda sobre os seus propósitos ou motivações. Sem pestanejar, o padre cumpre o prometido. Livre da escravidão, o herói parte para o Rio de Janeiro, onde se estabelece como alfaiate. Passam-se os anos e Laurindo não consegue esquecer Severina, a mucama de etnia Mina, cujos traços “se confundem com os dos mais belos tipos provindos da raça árabe” (Getulino, n. 6, Campinas, 02/09/1923), nem o compromisso de ressarcimento do anel. Ou seja, passam-se os anos e o ex-escravo permanece com o coração e a consciência presos ao cativeiro.

Seguindo a tradição folhetinesca, sucedem-se as mudanças bruscas do destino. Após economizar considerável quantia, Laurindo dá provas de sua honestidade ao cumprir a promessa que o libertou: retorna às margens do Paraíba, e não apenas para devolver a joia, colocando na antiga armação uma pedra quase idêntica e tão preciosa quanto a que lhe propiciara a alforria. Traz ainda recursos suficientes para a libertação da amada, e o que encontra é a família dos senhores em plena decadência, após a morte do coronel. A fazenda com outros donos e os antigos herdeiros sumidos no mundo. Devolvido o anel e libertada a mucama, faz-se o casamento. Vivendo agora “na mais negra penúria”, D. Margarida recebe a visita dos noivos, que convidam a antiga sinhá a vir para a Corte morar com eles... E assim se faz. O texto busca ressaltar justamente a “elevação de caráter” (segundo os padrões ocidentais) dos afrodescendentes: seres que não cultivam o rancor e que sabem perdoar. Apesar dos maus-tratos sofridos por ordem de sua antiga senhora, Severina dela se compadece e se dispõe a recebê-la em sua casa. Como se vê, os valores judaico-cristãos falam mais alto e o texto quer fazer crer que são estes os parâmetros para a boa consciência dos remanescentes de escravos, no contexto de sua integração à sociedade pós-abolição.

Partem os noivos para a Corte, mas já nos primeiros dias da lua de mel, a felicidade de ambos é turvada a partir do momento em que Laurindo revela o estratagema que os libertou. A antiga escrava não se conforma em estar livre “devido a um simples acaso” (Getulino, n. 40, Campinas, 01/05/1924). Exibindo claramente a introjeção dos valores dominantes, Severina não admite conviver com a “desonestidade” implícita à operação que viabilizou sua alforria... Entrementes, morre o padre Marcondes e a velha senhora, agora pobre e abandonada pelos filhos, passa a residir com o casal até também falecer meses depois, deixando para eles o anel da discórdia.

Laurindo passa então a ser o único alvo da indignação da esposa, que se sente culpada por ter adquirido a liberdade de forma “ilícita”. E após julgar ter tido uma “visão” do fantasma de D. Margarida, Severina repudia o esposo e se deixa dominar pela ideia de voltar a ser escrava... Um belo dia foge, sem deixar vestígios, e se entrega a um comerciante sem escrúpulos, que rapidamente a negocia junto com um grupo que parte para o interior. Lá chegando, envolve-se no trabalho braçal e o narrador declara que “nesse antro, nesse presídio, o espírito de Severina encontra-se mais satisfeito do que nas ruas movimentadas da Corte” (Getulino, n. 52, Campinas, 14/09/1924). Deprimido e frustrado, após vasculhar a cidade em busca da esposa, Laurindo, agora cognominado “o velho africano” (Getulino, n. 53, Campinas, 21/09/1924), morre deixando todos os bens para ela. No entanto, esta também já havia sucumbido, vítima de uma picada de cobra... E, ao final, os bens acumulados com o trabalho do ex-escravo são surrupiados pelo desonesto testamenteiro, que viaja para a Europa a fim de melhor desfrutar da herança roubada.

Somente a vinculação autoral a um moralismo rígido de feição judaico-cristã pode explicar o comportamento da personagem. De fato, a boa Severina é aquela que prefere a escravidão e a morte à menor sombra de dúvida quanto a sua honestidade. Assim, o texto de José de Nazareth (ou Lino Guedes) exibe a contradição entre a denúncia do sadismo e da barbárie, implícitos à transformação de seres humanos em “peças” de uma colossal força de trabalho não-remunerado e a passividade alienada que, mesmo conhecendo o sofrimento inerente à condição escrava, prefere o cativeiro à liberdade e à felicidade conjugal. A culpa que move o gesto de Severina é própria à consciência submissa que, ao fim e ao cabo, termina por legitimar a escravidão. Seu sacrifício faz dela vítima não apenas de um regime de trabalho, mas, sobretudo, do aparato ideológico que o sustentou durante séculos.

É por esta via que sobressai a sublimação da personagem: através do sofrimento auto-imposto. Ao contrário da Bertoleza, de Aluísio Azevedo, – que se mata para não voltar ao cativeiro –, Severina abdica da vida e do prazer unicamente para se livrar da sombra do “pecado” cometido pelo esposo... Ao contrapor a pureza de caráter da escrava e, mesmo, a fidelidade e honradez de Laurindo – que se esforça anos e anos movido pelo compromisso – à esperteza desonesta do testamenteiro, o texto quer ressaltar a elevação moral dos remanescentes de escravos numa sociedade hipócrita que os discrimina e inferioriza. Mas não terá exagerado na dose?

A atitude da antiga mucama pode, entretanto, até fundar-se em algum exemplo da vida real. Com certeza, a crônica dos eventos pós-abolição registra a ocorrência de ex-escravos que optaram por continuar com seus antigos senhores em lugar de ir tentar uma vida “sem eira nem beira” nos morros ou cercanias das cidades e esta é, sem dúvida, uma das facetas mais perversas do processo abolicionista. Concedeu-se uma aparência de liberdade que mal ocultava a nova escravidão econômica, social e racial. Todavia, a personagem de José de Nazareth (ou Lino Guedes) vai além, pois se entrega a um novo cativeiro junto a senhores desconhecidos e companheiros de infortúnio totalmente alheios ao seu círculo de amizades. As motivações de Severina não se ancoram em fatores afetivos ou materiais. O que a personagem demonstra é uma culpa absolutamente inverossímil que, ao fim e ao cabo, compromete em definitivo qualquer possibilidade de realismo. Ao contrário, o que se tem é a idealização extremada de uma humanidade submissa até nos espaços mais recônditos da consciência, espécie de escravidão mental que inferioriza e aprisiona o ser humano.

Deste modo, o que A boa Severina tem de mérito – a perspectiva interna, pela qual a parcela submetida da sociedade ganha vez e voz para expor seus sofrimentos e denunciar os responsáveis por tão desumana exploração – fica comprometido justamente por um pensamento afrodescendente que se curva aos valores das elites brancas. Se, de um lado, o texto cresce nos momentos em que expõe de forma crítica a verdadeira barbárie consumada pela escravidão; de outro, ele se apequena ao demonstrar o quanto os jovens intelectuais negros, empenhados na formação de uma consciência de cidadania em plena década de 1920, estavam em verdade na incômoda posição de caixa de ressonância do discurso hegemônico e do que Clóvis Moura (1988) denomina “pensamento social subordinado”.

Em seu estudo sobre a imprensa negra no Estado de São Paulo, Roger Bastide (1973), partindo da compreensão do jornal como veículo para a expressão de “aspirações e sentimentos coletivos”, que permitiriam até “discernir a mentalidade de uma raça” (1973, p. 129), analisa diversos órgãos desta imprensa para neles destacar o fenômeno do “puritanismo preto” e seu “elemento essencial”, o “culto das conveniências”:

Faz-se entre os brancos uma imagem estandardizada do negro, como preguiçoso, ladrão, bêbado e debochado; em grande parte, a recusa do branco em aceitar empregados de cor está ligada à força dessa representação. É preciso, pois, destruí-la criando outra imagem, suscitando, por conseguinte, um outro tipo de negro que será valorizado moralmente. (BASTIDE, 1973, p. 150-151).

Valorizado, pode-se dizer, justamente por um discurso marcado em diversos níveis pelo racismo mal disfarçado, que, inclusive, propugnava abertamente o “branqueamento” do país a partir do incremento do fluxo migratório. Disseminado socialmente desde o século anterior, esse discurso dá origem a um conjunto de crenças e estereótipos que colocam o negro num patamar de visível inferioridade frente à mão de obra branca e, mais ainda, se europeia. Ao lado disso, no campo das condições sociais de existência, a baixa (ou nenhuma) escolaridade, o parco poder aquisitivo e a crescente indigência material cada vez mais confinam os remanescentes de escravos naquele “exército de reserva” profissional, no qual impera a mão-de-obra pouco qualificada, e numa espécie de limbo social do qual as elites querem distância e empurram para a “sub-urbe” dos morros e periferias distantes.

Nesse contexto, o “puritanismo preto”, traduzido em culto exagerado das convenções sociais, atuaria junto aos estratos subalternizados em função da cor como consciência subordinada, ou seja, como contra-face ou ponta de lança oculta do discurso discriminatório. No fundo, esse puritanismo revela a assunção pelos próprios afrodescendentes do discurso que os rebaixa. A valorização do “bom comportamento” e das aparências, a começar pela tão exigida “boa aparência” corporal, que leva ao alisamento dos cabelos, seria a resposta possível e a atitude social permitida em termos de afirmação identitária. A partir desse quadro, pode-se compreender o empenho dos que fazem o “Folhetim do Getulino” em “branquear” as consciências e procedimentos dos personagens escravos, entendendo-se o verbo no sentido de assunção do pensamento e dos comportamentos prescritos pela moralidade hegemônica vigente no país recém-saído da escravidão. A título de ilustração, veja-se trecho de um editorial de O Alfinete, publicado em 1918:

Quem são os culpados dessa negra mancha que macula eternamente a nossa fronte? Nós, unicamente nós que vivemos na mais vergonhosa ignorância, no mais profundo absecamento (sic) moral, que não compreendemos finalmente a angustiosa situação em que vivemos. Cultivemos, extirpemos o nosso analfabetismo e veremos se poderemos ou não imitar os norte-americanos. (O Alfinete, n. 2, 03/09/1918, Apud MOURA, 1988).

Assim, a idealização de uma negritude conformada aos padrões brancos, destacando a honestidade, o apego ao trabalho, a pureza d’alma, a fidelidade, a família, a maternidade e demais valores caros à pequena burguesia urbana, substitui no romance o tema das revoltas negras consignadas na história ou mesmo as alusões ao passado ancestral, com seus saberes e cultos. O puritanismo oriundo das crenças de um proletariado negro que almeja ascensão e reconhecimento social e, para tanto, reproduz os valores dominantes, termina comprometendo o realismo da reconstrução histórica. Apesar disso, A boa Severina traz à luz um momento importante na tomada de consciência da cidadania afro-brasileira em seu processo de transformação. Se o narrador negro tem sua fala marcada pelos estereótipos então vigentes – e isto fica explícito até no emprego do adjetivo “negro” com significação pejorativa – tal fato revela os percalços e as vicissitudes do processo de afirmação identitária. Mas, por outro lado, o gesto de assumir a narrativa da história da raça revela o empenho em fazer-se presente na cidade letrada para tocar como sujeito na memória de um passado que aprisionou não apenas os corpos mas também as mentes e os corações.

Notas

1. Registro aqui minha dívida (e minha gratidão) para com a historiadora Júnia Salles, pela inestimável ajuda no acesso aos jornais mencionados neste trabalho, além de outras indicações da maior relevância para a pesquisa. Agradeço ainda à professora Conceição Flores pela referência ao Alvará encontrado na Torre do Tombo. Texto extraído do livro Literatura, política, identidades. Belo Horizonte: FALE-UFMG, 2005, p. 146-161.

2. Lino Guedes notabilizou-se por sua atuação na imprensa negra dos anos de 1920 e de 1930. Como poeta, publicou O canto do cysne preto (1926); Ressurreição negra (1928); Black (1928); Negro preto cor da noite (1932); Urucungo (1936); O pequeno bandeirante [s. d.]; Mestre Domingos (1937); Sorrisos do cativeiro (1938); Vigília de Pai João (1938); Dictinha (1938); Suncristo (1950); e Nova inquilina do céu. (1951). Fontes: MENEZES (1969) e COUTINHO E SOUSA (2001).

3. Gervásio de Moraes atuou também em outros órgãos da imprensa negra. E deixou publicado o volume de contos Malungo (1943). Fonte: GOMES (1977).

4. Esta é uma questão ainda em aberto, dada a escassez de informações sobre o autor. Outra dúvida ainda não de todo esclarecida envolve a data de nascimento de Lino Guedes. Para Oswaldo de Camargo (1986, 1987), o autor nasceu em 24/06/1897. Já para Raimundo de Menezes (1969), Eduardo de Oliveira (1998) e Zilá Bernd (1992), Guedes teria nascido em 23/07/1906, informação confirmada pelo catálogo da Biblioteca Mário de Andrade. Estando correta esta última data, o autor teria assumido a chefia de redação do Getulino (e também a escrita de A boa Severina, caso se confirme o pseudônimo) com apenas dezessete anos, o que parece improvável e, mesmo, inverossímil.

5. Para o aprofundamento da questão, ver Marlyse Meyer, Folhetim: uma história e As mil faces de um herói canalha, op. cit.

6. No Índice cronológico de leis, volume I (ANTT) dos Arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa, consta Alvará datado de 3 de março de 1741, determinando que “todos os negros que forem achados residindo voluntariamente em quilombo sejam marcados num ombro com a letra F; e se na ocasião de os marcarem se verificar já estarem marcados, então se lhes corte uma orelha.” (p. 235 v).

Referências

BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: perspectiva, 1973.

BERND, Zilá. Poesia negra brasileira: antologia. Porto Alegre: AGE, IEL, IGEL, 1992.

CAMARGO, Oswaldo de (Org.). A razão da chama: antologia de poetas negros brasileiros. São Paulo: GRD, 1986.

CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito: apontamentos sobre a presença do negro na literatura brasileira. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1987.

GETULINO, Órgão de Defesa dos Interesses dos Homens Pretos. Números 03 a 64. Campinas, 12/08/1923 a 20/12/1924.

GUEDES, Lino. (Pseud. José de Nazareth). A boa Severina: cenas do cativeiro. In: Getulino, n. 03, de 12/08/1923 a n. 54, de 28/09/1924.

GUEDES, Lino. O “Getulino” e sua influência em nosso meio social. Getulino, n. 64, 20 dez. 1924, p. 1.

MENEZES, Raimundo de. Dicionário literário brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 1969.

MEYER, Marlyse. Folhetim, uma história. São Paulo: companhia das Letras, 1996.

MEYER, Marlyse. As mil faces de um herói canalha. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.

MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.

OLIVEIRA, Eduardo de. Quem é quem na negritude brasileira. Brasília: secretaria Nacional de Direitos Humanos; Congresso Nacional Afro-brasileiro, 1998.

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Literatura negro-brasileira: Memória dos meus carvoeiros e No reino da carapinha,

de Fausto Antonio

 Paulo Sérgio de Proença*

 

Saem a lume, enfim, mais duas obras de Fausto Antonio. Criativamente editadas. Duas obras em um tomo: a quarta capa de um título passa a ser a primeira do outro (e vice-versa), em movimento que vai de fora para dentro, sugerindo convergência de temas e motivações literárias. Alusiva ao primeiro título, a capa tem ilustração de um baobá, em fundo verde; protegidas pelo tronco dessa árvore mítica, adultos dão as mãos a crianças e, iluminada, uma face negra: lábios carnudos e sedutores se insinuam, alimentados também por um nariz negro que aspira o ar de vida que jorra o baobá. A capa do segundo título, em fundo sépia, faz brotar uma volumosa e solene carapinha, sem defeito e sem vergonha, insinuando, também ela, uma sadia, imponente e orgulhosa feição negra.

O autor não é neófito na arte. Paulista de Campinas, já há mais de trinta anos a enxada do labor marca suas mãos e, nos sulcos desse terreno, produziu frutos nada desprezíveis, de variado tipo: romance, conto, novela, teatro, poesia, conto infanto-juvenil, crítica. Aqui vão alguns títulos: 1) Teatro: Arthur Bispo do Rosário, De que valem os portões, Rutília, Estamira, Patuá de palavras; 2) Poesia: Fala de pedra e pedra, Elegia de descalvado, Minotauro de fomes e labirinto; 3) Ficção: Exumos, Vaníssima senhora, Descalvado.

Fausto Antonio é paulista de Campinas; professor universitário (doutor em Teoria Literária e História da Literatura pela Unicamp e professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira-UNILAB), destaca-se também por ser alentado ensaísta, gênero em que seus escritos não se furtam a tratar de temas caros e urgentes relacionados à condição negra em geral, no Brasil; nessa tarefa mostra ele o compromisso com a luta, motivada e sustentada pela contínua afirmação da negrura: movimento, afirmação e ideal de libertação efetiva do jugo da branquitude. Como educador, volta-se especialmente para discutir a reforma dos conteúdos escolares; para ele, deve haver urgente descolonização dos currículos e propostas educacionais afins para, com isso, haver igualmente a descolonização das mentes, defendendo que isso não pode ser feito sem o enquadramento no espaço (e no tempo), como arena de luta, no que segue Milton Santos.

Interessa-nos por ora não o ensaísta, mas o ficcionista, particularmente as duas obras aqui retratadas. Fausto Antonio tem escrito com regularidade nos Cadernos negros,

uma trincheira literária em que se refugiam autoras e autores de dilatado quilate, de quem passa longe a boa vontade das editoras (é que, no reino das cores, inclusive editoriais, polos opostos não se atraem); para elas e para eles as portas do mercado das letras impressas quase sempre se fecham1. Isso explica, em parte, a razão pela qual Fausto Antonio, apesar de mais de trinta anos dedicados à Literatura, ainda segue desconhecido do grande público, dívida mitigada pelo papel desempenhado pelos Cadernos negros. Nesse veículo, publica regularmente poesia e prosa.

A qualidade literária dos escritos do autor mereceu menção na coletânea Literatura brasileira e afrodescendência no Brasil (2011), organizada por Eduardo de Assis Duarte, professor da Universidade Federal de Minas Gerais; essa ousada e inédita antologia apresenta síntese crítica sobre cada autor e coube a Maria Beatriz Bastos analisar e apresentar a obra de Fausto Antonio, no terceiro volume (p. 293-302), dedicado à contemporaneidade. Bastos nota a ampla área de atuação do autor e as diferentes características que há entre a obra ensaística e a de ficção e conclui que ele “afirma, assim, sua opção por uma literatura que não seja ‘primariamente militante, em sentido panfletário’, mas que almeje ‘uma militância artística, que procure atingir a universalidade da condição humana’” (p. 293). Em excertos vários reproduzidos, pode-se perceber a sensibilidade literária do autor paulista.

Outro comentário crítico e exato foi oferecido pela professora Nelly Novaes Coelho, da Universidade de São Paulo, publicado na Revista de Letras da PUC de Campinas, em dezembro de 1996 e também no volume comemorativo dos vinte anos de prosa do autor. A Profa. Nelly Coelho reconhece na escrita de Fausto Antonio uma força significativa, cujo efeito é o desmoronamento de certezas, a partir do trato com palavras. Assim abre ela seu trabalho, reproduzindo trecho de Exumos:

Meu ofício é a palavra, o seu rito, a sua devoção nas pedras, sua mensagem verbal, sua dormência e substancialidade de barro onde vivo fustigando, pisando. Tanto que quando penso essa ideia é permeada pela palavra.

A profa. Nelly Coelho também produziu Escritores brasileiros do século XX: um testamento crítico. A obra não tem compromisso com a indicação e valorização de autores negros, como se percebe pelo título; contudo, ao listar 81 autores, dentre os quais muitos já consagrados pela crítica, inclui Fausto Antonio, o que é mais um abalizado testemunho da

qualidade de sua obra literária. O comentário da quarta capa registra este pertinente comentário:

Ao lado dos mais conhecidos (Amado, Graciliano, Rosa, Mário, Oswald, Ubaldo, Loyola...), aparecem nomes que a insensibilidade crítica (ou má-fé) e o desinteresse do “mercado” colocaram numa espécie de “limbo” [...] e outros que o desinformado (ou defraudado?) “público” precisa conhecer (Vicente Cecim, Olavo Pereira, Agrippino de Paula, Fausto Antonio [...]”.

Elemento adicional que atesta não só a qualidade, mas também o impacto da obra de Fausto Antonio é o interesse que começa a aparecer em pesquisas acadêmicas, o que é alvissareiro. Exemplo disso é o estudo “A representação da morte nos contos de Cadernos negros, v. 34”, de Miriam Alves, publicado pela revista A Cor das Letras, periódico dos Programas de Pós-Graduação do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana. Para Alves, a Morte, no conto “O escuro das palavras”, que ela considera belíssimo, é metáfora de recriação:

Enfim, este é um dos contos, entre os seis outros que tematizam a morte e o morrer publicados nos Cadernos Negros, volume 34, no qual a Morte não é relatada através de fatores de violência, extermínio, miséria, balas perdidas, punição divina e outros, é antes de tudo uma recuperação da concepção de culturas africanas onde a Morte é um elemento da vida e os que se foram não desaparecem, se tornam ancestrais.

“A representação da infância em ‘Memória dos meus carvoeiros” e “Meninos carvoeiros” é título da pesquisa que compara o trabalho de Fausto Antonio e um poema de Manuel Bandeira; produzido por Rafaella de Queiroz Mendes, sob orientação da Profa. Maria Carolina de Godoy (orientadora), ao amparo do projeto “Literatura afro-brasileira e sua divulgação em rede”, da Universidade Estadual de Londrina, a comparação entre as duas peças busca identificar contrastes e semelhanças a partir da representação da infância e relações com espaços de pobreza. Essa pesquisadora, em coautoria com sua orientadora, produziu também “Personagens negras e identidade em narrativas de Cadernos negros”, trabalho que analisa Memória dos meus carvoeiros.

No “Colóquio Africaméricas - Literaturas e Culturas”, promovido pela UNEB-Universidade do Estado da Bahia, Simone Rodrigues de Carvalho apresenta o estudo “A representação do corpo negro em Vaníssima Senhora, com a finalidade de apontar pistas para releitura do corpo negro, a partir de conotações positivas para a produção literária afro-brasileira.

Essas ocorrências indicam que a obra de Fausto Antonio, aos poucos, vai sendo estudada, divulgada e conhecida; isso ocorre não sem mérito literário de sua produção que,

afinal, tem algo a dizer e, no que tem a dizer, nos reconhecemos – essa, afinal, é a marca da grande literatura.

Chegamos a No reino da Carapinha; notamos que o autor nos projeta no reino encantado da ficção infanto-juvenil. Nessa aventura envolvente, os heróis são adolescentes negros para os quais há motivação onomástica no processo de identificá-los; todos os nomes são sonoramente africanos: Oubi, Kaya, Kaiodê, Masai, Dandara, Odara, Kamau, Luandê, Loane, Zuma, Kalunga. Não faltam outros ingredientes do gênero como palavras mágicas onomatopaicas que servem para transportar de um lugar para outro, para livrar de um perigo; a vovó, depositária da tradição do saber ancestral africano oralmente transmitido às crianças; aventuras, brincadeiras diversas, sobretudo com as formas das letras, sugerem uma espécie de simbiose lúdica com o mistério das palavras, construído pelas formas das letras que as compõem; nesse reino e em suas aventuras, não faltam adivinhações que suscitam a curiosidade dos heróis infanto-juvenis. Nossos heróis são desafiados a resolver charadas e mistérios e o fazem com inteligência e com habilidade no uso da palavra, cujo poder mágico sintetiza no corpo os mistérios da existência; na vila, “tudo se faz em círculos, as notícias correm pelas palavras, pelo corpo, pelas memórias e pela ancestralidade de cada um” (p. 15).

Essas palavras, de puro arrebatamento lúdico, carregam, da mesma forma, indiscutível filosofia teleológica, na qual se encharca de sentido o mergulho no escuro: “a vida nasce no escuro e voltaremos num incerto amanhã para o escuro, não devemos ter medo de onde viemos e para onde voltaremos. Todos então sorriram e cerraram bem firme os olhinhos para saborear o escuro” (p. 16-17).

A pele escura e a negritude passam a ser referência a partir da qual é feita a leitura do mundo, a chave hermenêutica que dá sentido ao modo negro de existir, conforme as cantorias da quizomba da festa de Sayomi:

Negros guerreiros
Jogavam caxangá
Tira bota
Deixa Zambelê ficar
Guerreiro com guerreira
Fazem zigue-zigue e zás.

Nossos heróis moram na Vila Valongo, o que é mais do que sonoridade motivada. Valongo é nome de um cais no Rio de Janeiro que serviu para comércio de escravos, por onde, acredita-se, passaram aproximadamente um milhão de africanos. A área foi recuperada recentemente graças a escavações arqueológicas autorizadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Ele figura no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, o patrono da literatura afrodescendente no Brasil. Essa recuperação dialógica com nossa história é um item de força que move a trama, sustentada por inspiração ancestral. Valongo, agora, não é mais lugar para escravizados, mas para o reino mágico dos que recebem a sabedoria antepassada, pelos fios mágicos das carapinhas.

A Vila Valongo e o Reino da Carapinha se encontram num sonho que nunca acaba. A vovó Dona Doca instrui as crianças: “vocês terão, no Reino da Carapinha, de recuperar um livro muito antigo de histórias. Mas não é u livro escrito, é um livro falado” (p. 23-24). Nesse reino, por meio de palavras, sete crianças têm a missão de resolver doze enigmas, o que fazem com sucesso; afinal, a sabedoria está com as crianças: “o livro antigo nas cabecinhas de cada um deles [...] o livro falante estava aberto e as carapinhas serpenteavam novas e velhas histórias” (28). As carapinhas, vistas sob nova perspectiva, portam novos valores; pelos fios das carapinhas ocorre a ligação umbilical com nossa história e com nossos antepassados.

Em No reino da Carapinha Carlindo Fausto opera com êxito a fuga a modelos impingido por brancas de neve e bonecas Barbie, como se somente essa moldura pudesse ser idônea para captar os lances de puro arrebatamento prazeroso que não está na exclusividade da superfície dérmica. É possível – necessário! – ser criativo e alternativo à hegemonia do branqueamento que ainda impera em nosso país, reforçada na imprensa em geral e na produção literária de forma ainda predominante.

Vejamos agora Memória dos meus carvoeiros, romance que retrata a saga de uma família negra ampliada e os desafios do drama humano de existir no reino da branquitude. A memória é um gênero complexo, que costura dimensões diversas do processo de produção que inclui, dentre outros elementos, presenças (psicanalíticas?): sensações autônomas que nos seduzem e ganham o direito de nos (i)mobilizar; rendidos a elas, somos condenados a nos libertar por meio da escrita – memorial – que suscita associações e revivências: “tenho memória; logo, existo” (p. 19). O narrador, de forma oportuna, acrescenta que a lembrança tem também um discurso de subsolo (p. 45).

O texto tem paragrafação rarefeita, o que se combina com o gênero; afinal, é seguido o fluxo da memória; seletiva que é, não tem compromisso com a cronologia nem com a conexão de causa e efeito das peripécias narradas; tem outra gramática, a do sonho; tem outras motivações, as da reintegração simbólica dos elos perdidos que nos fazem vislumbrar o retorno ao infinito, o “retorno para nós mesmos”, como encerra o narrador o seu relato.

Além dessa característica estrutural, as conexões textuais são densas e, por isso, tensas, com associações que fogem ao lugar-comum e formam sínteses que têm amplitude

filosófica e ampliam possíveis sentidos ligados à coerência global da obra, como estas, para citarmos poucas, que se explicam em relação de complementaridade: “a negrura era um bem nosso, que a sociedade teimava em não aceitar” (p. 25); “a morte é um bem de cada um” (p. 26); “ruflar demiurgo dos tambores” (p. 31); “a pureza era uma transgressão de foro íntimo” (p. 34); “o beijo era a metáfora da criação e da vida” (p. 35); o amor merece esta reflexão: “como a vida e a morte, é um motor para todos os infortúnios e o é também para a libertação” (p. 83)2.

A abertura do livro relata o encontro de uma criança com a morte da avó; essa experiência, além da sensação de finitude, marca a percepção da transitoriedade da vida, da peregrinação, que passa a ser condição existencial; em moldura histórica, isso evoca o drama dos antepassados negros na diáspora africana.

Há diversos índices relativos à dimensão social: logo de início ficamos sabendo que a sala em que o corpo da vovó estava sendo velado era toda a casa; os patrões não tinham registrado os carvoeiros (para sonegar-lhes os direitos trabalhistas):

[...] as lembranças da minha mãe carvoeira, do meu tio Ernesto também carvoeiro e dos avôs sujos de carvão, queimados pelo fogo da lenha e pelas palavras interditas por um ditado mudo no papel, que fervilhava de ideias de vozes, de cores e de memórias que o dono da fazenda suprimia e marcava a ferro (p. 9).

A injustiça e desumanidade dos patrões não estava somente na supressão dos direitos; ia muito além disso, atingido as fronteiras da exploração infantil. Nesse reino maldito do lucro curtido em elevadas temperaturas, a infância de seres negros era cozida sem piedade e a dimensão lúdica própria dessa fase importante afogou-se em cinzas3. A infância do titio se passou assim, com o carrinho do trabalho se confundindo com o brinquedo:

[...] um carrinho que ele, entre homens, meio escondido, imaginava. Mas era a imaginação curta, no tempo de quem trabalha, interrompida por ordens que amassavam a senha lúdica de menino, que devia carregar a lenha e alimentar

a madeira recozida, o carvão que reduzia a infância e todas as letras [...]. Acordar cedo para carregar a lenha e adiar a infância, que existia só no sonho, com brincadeiras e anjos que enrolavam as fantasias que diariamente eram afogadas na fumaça e nas brasas que ardiam (p. 80).

Não só os patrões lesavam os negros; a polícia também. Além de ter seus direitos suprimidos, como acusa e lamenta, de forma consciente, Dona Lindinha: “Em São Paulo, os negros não podem andar juntos; a polícia leva preso” (p. 55).

Nessa saga da família, unida pela solidariedade ancestral, predomina o protagonismo de mulheres: “Eram elas, as mulheres da minha vida, que me aproximavam do Eterno” (p. 44). Eram elas, as portadoras de sabedoria, e para elas “a oralidade era o corpo, era tudo” (p. 15). Nesse grupo privilegiado, a mãe ocupa destaque: “Desde sempre mamãe era a referência segura e repositório dessa lenha matriarcal que queima no seio íntimo e nos corpos que lembram a madeira, o cheiro esfumaçando que nunca abandonara os meus” (43).

Há uma espécie de relação vital com os espaços em que o narrador convive com os seus carvoeiros e demais companheiros; esses lugares são dotados de vida e, por assim dizer, desempenham um papel não adjuvante nos plots que emolduram. Por exemplo: o narrador, na Rua da Abolição “conversava com os filhos da negrura, olhava atentamente os cortiços, a negrada conversando, os batuques que surgiam e outros encantamentos tingidos nos tecidos” (p. 17).

Nessa trama os heróis e heroínas são negros e negras, gente simples que tem em seus corpos e vidas as dimensões próprias de nossa humana natureza. O barbeiro Raul e sua atenção paterna com as crianças; Dona Leontina e a interpretação das Escrituras, nelas encontrando motivação para enfrentar os descaminhos de nossa peregrinação. Nardinho, que oferece pão com pinga em um baile: daí que “nem só de pão vive o homem”; desdobram-se disso momentos lúdicos no baile em que todos cantam “pão com pinga”: “No fundo, queríamos, os carvoeiros, o pão espiritual da origem” (p. 57). Darlene é revestida de grande dramaticidade romanesca em seus vínculos com o narrador. Começam com o episódio da forminha, acidental, que se projeta em uma continuidade existencial; na adolescência, a aproximação enamorada com beijos trocados prenhes de sonhos e, depois, o distanciamento não esperado: “A separação ela dizia, foi uma forma de cultivar algo eterno e intocável” (p. 69).

Elemento que concentra grande força dramática e inspiradora é a relação entre o trabalho com o carvão e o trabalho com as letras-palavras: “os olhos do titio tinham aprendido a ler o carvão queimado (p. 79); com a memória, pois a palavra lembrada é um carvão aceso;

com a palavra escrita: “escrever e bordar os sentimentos puíam as suas ideias e alargavam o tempo, a distância” (p.11).

A palavra escrita é importante e necessária; contudo, não se pode prescindir vivacidade constitutiva da palavra oral, que “[...] aquela voz negra de todos os tempos e capaz de encantar e, no encanto, revelar a sua própria essência, a perenidade dessa conversa iniciada e jamais encerrada. As palavras eram sementes. Sementes de uma Baobá, que se abria como um portal” (62).

A pena com que Fausto Antonio escreve a obra é um carvão; a tinta é o calor das chamas dos fornos em que as suas crianças carvoeiras trabalhavam; nessa representação memorial escrita, diz o narrador, “vou aos meus mais velhos e à percepção de uma linguagem idiossincrática, que me aproxima da plenitude de um encontro com o amor de carne e de fogo que se conjuga com o amor pelos meus, que é só pureza do fogo ancestral ardendo” (p. 78). Escrever, para ele, é um ato de amor.

Quem partilha dessa sina, quem tem a negritude no corpo cinzelada a carvão, fogo incandescente, emociona-se com essa narrativa cheia de vida, escrita com amor ardente, no sentido mais literal da expressão.

Referências

ALVES, M. A representação da morte nos contos de Cadernos Negros 34. In: A Cor das Letras. Universidade Estadual de Feira de Santana. v. 12, n. 1 (2011). Disponível em: http://periodicos.uefs.br/ojs/index.php/acordasletras/article/view/1492/1039.

ANTONIO, Fausto. Vinte anos de prosa. Campinas: Arte Literária, 2006.

COELHO, Nelly Novaes. Escritores brasileiros do século XX: um testamento crítico. Taubaté, SP: Letra Selvagem, 2013.

DUARTE, Eduardo de Assis (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, 4 vol.

HONWANA, Luís Bernardo. As mãos dos pretos. Disponível em: http://docslide.com.br/documents/luis-bernardo-honwana-as-maos-dos-pretos.html.

MENDES, R. Q. A representação da infância em Memória dos meus carvoeiros” e “Meninos carvoeiros”. In: SILVA, J. S.; BRANDINI, L. T. (Orgs.). Anais Eletrônicos do IX Colóquio de Estudos Literários. Londrina (PR): UEL, 2011. Disponível em:
www.uel.br/eventos/.../Rafaella%20de%20Queiroz%20Mendes_texto%20completo.pd.

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 * Paulo Sérgio de Proença é Professor da área de Língua Portuguesa na UNILAB – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Campus dos Malês (BA). É autor, entre outros, de Sob o signo de Caim: Machado de Assis e a Bíblia (2015), O Diabo protagonista em Machado de Assis: dilemas da eterna contradição humana (2017) e de O protagonismo do Diabo em Machado de Assis (2018). Em 2019, concluiu estágio de Pós-doutorado junto ao Programa de Pós-graduação em Letras, Estudos Literários, da UFMG.


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