A africanidade na obra Viola de Lereno de Domingos Caldas Barbosa
Laura Maria Almeida Oliveira*
Domingos Caldas Barbosa
Filho da mestiçagem brasileira, de mãe negra, angolana, escrava alforriada e pai branco, português, Domingos Caldas Barbosa ficou conhecido no século XVIII por suas modinhas, lundus, seus versos improvisados e por ter sido um grande agitador dos salões da alta nobreza de Portugal. Alguns biógrafos afirmam que o escritor nasceu no meio do Oceano Atlântico em 1740, numa viagem que sua família fazia de regresso ao Brasil. Outros acreditam que tenha nascido na cidade do Rio de Janeiro.
Sobre sua educação, o poeta reúne em sua formação dois elementos dicotômicos, o clássico[1] e o popular[2]. Tomarei o primeiro como aquele oriundo da cultura aristocrática europeia. E o segundo como vinculado ao repertório que advém das culturas africanas trazidas ao Brasil pela transmissão oral de seu povo escravizado, mas ligado também ao contato com as tradições populares portuguesas.
O clássico e o popular são elementos que nos aparecem já no título de seu livro mais conhecido, Viola de Lereno, coletânea que reúne suas mais importantes cantigas, publicada em 1760, em Lisboa. O nome Lereno surgiu quando o poeta foi aceito na Arcádia de Roma, precisaria então escolher um nome de um pastor Arcádio e tendo como inspiração o poeta Rodrigues Lobo, cujo codinome era Lereno. Contrapondo essa alcunha o poeta escolhe como acompanhante de seus versos e improvisos, a viola de arame (a ancestral da atual viola caipira), um dos instrumentos mais populares da época, diferente dos refinados instrumentos do século XVIII.
Sua formação educacional justifica essa duplicidade entre o clássico e o popular em sua obra. Estudou em Colégio Jesuíta, onde o plano escolar era voltado para as “sete artes liberais e da filosofia”, divididos em duas etapas: o elementar chamado de Trivium (Gramática, dialética e retórica), e o mais desenvolvido Quadrivium (Geometria, aritmética, música e astronomia). Essa formação estandardizada era balanceada com a sua vivência na então jovem colônia, Rio de Janeiro, onde convivia com pessoas de camadas mais baixas e de diferentes etnias.
Logo após sua temporada no Colégio, Domingos Caldas Barbosa é recrutado para o exército em 1761. E parte para a colônia do Sacramento a fim de executar o Tratado de Pardo[3]. Sua participação nas forças armadas foi um dos insumos para a sua produção, a exemplo do poema “Zabumba”:
Amor ajustou com Marte
Vãos Mancebos alistar,
Um lhes dá trabalho honroso,
Outros os faz rir e zombar:
Tan, tan, tan, tan Zabumba
Bela vida Militar;
Defender o Rei e a Pátria
E depois rir e folgar
[...]
(Viola de Lereno, v. 1, 1944, p. 31)
No primeiro verso temos “Marte”, o deus grego da Guerra, elemento da mitologia tida como o berço da cultura clássica ocidental. Percebemos a influência de sua educação nesses versos, muito diferente do contexto de outros negros no Brasil no século XVIII. Já na segunda estrofe, o termo “Zabumba”, que remete à presença africana, é acompanhado no poema das onomatopeias “tan, tan...” que rementem aos toques do tambor, gerando fluidez e musicalidade no texto.
De volta do exército, Caldas Barbosa parte para Portugal, onde pretendia estudar no Curso de Leis na Universidade de Coimbra. Ao contrário do que muitos estudos afirmam, ele nunca chegou a concluir o curso. Em seu início residindo em Portugal teve uma vida bastante conturbada e de dificuldades, que só se amainariam com o apadrinhamento dos irmãos José e Luís de Vasconcelos e Souza, aristocratas lisboetas.
Mesmo pertencendo de forma indireta à elite intelectual e literária, o escritor brasileiro sofreria ataques racistas, o maior deles proferido pelo poeta Bocage, no soneto intitulado Pena de Talião:
Chamaste grande, harmônico a Lereno
Ao fusco trovador, que em papagaio
Convertes depois, havendo impado
Com tabernal chanfana, alarve almoço
A expensas do coitado orangotango.
(BOCAGE, Soneto e outros poemas, 1994, p. 52)
Animalizações como papagaio e orangotango são colocadas neste poema como seres que apenas repetem, sem pensamento. Mas esta não seria a única ofensa que Domingos Caldas sofreria. Há outro poema em que Bocage o ridiculariza, numa tentativa maldosa de descrever as reuniões que aconteciam na Academia de Belas Artes de Lisboa, a “Nova Arcádia”, fundada e presidida por Caldas Barbosa.
Preside o neto da rainha Ginga
A corja vil, aduladora, insana;
Traz sujo moco amostras de chanfana
Em copos desiguais se esgota a pinga.
Vem pão, manteiga e chá, tudo à catinga;
Masca a farinha a turba americana;
E o orang-utang a corda a banza abana,
Com gestos e visagens de mandinga
Um bando de comparsas logo acode
Do fôfo Conde ao novo Talaveiras;
Improvisa berrando o rouco bode;
Aplaudem de contínuo as frioleiras
Belmiro em Ditirambo, o ex-frade em Ode,
Eis aqui do Lereno as quartas-feiras.
(Líricas e sátiras de Bocage, 1980, p. 181)
Termos como Ginga, catinga, banza, mandinga, são da cultura africana usados aqui de maneira pejorativa, considerados por Bocage como uma cultura menor. O poeta responderia a essas ofensas em versos de maneira muito mais sutil do que os ataques que sofrera. Referindo ao conhecido ateísmo de Bocage escreve:
De todos sempre diz mal
O ímpio Manuel Maria,
E se Deus o não disse
Foi porque não o conhecia
Apesar de tudo, foi em terras lusitanas que Domingos Caldas Barbosa ficou consagrado como poeta, improvisador e tocador de viola. Conhecido por toda corte e nobreza por sua musicalidade e poesia.
Viola de Lereno: Poesia e Música
Antes de conhecer e analisar a poesia de Domingos Caldas Barbosa, nós iremos atentar para dois grandes gêneros musicais, que estão presentes na obra e vida do poeta: a modinha e o Lundu.
As formas de produção cultural e artística passaram por mudanças no início do século XVIII, a crescente população urbana possibilitou o alcance à arte associada até então à aristocracia. A modinha é um dos gêneros musicais mais importantes criados neste período. Rui Vieira Nery[4] nos diz a respeito da modinha, que “ao longo da segunda metade do século XVIII assistiu-se por toda a Europa a um desenvolvimento da canção como forma de expressão musical urbana a que Portugal naturalmente não poderia ficar alheia”.
Quanto ao “inventor” desse gênero pouco se conhece, mas sem dúvida, entre os estudiosos da música, foi Domingos Caldas Barbosa o maior difusor desse gênero em sociedades luso-brasileiras.
O lundu em seu início era um tipo de dança de origem angolana, mais tarde se configuraria com lundu-canção por receber letras.
“Lundu – canto e dança populares no Brasil durante o séc. XVIII, introduzidos provavelmente pelos escravos de Angola. [...] No início era uma dança cuja coreografia descrita como tendo certa influência espanhola pelo alteamento dos braços e estalar dos dedos semelhantes ao uso de castanholas, tendo no entanto, a umbigada característica.” (Andrade, 1999)
“Esse chamado lundu, muito mais preso que a fofa aos batuques dos negros – de onde se destacara como dança autônoma ao casar a umbigada dos rituais de terreiro africanos com a coreografia tradicional do fandango (tanto na Espanha quanto em Portugal caracterizado pelo castanholar dos dedos dos bailarinos que se desafiavam em volteios no meio da roda), apresentava ainda um traço destinado a determinar sua evolução: o estribilho marcado pelas palmas dos circunstantes, que fundiam ritmo e melodia no canto de estilo estrofe-refrão mais típico da África negra.” (Tinhorão, p.100 1986).
A semelhança entre os dois gêneros é tamanha que alguns estudos configuram esse como subgênero daquele ou se confundem na própria criação. Há modinhas que se parecem lundus e o contrário também acontece. Mas existem diferenças entre eles, que lhes dão certa identidade, e, da mesma forma que Domingos Caldas Barbosa faz no poema “Caldas de Cobre”[5], são os detalhes em sua essência que os diferem. Assim, a modinha seria usada de forma mais lírica, seus temas são ligados ao amor. Já o lundu por sua vez tem melodias e acompanhamentos mais sincopados, andamentos mais rápidos, seus temas são mais jocosos e algumas vezes críticos ao seu tempo.
Em Viola de Lereno, Domingos Caldas Barbosa reúne suas mais importantes cantigas, tanto modinhas como lundus. O que se tem em seu livro são apenas os versos dessas canções. São poucas as anotações musicais ligadas ao tocador de viola, não se sabe ao certo se o poeta compunha ou se tocava músicas de outros compositores para acompanhar suas poesias. Mas as formas de seus versos nos mostram a influência desses gêneros em sua criação, a mais importante delas é a estrofe-refrão, que a maioria de seus poemas traz e que são tipicamente africanos, pois usados nos pontos de candomblé, e num dos gêneros musicais mais conhecidos do Brasil, o samba.
Lundum
Eu tenho uma Nhanhazinha
A quem tiro o meu chapéu;
É tão bela tão galante,
Parece coisa do Céu.
Ai céu!
Ela é minha iaiá,
O seu moleque sou eu.
Eu tenho uma Nhanhazinha
Que eu não a posso entender;
Depois de me ver penar,
Só então diz que me quer.
Ai céu![6]
Ela é minha iaiá,
O seu moleque sou eu.
Eu tenho uma Nhanhazinha
A melhor que há nesta rua;
Não há dengue como o seu,
Nem chulice como a sua.
Ai céu!
Ela é minha iaiá,
O seu moleque sou eu.
Eu tenho uma Nhanhazinha
Muito guapa muito rica;
O ser formosa me agrada,
O ser ingrata me pica.
Ai céu!
Ela é minha iaiá,
O seu moleque sou eu.
Eu tenho uma Nhanhazinha
De quem sou sempre moleque;
Ela vê-me estar ardendo,
E não me abana com o leque.
Ai céu!
Ela é minha iaiá,
O seu moleque sou eu.
Eu tenho uma Nhanhazinha
Por quem chora o coração;
E tanto chorei por ela,
Que fiquei sendo chorão.
(Viola de Lereno, v. 2, 1944, p. 27)
Para além da configuração de seus versos enquanto formas atribuídas às culturas africanas, há outro elemento destas que é de suma importância em sua poesia. A linguagem, marca da oralidade que o poeta herdara de seu pertencimento étnico racial e na sua convivência nos subúrbios da jovem colônia. Neste poema palavras como Nhanházinha, iaiá, moleque, revelam essas marcas. A primeira e a segunda são tratamentos dados às meninas e às moças pelos escravos. E o último como menino de pouca idade.
Dentre outros poemas que compõem o livro, o Lundum de cantigas vagas possui configuração parecida com este. O poema possui refrãos que contribuem para uma continuidade no texto e vocabulários ligados ao léxico afro-brasileiro. Como: xarapim que é o mesmo que xará; arenga: disputa, atrito (sentido popular); moenga: moenda, escaldada ao fogo; quingombó: do quimbundo "kingombo", quiabo; e quindins: dengues, meiguices, encanto.
Lundum de cantigas vagas
Xarapim eu bem estava
Alegre nest'aleluia,
Mas para fazer-me triste
Veio Amor dar-me na cuia.
Não sabe meu Xarapim
O que amor me faz passar,
Anda por dentro de mim
De noite, e dia a ralar.
Meu Xarapim já não posso
Aturar mais tanta arenga,
O meu gênio deu à casca
Metido nesta moenga.
Amor comigo é tirano
Mostra-me um modo bem cru,
Tem-me mexido as entranhas
Qu'estou todo feito angu.
Se visse o meu coração
Por força havia ter dó,
Por que o Amor o tem posto
Mais mole que quingombó.
Tem nhanhá certo nhonhó,
Não temo que me desbanque,
Porque eu sou calda de açúcar
E ele apenas mel do tanque.
Nhanhá cheia de chulices
Que tantos quindins afeta,
Queima tanto a quem a adora
Como queima a malagueta.
Xarapim tome o exemplo
Dos casos que vêm em mim,
Que se amar há-de lembrar-se
Do que diz seu Xarapim.
Estribilho
Tenha compaixão
Tenha dó de mim,
Porqu'eu lho mereço
Sou seu Xarapim.
(Viola de Lereno, v. 2, 1944, p. 14)
Os temas presentes na obra são muito ligados ao amor, muito recorrentes nas modinhas da época. Por isso, talvez a difícil tarefa de distinguir esse gênero do lundun em seu texto. A cultura luso-africana está enraizada na sua produção, uma junção até então não feita na poesia e na música de grande repercussão na Europa. Por esse motivo à importância de sua obra para a literatura afro-brasileira e para o que chamamos hoje de música popular brasileira.
O Poeta e seu pertencimento à Literatura Afro-Brasileira
Para situar a poesia de Domingos Caldas Barbosa, no universo da literatura afro-brasileira será necessária uma pequena apresentação desta. A miscigenação que se dá no Brasil com a chegada dos primeiros africanos propiciou um intercâmbio étnico-cultural involuntário. A literatura produzida a partir disto sofreu uma forte influência desse pluralismo. Seja pelo o olhar sobre os negros, muitas vezes de maneira pejorativa, estigmatizada e caricata, ou, pelo próprio negro dizendo sobre ele mesmo. Em “Por um conceito de literatura afro-brasileira", Eduardo Assis Duarte afirma:
Literatura Afro-brasileira: processo, devir. Além de segmento ou linhagem, componente de amplo encadeamento discursivo. Ao mesmo tempo “dentro e fora” da literatura brasileira, como já defendia, na década de 1980, Octavio Ianni (1988, p. 208). Uma produção que implica, evidentemente, re-direcionamentos recepcionais e suplementos de sentido à história literária estabelecida. Uma produção que está dentro porque se utiliza da mesma língua e, praticamente, das mesmas formas e processos de expressão. Mas que está fora porque, entre outros fatores, não se enquadra no ideal romântico de instituir o advento do espírito nacional. Uma literatura empenhada, sim, mas num projeto suplementar (no sentido derridiano) ao da literatura brasileira canônica: o de edificar uma escritura que seja não apenas a expressão dos afrodescendentes enquanto agentes de cultura e de arte, mas que aponte o etnocentrismo que os exclui do mundo das letras e da própria civilização. Daí seu caráter muitas vezes marginal, porque fundado na diferença que questiona e abala a trajetória progressiva e linear de nossa história literária. (DUARTE, 2001, p. 15)
Entendemos que o texto afro-brasileiro se realiza quando a autora/autor afro-brasileiro se assume como tal e coloca dentro da sua produção literária marcas de sua identidade étnica e racial. Sejam elas nas temáticas das obras, no ponto de vista do enunciador, na linguagem utilizada, ou até mesmo no público alvo dessa literatura.
As marcas dessa literatura não são feitas de maneira rígida e variam de acordo com o tempo, o objetivo do escritor/escritora, entre outros aspectos. As temáticas, por exemplo, podem ser diversas; abolição da escravatura, diáspora africana, representação de heróis negros como Zumbi dos Palmares; ou temas contemporâneos, como o genocídio da população jovem negra no Brasil. Num pequeno panorama dessa literatura, poderíamos citar escritores do passado, como Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814), Cruz e Souza (1861-1898), Lima Barreto (1891-1922), Solano Trindade (1908-1974), Carolina Maria de Jesus (1914-1977), e do presente como Cidinha da Silva (1967), entre outros.
Domingos Caldas Barbosas escrevendo no século XVIII não demonstra uma ativa figuração como um autor negro. Uma vez que a abolição da escravidão se dará nos idos de 1888, porém percebe-se em sua poesia uma declaração de uma afrodescendência, que é significativa por ele ser um autor brasileiro e negro falando de suas raízes, ou no sentido deleuziano, apresentando um devir; o devir-negro ou devir-afrodescendente. Para tanto, as palavras de Caldas nesses versos feitos para o seu contemporâneo padre Antônio de Sousa Caldas (1726-1814), filho de portugueses, escritor de composições poéticas e tradução de salmos, não deixam duúvidas:
Tu és Caldas, eu sou Caldas; [7]
Tu és rico, e eu sou pobre;
Tu és o Caldas de prata;
Eu sou o Caldas de cobre.
Observando os versos do poema, temos uso da comparação como figura entre os Caldas, que este estabelece a diferença entre o sujeito branco, metaforizado no termo prata, e o negro com o termo cobre. Ao se analisar o campo semântico desses termos, percebe-se que o autor, na voz do eu-poético, aproxima suas essências negras à sua escrita. Também, soma-se a isto, o uso do verbo ser, que nas orações dos versos carregam a intencionalidade de caracterizar e qualificar o sujeito, ou seja, os predicativos do sujeito são na realidade uma demonstração das identidades que os Caldas possuem. Não é apenas a demonstração de um sujeito negro que confere a Domingos Caldas Barbosa o título de escritor afro-brasileiro. Elementos como a linguagem e a musicalidade afiançam seu pertencimento à literatura afro-brasileira.
Quando utilizo o termo africanidade estou me referindo às raízes ou marcas culturais de origem africana, que se arrastam com o tempo em uma sucessão de gerações. Assim, o lundu seria um exemplo de cultura africana que ultrapassou além-mares e gerações distintas. Vindo de Angola como dança, chegando até Portugal como lundu-canção e sendo um dos pilares na construção da música popular brasileira. E de grande importância na poesia de Domingos Caldas Barbosa, o maior difusor desse gênero em Portugal e no Brasil.
Maria Nazareth Soares, no seu texto “Poesia afro-brasileira – vertentes e feições”, nos mostra que:
grosso modo, existem, no âmbito da literatura afro-brasileira duas grandes vertentes que se afirmam em decorrência do modo como se ligam à temática negra ou afrodescendente. Uma vertente procura interferir na dinâmica social, mostrando-se como enfrentamento ao preconceito contra os afrodescendentes e como denúncia à exclusão em que vive grande parte deles no Brasil. Essa vertente indica uma feição literária que, direta ou indiretamente, relaciona o texto com as ideias políticas de quem o produz. Nela está registrada a intenção do produtor do texto de assumir-se negro e de saber-se pertencente “a um grupo étnico cujos membros sobreviveram à exploração escravagista” (Pereira & White, 2001, p. 259). Uma outra vertente, ainda que não deixe de referir-se ao preconceito e à exclusão sofrida pelos afrodescendentes, empenha-se por reconstituir, no espaço da literatura, as motivações próprias dos ambientes habitados pelas misturas típicas da cultura popular. Nesses textos, as vozes poéticas ou narrativas podem assumir diferentes tons e as transmutações próprias ao acolhimento que a escrita dá à palavra falada, aos ritmos do corpo e aos pequenos gestos que configuram o dia-a-dia da gente simples. Essa vertente também assume as tradições herdadas dos escravos e as traz para os textos procurando não apagar as pulsações características do universo em que continuam cultivadas ainda que alteradas pelo diálogo constante que realizam com outras expressões culturais. Nessa vertente, mais que denunciar a discriminação e as agruras vividas pelos afrodescendentes, intenta-se que as vozes silenciadas e as expressões culturais do povo – e por isso mesmo da grande parcela da população afrodescendente – alcancem o espaço da letra, do texto literário enfim. (SOARES, 2007, p. 1)
A segunda vertente é a que mais nos interessa, por estar contígua à literatura feita em Viola de Lereno, onde o cunho principal é das tradições orais africanas. É certo que a cultura e literatura feita por brancos é um referencial na literatura afro-brasileira. Não seria possível fazer uma literatura no Brasil, ou qualquer país, onde sua formação está calcada na miscigenação, com um único lado de sua mistura. Mas é também perceptível ao longo da história que só foi reconhecida e legitimada, a literatura realizada por brancos.
Quando se tem uma literatura como a de Domingos Caldas Barbosa, no qual as suas referências africanas estão nas entrelinhas, a tentativa de colocá-la como uma poesia branca é mais fácil de realizar. Mas basta olhar atentamente para sua obra e vê-la para além do arcadismo e formas ocidentais. Que vemos na linguagem e na musicalidade sua africanidade.
Conclusão
A poesia de Domingos Caldas Barbosa é considerada por muitos como “neoclássica”, afirmativa que a priori não se pode negar, já que o autor fazia parte da Arcádia de Roma e era requisitado nos salões da nobreza. Entretanto sua poesia é notoriamente de base popular. O autor compunha sua lírica transpondo para suas linhas e formas ritmos afro-brasileiros como o lundu, e que trazem consigo resquícios da oralidade africana.
Isso faz de Domingos Caldas Barbosa um dos precursores da literatura afro-brasileira, de acordo com as concepções de Eduardo de Assis Duarte (essas informações podem ser encontradas no volume I de Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica, publicado em 2011). Apesar de não haver um projeto de literatura negra em perspectiva, aos moldes dos autores negros do século XX (tendo como emblema os pressupostos de uma literatura de e sobre os afrodescendentes brasileiros em Cadernos Negros), o poeta compositor de modinhas e lundus, ao incorporar formas rítmicas, melódicas e temáticas em sua literatura, acaba instaurando as bases de uma poética negra brasileira que viria a surgir com muito mais consistência tempos depois.
O autor foi também um marco singular para uma poesia feita em pleno século XVIII, tanto em Portugal quanto no Brasil, ao desafiar os dogmas da tradição literária canônica absorvendo em sua lírica a cultura popular. Manuel Bandeira, no prefácio do primeiro volume de Viola de Lereno afirma ser ele “o primeiro brasileiro onde encontramos uma poesia de sabor inteiramente nosso”.
Referências
ANDRADE, Mário de. Modinhas Imperiais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.
ANDRADE, Mário de. Dicionário Musical Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia: 1999.
ARAÚJO, Mozart de. A Modinha e o Lundu no Século XVIII (uma pesquisa histórica e bibliográfica). São Paulo: Ricordi, 1963.
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Soneto e outros poemas. São Paulo: FTD, 1994. (Grandes Leituras)
DUARTE, Eduardo de Assis (org.). Literatura e afrodescendencia no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte, UFMG, 2011.
DUARTE, Eduardo de Assis (coord.). Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XX. Rio de Janeiro, Pallas, 2014.
DUARTE, Eduardo de Assis. Por um conceito de literatura afro-brasileira. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/148-eduardo-de-assis-duarte-por-um-conceito-de-literatura-afro-brasileira Acesso em : 15/08/2018
FONSECA, Maria Nazareth Soares. Poesia afro-brasileira – vertentes e feições. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/160-maria-nazareth-soares-fonseca-poesia-afro-brasileira-vertentes-e-feicoes Acesso em : 15/08/2018
NERY, Rui Vieira. Prefácio a MORAIS, Manuel de. Modinhas, Lundus e Cançonetas. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2000.
TINHORÃO, José Ramos. Os sons que vêm da rua. Rio de Janeiro: Edições Tinhorão, 1986.
TINHORÃO, José Ramos. Domingos Caldas Barbosa: o poeta da viola da modinha e do lundu (1740-1800). São Paulo: Ed. 34, 2004.
1 Relativo à arte, à literatura ou à cultura dos antigos gregos e romanos. Que segue, matéria de artes, letras, culturas, o padrão deles.
[2] Do, ou próprio povo, ou feito por ele.
[3] O Tratado de El Pardo (1761) tornou nulas todas as disposições e feitos decorrentes do Tratado de Madrid de 1750, que havia falhado em promover a paz nas colônias espanhola e portuguesa
[4] No prefacio a MORAIS, Manuel de. Modinhas, Lunduns e Cançonetas, Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 2000.
[5] Idem *4
[6] Grifo meu.
[7] “A quadrinha é citada por vários autores, desde sua divulgação por Joaquim Noberto de Sousa e Silva em seu capítulo de “livro inédito” publicado no número de abril-junho da Revista Popular, vol. 14, de 1862. Os repetidores seriam Moreira de Azevedo em seu Mosaico Brasileiro,1869 ou 1870, Lery Santos na série “Esboços biográficos - Domingos Caldas Barbosa”, da revista Pantheon Fluminense, de 1880, Pereira da Costa na Enciclopediana brasileira, de 1889, e, posteriormente, por quase todos os autores que se ocupam da figura do poeta improvisador”. TINHORÃO, José Ramos. Domingos Caldas Barbosa: o poeta da viola da modinha e do lundu (1740-1800). São Paulo: Ed. 34, 2004.