Terra sob as unhas: a poesia terrestre e contracolonial de Júlia Elisa

Kelvin Jorge Batista Silva

 

Poeta belo horizontina, antropóloga e mestre em comunicação, Júlia Elisa tem seu primeiro livro de poemas, Terra sob as unhas, publicado nesse ano de 2023 pela Impressões de Minas. Prefaciado por Conceição Evaristo, Júlia recebe a apresentação de sua estimada autora, a quem dedica o poema intitulado “Aos olhos da ave serena”. Conceição diz na apresentação que é um desafio escrever sobre o livro, tendo em vista sua linguagem e também o seu conteúdo. Entretanto, é um daqueles tipos de desafios que é prazeroso de se realizar. A cada virada de página, o leitor vai revirando junto com a autora a terra de sua poesia e aos poucos vai se impregnando dessa bela poética. Essa terra não ficará retida somente sob as unhas, mas também nas profundezas da mente.

Júlia Elisa entrega um livro de qualidade, a começar pela produção estética editorial, percorrendo ainda a linguagem minuciosa desenvolvida para expressar um eu interior de forma mais poética e existencialista. O trabalho editorial é impecável ao se comunicar com uma das temáticas da obra, que é a terra, desde as letras em cor terrosa, até a divisão dos poemas. Neles, vê-se de antemão que a natureza toma parte de uma poética, sendo ela essencial para que a autora consiga colocar em seus poemas o seu eu íntimo, sua forma de observar a sociedade e o modo como o eu negro está inserido nesse contexto.

 

Como Antônio Bispo dos Santos diz a respeito da relação da terra com os povos quilombolas: “A terra não nos pertencia, nós é que pertencíamos à terra” (p. 1). O ser humano e a natureza se tornam um único ser, sendo assim, Júlia retoma em seus poemas a ideia de que o humano não está desassociado da Terra, somos pertencentes à Terra. Em uma sociedade que tem como base valores de uma cultura branca, como o consumo exagerado, a ideia de que a natureza e os seres humanos são vistos separadamente tem crescido, e é isso o que tem levado às mudanças climáticas que estamos vivenciando. Júlia Elisa faz esse resgate ancestral, por meio do qual vivemos em uníssono com o planeta, seja no nível de uma relação ecológica ou no da subjetividade humana, psicológica, no modo de se expressar, de ser e de se entender como parte de uma relação antiga. Ter terra sob as unhas representa essa conexão direta e íntima com o planeta. Ter essa terra sob as unhas, que muitas vezes é estigmatizado pela sociedade, é ressignificado através da demonstração de um trabalho antigo e digno, é uma forma de demonstrar como o povo negro, desde muito antes de sua trágica travessia forçada pelo Atlântico, possui essa conexão e essa devoção à terra que lhes dá o sustento e lhes provê a vida.

 

E qual terra é essa em que se vive hoje as pessoas negras do Brasil? Essa terra é invadida e teve língua e costumes europeus impostos aos seus habitantes originários e às pessoas vindas do continente africano. Tais costumes coloniais ainda persistem em perseguir, violentar e marginalizar os povos que seguem contra essa correnteza. Em Terra sob as unhas, a poeta demonstra sua insatisfação, seu descontentamento e sua aversão a essa língua, que é utilizada e imposta como mecanismo de opressão. Em seu poema intitulado “Só existo quando me invento”, lê-se: “Vivo num idioma sem meu próprio corpo/uma língua que mata minhas emoções” (p. 29). Assim, Júlia entende como o idioma do colonizador não abre espaço para que corpos negros possam existir e muito menos para poderem viver, sentir e expressar suas emoções. Em seus poemas, a autora faz o que Antônio Bispo diz a respeito do uso da língua do colonizador para poder contracolonizar: “Vamos pegar as palavras do inimigo que estão potentes e vamos enfraquecê-las” (p. 13). Sendo assim, a poeta não só recria a língua a seu favor para poder se expressar e existir, mas também incorpora a terra e a natureza em sua linguagem poética. Ela escava a terra com suas próprias unhas para alcançar a raiz da questão. Só quem está disposto a sujar as mãos no solo terroso é que está realmente preparado para cobrar e lutar por mudanças. Júlia Elisa escava os sentimentos, revira costumes ultrapassados e revela o interior da terra com muita intimidade.

Em se tratando do elemento terra, o livro é dividido em três partes: Arenosa, Argilosa e Terra Preta. O leitor irá perceber que tal separação não é desproposital. O solo arenoso, na primeira seção, tem como características a grande concentração de grânulos de areia, é seco, quente, pobre em nutrientes e é predominantemente encontrado em regiões de climas desérticos. Além disso, a água escoa com muita facilidade na terra arenosa por conta da alta granulação, porém, se tratada adequadamente, é possível cultivar esse tipo de solo. Um solo arenoso não é totalmente infértil e desértico, pois, em tais ambientes, sempre existem plantas e animais que resistem e se desenvolvem em um clima que é averso à sua existência.

Pensando nessas características do solo arenoso e lendo os poemas dessa primeira parte do livro, vê-se que o sujeito escrito nos poemas demonstra sua insatisfação com o modelo de sociedade atual e com a linguagem imposta. Esse ambiente, que tem tudo para que a vida não prevaleça, é uma analogia criada pela autora para sugerir o comportamento da sociedade branca colonial, que tenta criar um ambiente hostil onde pessoas negras devem ficar à margem. Esse modelo de vivência adoece, como evidencia a poeta sobre a importância de dar um tempo desse lugar, em seu poema “Vim terra porque sou caminho”: “Os atestados médicos/originalmente foram criados/para nossos espíritos vazarem um pouco/enquanto estão se adequando/em meio às folhas do ponto/e boletos atrasados” (p. 20).

Porém, mesmo em um ambiente hostil, diversos seres sobrevivem, como as pessoas negras que estão existindo e lutando, dia após dia, se cuidado adequadamente como a terra arenosa.Tais sujeitos têm um grande potencial para se despertar e desviar-se desse ambiente desértico, tanto no âmbito subjetivo quanto no âmbito social, conforme se nota em “Prestar eu até presto/mas não sirvo” (p. 39). Assim, é possível se retirar desse ambiente onde as pessoas negras são vistas como seres de servidão e onde todos precisam ter uma função, ou não são de valor para a sociedade. Pensando na mulher negra, o serviço de servidão ainda existente hoje é herança do período da escravização, mas Júlia coloca essa mulher na posição de dona de seu próprio destino e de suas ações. Assim como o solo arenoso, Júlia deixa toda a água das dores, dos receios, das indignações escoarem e seguirem o seu caminho, para que assim nada fique retido em seu interior.

Na segunda parte, Argilosa, tem-se a terra argilosa, que, além de rica em argila, é microporosa, úmida e viável para o cultivo. Nesse momento, vemos como a escritora maneja seus poemas, da mesma forma que a artesã manipula a argila para dar forma a algo novo. Como a argila, os poemas são microporosos, absorvem e retêm a água dos costumes ancestrais em contradição aos costumes coloniais. A autora celebra essa tradição e os saberes negros, assim como a arte ancestral de transformar a argila em vasos e em outros objetos, de acordo com o que se lê em “Na esteira em que durmo” (p. 46), “Arredó é licença” (p. 52), “Gosto de cozinhar porque não me deixaram aprender feitiço” (p. 54) e em “Prefiro comer com as mãos” (p. 58). Nos dois últimos, sugere-se como a cultura hegemônica impediu as pessoas negras de praticarem saberes ancestrais.

Já em “Gosto de cozinhar porque não me deixaram aprender feitiço”, diz-se: “Quando falo de conhecimento negado/são tantas outras portas/além da história factível e relatada/ Digo das plantas/digo do cheiro das plantas/sinto que conheço mas não sei para o que serve/ou se sirvo” (p. 54). Para rebater esse conhecimento que lhe foi negado, o sujeito poético nos diz: “Faço questão de inventar e desobedecer/qualquer receita que ofereça” (p. 55). Como uma espécie de cura e resgate, a autora cria outro conhecimento no qual ninguém poderá se intrometer, além de descobertas que estão sob o seu controle, e não no dos outros.

Essa forma de contestar costumes engessados e elitistas também é vista no poema “Prefiro comer com as mãos”, em que, com certa ironia, questionam-se tais costumes: “Quem sabe agora descobrirá talheres/Afinal essa gente requer civilidade/forrar bem o colo/com guardanapo de tecido branco/na tentativa que não apareça mais verdades/ou calcinhas de renda/Mas isso só após/ ter me lambuzado a cara/e chupar os dedos/ um por um” (p.59). Antes de seguir o costume pré-estabelecido, ela vai se lambuzar e chupar os dedos, num gesto de preservação de um costume e de sua valorização. É uma forma de agir dentro do sistema, mas fabulando outra ideia contrária ao que se passa. Além disso, o poema “Aquilo que não muda já aceitou a sua morte” (p. 48) revela outro aspecto da terra argilosa, que é o de ter uma abertura, uma disposição à mudança e dar novas formas ao próprio ser. A argila, mesmo após seca, fica submersa em água, retorna ao seu estado inicial, pronta para sofrer inúmeras transformações. É através das metamorfoses que o conhecimento e o saber são obtidos, estar fechado ao seu redor é estar se colocando em risco, como se lê em “Afastar da roda, não é sair do jogo” (p. 52). Pelo contrário, sair da roda é observar o entorno do jogo, é estar atento ao que está por vir e ampliar seus horizontes.

Surge, por último, Terra Preta, que é um solo rico em nutrientes, matéria orgânica altamente fértil. É um tipo de solo onde tudo que for semeado terá um grande potencial de se desenvolver e crescer. Ao contrário do solo arenoso, a terra preta é propícia à vida. Nesse momento, Júlia colhe o afeto semeado. A autora tem como foco celebrar os afetos, mas não qualquer um. Afeto, para ela, é a cura, é a salvação em meio a uma sociedade opressora. Uma rede de afecções inspira e motiva a vida. Cultivá-las em solos férteis é necessário para sua manutenção, pois tal gesto requer atenção, celebração, carinho e disposição. Para chegar aqui, o sujeito poético aduba o solo argiloso em seu último poema da seção argilosa, cujo título é o mesmo que nomeia o livro “Terra sob as unhas”: “Quando eu morrer/virem de ponta cabeça/todos os meus vasos de plantas/cascas de bananas/ovos/borras de café/conchas e contas” (p. 60). A morte aqui pode ser interpretada como o fim de um ciclo, a abertura para uma grande mudança a qual será cultivada em solo propício e rico, próspero por onde ela irá se espalhar e levar sua essência a outros lugares e pessoas.

Vale ressaltar que o afeto não se refere somente às relações amorosas, mas também ao âmbito da amizade e à celebração do ancestral. O ancestral não é só o passado ou quem se foi, o ancestral é o agora e o futuro. Audre Lorde e Conceição Evaristo são duas mulheres homenageadas por Júlia, que celebra a existência e a importância das duas escritoras nos poemas “Minifestação” (p. 81) e em “Aos olhos da ave serena” (p. 87). Em Terra Preta, além do afeto semeado, existe a semeadura da resistência e da luta. A sociedade acredita que sempre irá reprimir e controlar o povo negro, porém, não percebe que tais povos e seus corpos são como terra preta: fértil, rica, insubmissa, geradora e revolucionária. Para fechar o livro, tem-se o poema que exprime essa resistência, intitulado “Sou o sonho mais insubmisso dos meus ancestrais” (p. 91):

Envergo e não quebro

não arrego

não arredo o pé

titubeio mas não caio

e se caio

caio em pé

ginga necessária para aprender

um corpo capoeira

num mundo feito

para interferir no caminho de mulher

se pequena sou eu

maior a Deusa Preta desse legado

escuta

escuta comigo o chamado

sei que a paz é branca

a pureza do mundo insustentável

mas escuta comigo o chamado

é esse corpo pra revolução convocado

nesse corpo encruzilhada

muitos são os caminhos

na memória do que só sinto, escuto:

honre seus mortos, siga em frente e permaneça vivo!

pois dos buracos da máscara de Anastácia

ressoam até hoje as mesmas vozes

por desejo de liberdade

pois o meu corpo pode ser que até envergue

mas se cai

outras mil nascerão de pé

e na memória de outras vidas

uma só palavra de mensagem

Coragem, vai, coragem!

Por fim,Terra sob as unhas, de Júlia Elisa, oferecerá uma leitura prazerosa, reflexiva e potente aos leitores. A própria poeta nos diz que costuma escrever quando está em contato com a natureza, e nisso é indicado também que a leitura seja feita nesse mesmo ambiente, de preferência ao lado de um corpo d’água, sem pressa e sem distrações. Sujar as mãos de terra e se aprofundar na obra de Júlia Elisa irá conduzir os leitores ao estado de contemplação e, ao mesmo tempo, de reflexão. A poesia nos instigará a examinar o modelo de sociedade em que vivemos, a repensar a sua relação com a natureza, além de ponderar sobre outras temáticas, como o afeto, a vivência da mulher negra, o negro na sociedade, a ancestralidade, a ecologia e o contracolonialismo.

Belo Horizonte, novembro de 2023.

Referências

DOS SANTOS, Antônio Bispo. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu, 2023.

 

DOS SANTOS, Antonio Bispo. Somos da terra. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 12, p. 44-51, ago. 2018.

 

ELISA, Júlia. Terra sob as unhas. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2023.

 

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Kelvin Jorge Batista Silva é graduado em Biomedicina pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH) e fez bacharelado em Inglês na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente, é mestrando em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG e atua como pesquisador no literafro – Portal da Literatura afro-brasileira, disponível no endereço http://www.letras.ufmg.br/literafro/

 

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