Terra

Isidoro, boçal fugido, de noite ouvindo os cães:

mete na terra.

João, nagô escravo, quando está saudoso:

corre na terra.

José, banto, quando sozinho fica:

ouve a terra.

Ester, negra velha, sabida de ervas e mandingas:

cheira a terra.

Justino, da casa, quando recebe um dengo:

dança na terra.

Miriam, negrinha nova, depois da chuva:

brinca com a terra.

Manuel, crioulo, depois de apanhar muito:

bate na terra.

Mariana, da cozinha, andar fogoso e faceiro, quando disse não:

varada na terra.

Nair, prenha do sinhozinho, destemperada:

enfia terra.

Placides, escravo faiscador, para saldar a vida:

briga com a terra.

Paulina, escrava velha, que quando cachaça bebe:

embala a terra.

Sara, a nega do cabelo duro, para não encerrar a conversa:

cospe terra.

Zulmira, quando seus filhos são vendidos:

come terra.

(Outras Vozes: contos sobre o negro escravizado no Brasil, p. 26-27).

Terra

Isidoro, boçal fugido, de noite ouvindo os cães:

mete na terra.

João, nagô escravo, quando está saudoso:

corre na terra.

José, banto, quando sozinho fica:

ouve a terra.

Ester, negra velha, sabida de ervas e mandingas:

cheira a terra.

Justino, da casa, quando recebe um dengo:

dança na terra.

Miriam, negrinha nova, depois da chuva:

brinca com a terra.

Manuel, crioulo, depois de apanhar muito:

bate na terra.

Mariana, da cozinha, andar fogoso e faceiro, quando disse não:

varada na terra.

Nair, prenha do sinhozinho, destemperada:

enfia terra.

Placides, escravo faiscador, para saldar a vida:

briga com a terra.

Paulina, escrava velha, que quando cachaça bebe:

embala a terra.

Sara, a nega do cabelo duro, para não encerrar a conversa:

cospe terra.

Zulmira, quando seus filhos são vendidos:

come terra.

(Outras Vozes: contos sobre o negro escravizado no Brasil, p. 26-27).

  

24 Dias de Açoite

Primeiro dia de açoite

Trazem para o Campo da Pólvora, o alufá Bilal LicuItan, escravo

batizado de Pacífico.

Vem altivo e olhando fundo para todos.

Anda devagar, firme, cadenciando.

Costas largas, nuas. Com a calça mal amarrada, que

permitia ver os pelos pubianos.

O feitor recém-chegado amarra as mãos do escravo.

Provoca que se abaixe e sente sobre os calcanhares.

Faz os braços passar entre as pernas e vai enfiando

uma grossa vara entre os joelhos.

Depois Bilal recebe um chute.

Em nome de Deus, O Clemente, O Misericordioso.

Louvado seja Deus, Senhor do Universo. O Clemente, O Misericordioso.

Senhor do Dia do Juízo. Só a Ti adoramos e só de Ti imploramos ajuda. Guia-nos à senda reta, à senda dos que agraciastes, não à dos abominados, nem à dos extraviados – reza com a voz vazada pela dor.

Por liderar, por chefiar a revolta, apesar de não ter participado, Bilal Licutan, escravo batizado de Pacífico, foi condenado a 1.200 chibatadas.

Orientados por Deus e pela lei não podem mais que cinquenta por dia.

Recebe a cota.

Em turnos: um de sova e dois de descanso, para a pele curtir.

O povo aplaude!

Segundo dia de açoite

– Dizem que ele foi penhorado por causa das dívidas do doutor Tonico.

– O bebum?

– Sim. A negrada se ajuntou e conseguiu até mais dinheiro para pagar a dívida. –Foi?

– Mas o juiz num quis.

– Foi?

Bilal Licutan foi trazido como no primeiro dia.

Amarrado.

Recebeu a mesma cota.

– Deus selou os seus corações e os seus ouvidos; seus olhos estão velados e sofrerão um severo castigo – disse, depois de solto, encarando uma quituteira.

Ela tremeu e foi embora quase chorando.

Terceiro dia de açoite

Bilal faz parte do caminho de cabeça baixa.

Entrando na praça, levanta: altivo e superior. Encara a todos.

Até sorri para os homens.

– Quem me falou jura que a delatora foi a nega Guilhermina...

– Pelo que soube, o juiz Zé Mendes já tinha conhecimento de tudo...

– Mas num importa; o que valeu é que saíram de uma casa da Ladeira da Praça mais de cem negros que deram de frente com vários soldados.

– Foi?

– Quase nenhum sobrou pra contar história...

Como nos outros dias, é amarrado. Atado e erguido. Recebe a cota. Com força. Com gosto.

Bilal sente gemidos sair sem querer.

Cinquenta depois: acorda e é levantado.

– E temei o dia em que nenhuma alma poderá advogar por outra, nem lhe será admitida intercessão alguma, nem lhe será aceita compensação, nem ninguém será socorrido! – Sua voz desvencilha-se fraca. Quase ninguém ouve.

Quarto dia de açoite

– Juro, ouvi com estes ouvidos que a terra há de comer.

– O quê?

– Escutei da boca do polícia: Têm sido encontrados muitos livros, alguns dos quais dizem ser preceitos religiosos tirados de mistura de seitas, principalmente do Alcorão. O certo é que a religião tinha sua parte na sublevação e os chefes persuadiam os miseráveis de que certos papéis os livrariam da morte; encontraram nos corpos mortos grande porção dos ditos e nas vestimentas ricas e esquisitas que figuram pertencer aos chefes também1.

– Foi?

– Foi.

Bilal Licutan, escravo batizado de Pacífico, em 8 de junho, está com vontade de correr. Teme pela sua sanidade.

Reza mais.

Implora por força.

Não demonstra.

Ligeiro se coloca em posição.

Feitor, com pressa, nem o amarra.

Na última chibatada, ouvem um barulho de galho quebrando.

Não era lenho.

Não eram as costas de Bilal. Foi o braço do feitor.

– Aqueles que lucram por meio de um mal e estão envolvidos por suas faltas serão os condenados ao inferno, no qual permanecerão eternamente. Salvo os que se arrependeram, emendaram-se e declararam a verdade, a esses absolveremos porque somos o Remissório, o Misericordiosíssimo.

Quinto dia de açoite

Bilal acha pitoresco descobrir até graça no dia.

Céu azul que o faz lembrar de sua mãe.

Seu pai.

Irmãos de sangue.

Irmãos de luta.

Dos filhos de carne que não teve.

É pitoresco, sim!

– Combatei-os! Deus os castigará, por intermédio das vossas mãos, aviltá-los-á e vos fará prevalecer sobre eles e curará os corações de alguns fiéis.

Sexto dia de açoite

... e BilaI Licutan, escravo batizado de Pacífico e de propriedade do médico Antônio Pinto de Marques Varella, desmaiou.

Pela segunda vez.

Na praça só os negros viram.

Sentiram.

Temeram.

O outro feitor jogou água nele. Chacoalhou.

Chutou. Cuspiu até que ele acordou.

Bilal sorriu como se tivesse tido um bom sonho.

Recebeu o restante do açoite do dia.

– A verdadeira virtude é a de quem crê em Deus, no Dia do Juízo Final, nos anjos, no Livro e nos profetas; de quem distribuiu seus bens em caridade por amor a Deus, entre parentes, órfãos, necessitados, viajantes, mendigos e em resgate de cativos. Aqueles que observam a oração pagam o zakat, cumprem os compromissos contraídos, são pacientes na miséria e na adversidade ou durante os combates; esses são os verazes, e esses são os tementes.

Sétimo dia de açoite

– Num sei se é verdade, mas que vi, eu vi...

– Foi?

– Foi, sim. O lazarento tava outro dia aqui, e bastou o Pacífico olhar pra ele que parou de gemer.

– Foi?

– Foi. Parou de doer, e um dia depois tava curado. Sem nada. Limpinho!

– Foi.

Depois de cinquenta:

– Regozijam-se com a mercê e com a graça de Deus, e Deus jamais frustra a recompensa dos fiéis.

Oitavo dia de açoite

Arranjaram um negro para açoitar o escravo Pacífico, este é o alufá mais respeitado de toda Salvador. Arranjaram outro negro para punir com chicotadas o negro que deve flagelar Pacífico, caso hesite em sua tarefa.

O primeiro negro bate como se sua vida dependesse disso: com dó e piedade.

– O homem nasce para labutar e porfiar; e, se ele sofrer, será devido à austeridade reinante. Deverá exercitar a paciência, porquanto Deus lhe amenizará o caminho. Por outro lado, ninguém deverá vangloriar-se dos seus bens terrenos ou da sua prosperidade terrena.

Nono dia de açoite

– Viu só?

– o quê?

– Tiveram que trazer um novo carrasco.

– Foi?

– Ninguém quis mais.

– Verdade... Mas por que você não foi? O dinheiro é bom?

– Num pude...

– Porquê?

– Minhas costas estão no bagaço.

Depois de cinquenta:

– Quanto aos tementes, viverão em jardins e em felicidade. Gozando daquilo com que o seu Senhor os houver agraciado; e o seu Senhor os preservará do suplício infernal. Ser-lhes-á dito: Comei e bebei, com proveito, pelo que fizestes!

Décimo dia de açoite

Sempre depois da trigésima chicotada era necessário lavar as chagas com pimenta-do-reino e vinagre. Assim as carnes podiam até cicatrizar; era mesmo para evitar a putrefação.

– Cremos em Deus, no que nos tem sido revelado, no que foi revelado a Abraão, a Ismael, a Isaac, a Jacó e às tribos; no que foi concedido a Moisés e a Jesus e no que foi dado aos profetas por seu Senhor; não fazemos distinção alguma entre eles e nos submetemos a Ele.

Décimo primeiro dia de açoite

Nos primeiros, o dia somente começava depois da dor. Bilal não conseguia comer ou dormir ou pensar. Temia as dores e elas vinham mais fortes que a do açoite anterior.

Mas agora não: é apenas parte da sua vida.

Acorda e faz suas rezas.

Conversa com os irmãos cativos. Ensina alguns a escrever.

Distribui conselhos.

Ora.

Vai até o Campo da Pólvora. Apanha, desmaia, retorna e agradece em oração.

– A justiça é uma fortaleza inexpugnável, construída no alto de uma montanha que não pode ser abatida pela violência das torrentes nem demolida pela força dos exércitos.

Décimo segundo dia de açoite

Tem dia em que Bilal Licutan, escravo batizado de Pacífico, duvida.

Não acredita que este seja o real caminho: o verdadeiro! O que irá iluminar!

Será que vale a pena?

Vê um menino, negrinho, se despregar da multidão e correr em seu encontro.

Luiz!

Luizinho, filho de Luiza Mahin.

Não é!

Parecido. Lembra. Este é maior!

Vem e abraça as suas pernas. Chora.

Com muito custo, a mãe desgruda o menino.

Pacífico pensa no pai branco do Luiz. Onde está o meu menino?

Bilal Licutan, escravo batizado de Pacífico, chora de saudade e medo.

Depois das cinquenta:

- Não é pela força nem pelo teu poder que tu triunfarás, mas pelo meu espírito, diz o Senhor todo-poderoso2.

Décimo terceiro dia de açoite

Chegou sabendo que Luís Sanim, companheiro batalhador e também cativo, conseguiu um segundo julgamento: o dono dele ajudou com os advogados. Talvez o amigo também seja condenado ou apenas açoitado.

– Contempla o arco-íris e bendiz o seu criador, ele é magnífico em seu esplendor. Forma no céu um círculo de glória, as mãos do Altíssimo o estendem3. – Sua voz até saiu forte. Muito mais do que esperava.

Décimo quarto dia de açoite

Bilal vai para o açoite preocupado. Triste, talvez. Sem saber o que pensar ou dizer.

Um negro banto, negro de dentro, preso também por causa de dívidas dos seus senhores com os frades, chegou quieto e ficou em um canto amuado. Logo foi cuidado por um velho negro que há muito estava cativo e se recusava a dizer o nome de seu dono.

O banto e o ancião ficavam sempre juntos.

Até que uma noite, depois de suas orações, Bilal testemunhou o outro fazendo o banto de mulher. Irado, Bilal investiu contra o violador. Bateu. Surrou.

Tirou o banto das garras do amaldiçoado. Levou e lavou o meninote de casa.

– As ações devem ser julgadas de acordo com as intenções4.

Quando recobra a consciência, vê o banto chorando muito, de soluçar.

– Que foi?

– Saudade.

– De quem?

– Do meu velho...

Décimo quinto dia de açoite

– Tem gente vinda de longe para ver o flagelo do Pacífico.

– Dizem que ele só se interessa pelos seus.

– Dizem que ele sempre pede ajuda.

– Dizem que ele é arrogante com os maiorais.

– Dizem que ele sempre deseja só o bem.

– Dizem que ele não tem medo de estar errado.

– Dizem que ele escuta dez vezes mais do que fala.

– Dizem que ele é impaciente.

– Dizem que ele é estúpido com os pequenos.

– Dizem que é formoso.

– Dizem que o médico recorreu e o negro vai ter outro julgamento.

– Dizem que ele até faz milagres.

Depois das cinquenta:

– E não caminhe sobre a terra exultante. Veja, você não pode abrir a terra nem se esticar até a altura das montanhas.

Décimo sexto dia de açoite

O negro que arranjaram para açoitar o Bilal caiu em prantos. Disse que não aguentava mais, que todos o olhavam com nojo e até raiva. Seus filhos tinham medo dele.

O outro, que foi arranjado para açoitar o negro que deveria flagelar o Bilal, parte para cima do chorão.

Bilal, atado, intervém.

– Bate em mim.

– Não, minha tarefa é bater nele.

– Você irá açoitá-lo e depois a mim. Ele não vai mais.

– Como você sabe?

– Os olhos dele estão sem brilho, embaçados. Bate em mim.

E então o outro, que foi arranjado para açoitar o negro que deveria flagelar o Bilal, o chicoteia cinquenta vezes.

– A verdadeira riqueza de um homem é o bem que ele faz neste mundo5.

Décimo sétimo dia de açoite

Um padre tenta dar a extrema unção para Bilal depois das sofridas cinquenta do dia.

O negro se levanta. Firme. Superando a dor. Olha para o sacerdote e muito baixo pede que se afaste.

– Deixa-os, pois, até que se deparem com o seu dia em que serão fulminados! Dia esse em que de nada lhes servirão as suas conspirações, nem serão socorridos. Em verdade, os iníquos, além desse, sofrerão outros castigos; porém a maioria o ignora.

Décimo oitavo dia de açoite

Sim, Bilal Licutan, escravo batizado de Pacífico, está cada dia mais magro, mais fraco e muito mais flagelado. No entanto, mantém o corpo ereto. Com excelentes aprumos, ossatura e temperamento altivo. Suas roupas pouco cobrem as partes. Bilal expõe-se menos.

As felizes, as escravas, as decididas, as casadas, as amigas, as fiéis, as primas, as novas, as livres, as teimosas, as Fátimas, as desesperadas, as Dalilas, as baixas, as altas, as roliças, as pacientes, as magras, as inimigas, as tristes, as faladeiras, as descrentes, as companheiras, as avós, as alforriadas, as religiosas, as nunca santas, as mães, as silenciosas e as velhas contemplam as passagens de Bilal Licutan, escravo batizado de Pacífico, até o campo de açoite.

– A Deus pertence tudo quanto existe nos céus e na terra, para castigar os malévolos, segundo o que tenham cometido, e recompensar os benfeitores com o melhor.

Décimo nono dia de açoite

– E o delito será expiado com o talião, mas, quanto àquele que indultar, possíveis ofensas dos inimigos, e se emendar, saiba que a sua recompensa pertencerá a Deus, porque Ele não estima os agressores.

– Dizem que o juiz ouviu o médico.

– Foi?

– Foi...

Vigésimo dia de açoite

Bilal Licutan, escravo batizado de Pacífico, tem o cotação em chamas. Inflama, dói.

Sempre soube que a morte é um dos caminhos. Não o amo.

Sempre soube que a luta é digna, porém sem dignidade. Sempre soube.

– Ó Senhor nosso, cremos! Perdoa os nossos pecados e preserva-nos do tormento infernal.

Mas saber que os irmãos de luta morreram fuzilados, feito porcos, faz a alma arder.

Vigésimo primeiro dia de açoite

– Quando a adversidade açoita os humanos, suplicam contritos ao seu Senhor; mas, quando os agracia com a Sua misericórdia, eis que alguns deles atribuem parceiros ao seu Senhor, para desagradecerem o que lhes concedemos. Deleitai-vos, pois logo o sabereis!

A branca velha e a velha negra derrubam lágrimas quase iguais.

Vigésimo segundo dia de açoite

– Estes possuem a orientação do seu Senhor e serão os bem-aventurados.

Hoje foi estranho. Não teve toda a determinação. Não sentiu que seu coração alegrou.

Ontem, depois das lições um cativo veio e questionou:

– E se nada disso for verdade?

– O quê?

– Se não existir nenhum Deus?

– Como?

– Se não tiver nenhum Paraíso? Ou inferno ou coisa alguma?

– Não sei...

– Já pensou se só existir isto aqui?

– Não...

– Eu já...

Vigésimo terceiro dia de açoite

Bilal constata a visão turva. Sensação de que o chão sobe. Nada está firme. Sente um vento fresco, acolhedor. Seus pés apreciam um chão macio, um jardim tenro. Fértil. É o seu paraíso. Céu celeste que nem azul parece. Vivo. Sente-se forte, ágil, maior. Como um oásis que nunca tinha visto. Rios de leite e mel, de vinho e de doçura, de carne, de tudo aquilo que se sacrificou. Suas houris, suas setenta e duas virgens, correm para ele. Disparam em sua direção. Alegres, com sorrisos graciosos, nuas. Suas. Prontas para serem dele. Mas elas param. Semblantes fechados, preocupação e medo. Bilal olha para trás e vê Luiza Mahin. Linda, altiva, formosa. Bilal sente seu coração disparar. Apercebe-se que estar com ela é a sua recompensa maior. Agora é ele que corre em direção a ela. Quando vai abraçar e agradecer o seu amor, sente uma forte chicotada.

Acorda.

– Quanto aos tementes, viverão em jardins e em felicidade. Gozando daquilo com que o seu Senhor os houver agraciado; e o seu Senhor os preservará do suplício infernal. Ser-lhes-á dito: Comei e bebei, com proveito, pelo que de bom fizestes!

Vigésimo quarto dia de açoite

Acordou das últimas cinquenta.

– Pode ir... Acabou.

– Pode levantar e seguir o seu rumo.

– Pode...

– Ir.

– Sabei que aqueles que contrariam Deus e Seu Mensageiro serão exterminados, como o foram os seus antepassados; por isso nós lhes enviamos lúcidos versículos.

Recurso aceito e o Bilal Licutan, escravo batizado de Pacífico e de propriedade do médico Antônio Pinto de Marques Varella, foi condenado a somente seiscentas chicotadas.

(Outras Vozes: contos sobre o negro escravizado no Brasil, p. 47-64).

 

1 Do relato do chefe de polícia Francisco Gonçalves Martins – 29 de janeiro de 1985.

2 BÍBLIA, Zacarias 4, 6.

3 BÍBLIA, Eclesiástico 43. 11, 12.

4 Frase de Maomé

5 Frase de Maomé

Texto para download

Poesia

 

A dança das imagens entre as palavras.
A viagem de volta ao desconhecido.
Aquilo que concerne ao cerne do ser.
A linguagem dos pássaros sem voz.
A hesitação sem a redenção do êxito.
O enunciado do ser travestido em vocábulos.
A ordem do ente na desordem dos seres.
Emoção recuperada no deserto da história.
A ação e o efeito de fingir-se sendo.
Parcas arrependidas uivando pela vida.
Desígnio de deuses esquecidos.
A pureza selvagem do espúrio.
Tudo o que se perde com a conceituação.

 

(O canto verde das maritacas, 2016)

Pobre

 

aquele de quem tiraram

tudo o que tinha

e o fizeram querer tudo

aquilo que não pode ter.

 

aquele que fizeram crer

ser quase podre

e desejar aquilo tudo

que não pôde ser.

 

(Pandemônio, 2020)

Poesia e Negritude

ou Adão Ventura esticando a pele até o poema

 

Matheus José [1]

 

RESUMO

 

Ler a poesia de Adão Ventura (1939-2004) é, também, de algum modo, observar um panorama de autoras/autores negros que registram projetos literários explicitamente políticos, sem, contudo, desconsiderar a preocupação estética com a linguagem, relevando o poema enquanto instância medular de expressão e de inscrição da negritude. Diante disso, este artigo objetiva analisar e interpretar o poema intitulado “UM”, de autoria de Adão Ventura, publicado na seção “Das Biografias” do livro A cor da pele (1980), observando como o poeta afro-mineiro mobiliza e/ou tensiona procedimentos textuais/literários e postura de negritude atrelada à experiência identitária-cultural, à crítica escravagista, à denúncia contra o racismo e à releitura do horizonte sócio-histórico por meio da memória familiar.

 

Palavras-chave: Poesia. Negritude. Adão Ventura. A cor da pele.

 

ABSTRACT

 

Reading the poetry of Adão Ventura (1939-2004) is also, in a way, observing a panorama of black authors who record explicitly political literary projects, without, however, disregarding the aesthetic concern with language, highlighting the poem as a central instance of expression and engaged inscription of blackness. In view of this, this article aims to analyze and interpret the poem entitled “UM”, by Adão Ventura, published in the "About Biographies", section of the book A cor da pele (1980), observing how the Afro-Minas Gerais poet mobilizes and/or tensions textual/literary procedures and engaged stance of blackness linked to the identity-cultural experience, the critique of slavery, the denunciation of racism and the reinterpretation of the socio-historical horizon through family memory.

 

Keywords: Poetry; Blackness; Adão Ventura; A cor da pele.

 

 

Introdução – ou lendo as paisagens negras no poema

É a afirmação do negro pela valorização de sua cultura, a começar pela poesia.”

(Kabengele Munanga)

 

Ler a poesia do afro-mineiro Adão Ventura (1939-2004), precisamente os poemas publicados em 1980 no livro A cor da pele, além das potências literárias com o manejo do verso, em que se destaca um poeta que une sua consciência política e racial a uma linha sempre inventiva e de descobertas formais (Gomes, 1992), também motiva depreender um panorama poético significativo de 1978[2] em diante no Brasil.

Ainda que perante o espaço exíguo da Ditadura Militar, estes foram anos relevantes para estruturação e disseminação da consciência de negritude no país tendo como lugar de inscrição o texto poético. Temos no poema o lugar de expressão da negritude enquanto convocação permanente de todos os descendentes dessa condição para que engajem no combate e na potencialização dos valores de suas civilizações destruídas e de suas culturas negadas (Munanga, 2020). Também é um chamamento para a retomada de consciência identitária, enunciativa, social e política de todos aqueles que foram vítimas da inferiorização e da negação da humanidade em algum momento.

Nessa paisagem, os poetas pretos assumem projetos verbais deliberadamente atrelados a sua negrura identitária-cultural e rotacionam novos sentidos, não assimilam padrões, reivindicam direitos, elaboram novas imagens e metáforas, desvelam realidades, expandem signos linguísticos, desaprovam processos sócio-históricos exploratórios, rompem com concepções excludentes de linguagem, de literatura, de sociedade e apresentam outros meios e argumentos.

Diante do exposto, é colocada em relevo uma poesia negro-brasileira que nasce na e da população negra-brasileira e, também, de sua experiência no país (Cuti, 2010). Acentuam-se, portanto, poetas pretos que inserem o próprio corpo e as próprias subjetividades no texto poético, ao mesmo tempo que mobilizam estratégias textuais e literárias que veiculam pontos de vista críticos referentes à situação e à história da comunidade negra em território brasileiro.

Ainda sobre essa geração de poetas, no prefácio da segunda edição do livro O Negro Revoltado (1981), Abdias Nascimento menciona, brevemente, o poeta Adão Ventura e outros poetas[3], destacando-os enquanto voz de uma nova poesia negra engajada disposta a inocular, sem cordialidade alguma, a questão do negro em seu expediente poético.

O que é incontestável nessa poética negro-brasileira, e constataremos lendo o poema intitulado “UM” (1980) de autoria de Adão Ventura, é que o enunciador de fato coincide/acompanha aquilo que está sendo enunciado na estrutura do poema.

Também nesse panorama, é possível perceber que o fazer poético passa a ser equivalente a um processo de reterritorialização, ou seja, a uma tentativa de recomposição de um sistema próprio de representações (Bernd, 1988, p. 23). Por isso, a propensão à ruptura, seja na medida em que a própria situação do negro se atenuava na sociedade brasileira pós-abolição da escravatura ou seja diante da própria instituição social literatura que, após vários anos imersa no “negro-tema”, sem dúvida, estranhe a conjuntura de deparar com uma voz diferente, com um texto diferente, com metáforas, estilos e pontos de vista diferentes elaborados por um corpo diferente proveniente de outros corpos também diferentes até então objetificados, reduzidos, despossuídos de competências linguísticas e capacidades crítico-criativas.

Nessa perspectiva de tensionamentos na relação entre negritude e literatura, o pesquisador Eduardo de Assis Duarte aponta para essa dobradiça descentrada e descentralizadora ao argumentar sobre edificar uma escritura que seja não apenas a expressão dos afrodescendentes enquanto agentes de cultura e de arte, mas que aponte o etnocentrismo que os exclui do mundo das letras e da própria civilização(Duarte, 2014, p. 400).

Em síntese, antes de debruçarmos na poética de Adão Ventura por meio do livro A cor da pele (1980) e do poema “UM”, fez-se necessário situarmos o poeta como mais uma voz integrante desse polifônico cenário da poesia negro-brasileira em que se nota que o eu lírico é lugar ocupado por sujeitos pretos e intrusos que registram, poeticamente, um enunciado no mundo para significar. Assim, ocupam o pronome, a imagem, a metáfora e a primeira pessoa do discurso com toda carga identitária, cotidiana, coletiva e histórica estremecida pelo preconceito, pela injustiça, pela humilhação, pela pobreza, pela exploração, pela indignação e que está explicitamente assumindo um projeto simples e complexo de escrita de poema motivado pela cor preta da pele e o que ela implica e demanda.

A cor da pele esticada até o debate

Diante desse panorama plural de voltagens reivindicativas e inventivas inoculadas sem cordialidade alguma no texto poético escrito por sujeitos negros, destacamos o poeta afro-mineiro Adão Ventura (1939-2004), nascido e criado no distrito de Santo Antonio do Itambé e que depois dos registros de alta performance, com os livros Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul (1970) e As musculaturas do arco do triunfo (1976), publica de forma independente a primeira edição do livro A cor da pele; um volume com total de 25 poemas lançado em Belo Horizonte/MG em 1980.

O livro é dividido cirurgicamente em quatro seções; Das biografias, Da servidão e chumbo, Raízes e Livro último, conta com prefácios de Rui Mourão e Fábio Lucas e com a concepção de capa de Sebastião Nunes.

Temos em A cor da pele a poética da desassimilação, de enunciação crua, com versos concisos e curtos que abarcam desenvoltura semântica, sintática e rítmica junto a imagens e figuras que comungam da negritude enquanto tomada de consciência em que o “elemento negro não é relíquia ou simples vocábulo” (Santiago, 1982, p. 123).

As composições do livro apresentam o contradiscurso desassossegado para os debates literários e culturais do Brasil naquele momento em que, ainda imerso no regime militar, propagava a superação da escravatura por meio da abolição e da miscigenação. Defronte dessa situação hilariante, um sujeito preto e poeta registra os seguintes versos: “minha carta de alforria/ não me deu fazendas, / nem dinheiro no banco, / nem bigodes retorcidos” (Ventura, 1980, n.p.).

Adão Ventura comunga da linhagem discursiva da poesia brasileira marcada por autoras/autores negros que explicitam a intenção extremamente contestatória de uma poesia de cunho eminentemente político que não despreza a preocupação estética. O poeta atrela à linguagem da poesia as demandas sociais e singulares, dessa maneira tensiona ou estabiliza a noção de que é na e pela linguagem que o indivíduo se constitui enquanto sujeito, como aponta também para capacidade da linguagem poética de motivar diversas alternativas para a compreensão não só da realidade absurda que o cerca, mas induzindo, também, a percepção de si e do outro.

O livro nos apresenta poemas como “Negro Forro”, “Eu-pássaro preto”, “Negro Escravo – versão para o século XX”, “Faça sol ou faça tempestade”, “Preto de alma branca: ligeiras conceituações”, “Meu sonho”, “Algumas instruções de como levar um negro ao tronco”, “Por que Jesus Cristo é sempre branco?”. São exemplos de construções poéticas cuja matéria trata diretamente de expor questões polêmicas e sensíveis que abrangem questionamentos sócio-históricos, literários, identitários e culturais que orbitam um mesmo núcleo de preocupação: a causa do negro brasileiro. Segundo comentário de um dos pesquisadores da obra de Adão Ventura, o professor Édimo de Almeida Pereira, a leitura da poética do autor permite o entendimento da realidade não pela razão cartesiana do mundo branco” (Pereira, 2010, p. 52).

Já no poema “Para um negro”, podemos ler versos como este: “para um negro/ a cor da pele/ é uma faca”, “para um negro / a cor da pele / é um soco”. Nestes versos, Adão Ventura aplica uma pressão no signo da pele que, ao ser esticada/expandida, alberga sobretudo que algumas profundidades envolvem o tecido superficial e dérmico, além da melanina e do fenótipo.

Na obra, ainda podemos observar como negritude e poesia interagem ou tensionam-se através da ação estratégica da anáfora, que cumpre sua função textual de atribuir ênfase a alguma ideia. Contudo, ao ler a repetição de versos, como em faça sol ou faça tempestade / meu corpo é fechado / por esta pele negra, é possível perceber a anáfora expondo a recorrência do aspecto insular do corpo e da subjetividade do sujeito. (Ventura, 1980, n.p.).

Também através do volume de poesia A cor da pele, percebemos a postura de Adão Ventura de expor e encarar o aviltamento, que é o mesmo que interpretar um conglomerado de escombros e subprodutos da barbárie colonialista-escravagista através de imagens viscerais, como em “levar um negro ao tronco / e cuspir-lhe na cara”, “a cor da pele / chicoteada / e cuspida”, “o preto de alma branca / e seus culhões de cachorro” e “sua voz falida / portas adentro”. (Ventura, 1980, n.p.).

Adão Ventura se destaca também por exibir uma ocorrência fronteiriça na experiência identitária-cultural do indivíduo preto em que, de um lado do polo, lemos versos como “eu, / pássaro-preto”, “eu-zumbi” ou “monto guarda / na porta dos quilombos”. Já por outro ângulo, lemos: “o preto de alma branca/ e seu cagar na saída” e “levar um negro ao tronco / e currá-lo no lixo”. (Ventura, 1980, n.p.).

Em plena década de comemoração de 100 anos da abolição da escravatura, num país assolado pelo mito da democracia racial, pelos entraves da ideologia da cordialidade, pelas políticas militares, paternais e pelos sentimentos humanitários enquanto modo de representação que encobre a absurda sobre-realidade sobre-vivida pelo negro no Brasil, o texto escrito por um sujeito negro-brasileiro, como uma intrusão, registra poeticamente um discurso outro mobilizando uma diversidade de estratégias de elaboração textual e de modulação temática.

Diante disso, este artigo pretende na próxima seção focalizar o poema UM, publicado neste livro A cor da pele (1980), observando como o poeta afro-mineiro mobiliza e/ou tensiona procedimentos textuais e postura de negritude engajada à experiência identitária-cultural, à crítica escravagista, à denúncia contra o racismo e à releitura do horizonte sócio-histórico por meio da memória familiar.

Lendo “UM” poema negro de Adão Ventura

em negro

teceram-me a pele.

enormes correntes

amarram-me ao tronco

de uma Nova África.

 

carrego comigo

a sombra de longos muros

tentando impedir

que meus pés

cheguem ao final

dos caminhos.

 

mas o meu sangue

está cada vez mais forte,

tão forte quanto as imensas pedras

que os meus avós carregaram

para edificar os palácios dos reis

(Ventura, 1980, n.p.).

 

Debruçamos, então, na análise e interpretação do poema intitulado “UM”, inserido cirurgicamente na seção “Das Biografias”. A composição em estudo, com as suas três estrofes, engloba de alguma forma e ao seu estilo o que abordamos nas seções anteriores, dado que aponta para a literatura do negro, o qual, deliberadamente, conecta sua negrura identitária e cultural a um projeto crítico e criativo de escrita poética em que estratégias textuais e literárias são mobilizadas na órbita de um mesmo núcleo de preocupação: a causa do negro brasileiro.

Em pesquisa, o professor Gustavo Tanus de Souza, estudioso da obra de Adão Ventura, apresenta uma orientação eficaz para a leitura do poema em questão na medida em que, nesta composição, o poeta afro-mineiro:

[...] transforma em matéria poética a cor negra da pele, expondo por processos metonímicos e metafóricos as reduções preconceituosas e racistas que o corpo negro recebeu como ‘herança’ do sistema escravista, estruturante de relações que ainda hoje são problemáticas. (Souza, 2017, p. 48).

 

O poema inicia com os seguintes versos: “em negro / teceram-me a pele”. Adão Ventura expressa, mesmo que simbolicamente, a intenção da sua pesquisa poética de atrelar ao poema as posturas discursivas da negritude referentes aos questionamentos identitários-culturais da pessoa negra e que implicam duas valências de compreensão contundentes.

A primeira é a constatação de que é o branco que concebe o negro enquanto sujeito torpe posicionando-o na zona do não-ser. Dessa maneira é que o vergalhão da baixa estima, da inferioridade, seja esta subjetiva ou socioeconômica, atravessa a experiência identitária e cultural do mundo negro, expondo, sobretudo, sua condição de excluído do pleno exercício da cidadania. No verso, a flexão pretérita junto ao pronome em teceram-me baliza essa perspectiva de um corpo que sofreu algum tipo de ação.

Já no que tange a outra valência, cabe ao negro a dificílima postura de resistência e de desassimilação para tornar visível sua existência por meio da afirmação de seu corpo e de suas subjetividades, como também envolve a interpretação da sua cultura, da sua condição socioeconômica, política e histórica.

Diante desses dois versos iniciais do poema “UM”, observamos que “assumir a condição negra e enunciar o discurso em primeira pessoa parece ser o aporte maior trazido por essa literatura, constituindo-se em um de seus marcadores estilísticos mais expressivos” (Bernd, 1988, p. 22). Por isso, a pronomização para o poeta negro determinar uma lírica outra enquanto lugar de dizer aquilo que é incômodo, coibido e, também, por representar o lugar do dizer daqueles que são coibidos do dizer e do sentir.

A situação do negro requisita, portanto, uma ruptura. Irrompida essa atitude, é na revolta que se torna viável a interpretação de que a solução dos problemas corresponde a questionar implicitamente as obstruções que impedem os negros de ingressarem na categoria genuína de pessoa (Munanga, 2020). É de se destacar ainda a dificílima recusa das ofertas de assimilação dos valores brancos que também perpassa a experiência negra de liberação e da sua reconquista e reinterpretação.

E o poema segue seu discurso, apresentando na mesma estrofe argumentos cabais que suplementam a experiência identitária engatando-a na perspectiva cativa.

enormes correntes

amarram-me ao tronco

de uma Nova África [...].

(Ventura, 1980, n.p.).

 

Observemos como o processo de adjetivação simples de um termo, correntes, que abrange na sua morfologia toda uma atrocidade racial, conecta a experiência identitária não estanque do negro à escravatura.

Ainda, com o uso do indicativo em amarram-me, o poeta atualiza a imagem visceral e humilhante de um negro-brasileiro ainda reduzido diante dessas enormes correntes.

Para Jussara Santos (1998), pesquisadora da poética de Adão Ventura, nestes versos o autor mostra que o lugar da marginalidade ainda continua sendo conferido ao indivíduo negro e que a cor da pele permanece delimitando espaços de clausura. Diante disso, tem-se a possibilidade de os vocábulos cor, corrente e tronco expressarem um mesmo sentido de aprisionamento e violência nessa estrofe.

A consciência afrodiaspórica de Adão Ventura é cirúrgica nesta segunda estrofe, na medida em que sugere a leitura mais atenta acerca do empreendimento escravagista, em que o poeta dispõe sua voz consciente que pertence a essa comunidade pretérita, sendo solidário a ela e, também, consequentemente, observa a situação atualizada do negro-brasileiro diante dessa Nova África em que ele, também, se encontra amarrado.

Cabe reforçar na leitura dessa estrofe a seleção lexical bastante modesta escolhida por Adão Ventura na tessitura de um discurso direto, conciso e complexo, registrando, por essa via, um texto-da-diferença, que acaba por operar um descentramento dos padrões hegemônicos do pensamento cultural, racial, político, literário e erudito difundidos neste país.

Partindo agora para o segundo bloco de estrofação do poema, deparamo-nos, novamente, com a flexão verbal e o pronome. Diante de mais essa ocorrência, convém, então, ressaltar o teor social da lírica de Adão Ventura mediante um conceito de lírica que não se esgota na subjetividade (Adorno, 2003), mas que trata de uma composição lírica preta que se dispersa e se incorpora a um todo e tem expectativa de extrair da mais restrita individuação a preocupação comum, apontando que essa universalidade e essa solidariedade do teor lírico são visceralmente sociais.

Então, aqui nessa segunda estrofe em que Adão Ventura quer falar de todos ou por todos, mas de acordo com a sua sensibilidade (Pereira, 2008, p. 140-141), é o racismo contra a comunidade negra que atravessa a experiência. O poeta oferece, por meio da estrofe, ângulos alternativos de compreensão da discriminação e o que esta implica no processo de afirmação identitária e cultural da pessoa negra-brasileira.

 

carrego comigo

a sombra de longos muros

tentando impedir

que meus pés

cheguem ao final

dos caminhos.

(Ventura, 1980, n.p.).

 

 

Lemos a criativa e crítica imagem do poeta carregando consigo a projeção de uma sombra diante de longos muros, em que a sombra é a ressemantização da própria pele negra diante do muro que é o racismo cotidianamente obstruindo alguma locomoção.

Temos nesta imagem o trânsito entre o literal e o figurativo, entre o factual e ficcional e, sobretudo, a metonímia biográfica concernente a toda uma comunidade vítima de um processo em que a cor da pele é indicação de descendência africana, mas também determina o foco do preconceito racial nas sociedades (Hasenbalg, 1979), sedimentando aos extratos sociais as segmentações etnicorraciais e condicionando o destino de gerações de negros e negras.

Ainda enfatizamos o processo de adjetivação dessa segunda estrofe em que o termo longos realça o caráter recorrente do emparedamento que implica os muros do racismo. Essa imagem metafórica sublinha com precisão que a urgência do eu enunciador negro e a linguagem verbal firmam um entendimento de que o texto poético “serve para manter vivos e eficazes os mecanismos humanos de percepção do universo, de pensamento e de fala; que a poesia pode servir para atender as necessidades metafísicas, místicas e míticas do ser humano” (Faustino, 1977, p. 277-278). Já o crítico literário Alfredo Bosi (2000) observa a poesia orbitando os signos do apelo, da denúncia e da comunhão, assim, por meio dessa segunda estrofe aparentemente simples, é possível que a linguagem da poesia e a consciência de negritude agenciem, de alguma forma, intenções insurgentes parecidas.

Percebemos, portanto, que as estratégias literárias que a estrofe abarca indicam o manejo do poeta com a linguagem e sublinham o comportamento da escrita de Adão Ventura em constituir esteticamente veículos para significar a discriminação e a segregação.

Convém realçar nessa segunda estrofe a pressão que o poeta exerce sobre o tecido dérmico, esticando essa instância superficial em um signo que aciona o debate racial e revela que “algo de mais profundo ainda permanece na cor da pele” (Santiago, 1982, p. 122).

Já na terceira e última estrofe do poema, após expor questões referentes aos conflitos da identidade cultural, a escravatura e a denúncia contra a discriminação racial, o autor inicia o verso com uma conjunção adversativa que intensifica o processo de interpretação da sua personalidade negra em que deixa transparecer sinais e possibilidades de deslocamentos.

mas o meu sangue

está cada vez mais forte

(Ventura, 1980, n.p.).

 

Em seguida, atrela-se à memória familiar essa instância fulcral para os empreendimentos de amputação de horizontes históricos.

 

tão forte quanto as imensas pedras

que os meus avós carregaram

para edificar os palácios dos reis.

(Ventura, 1980, n.p.).

 

Adão Ventura está no fluxo dos posicionamentos da pesquisadora Maria Nazareth Fonseca (2007, p.108) que, em artigo, acentua que a memória e as lembranças de fatos do passado percorrem os espaços da intimidade dos enunciadores para trazer à escrita modos diversificados de apreensão do mundo.

Nessa estrofe do poema, é através do referencial negro e ancestre dos avós, Teodoro da Fazenda e Dona Justina, que o autor suplementa sua experiência reforçando ainda mais seu horizonte de vínculos, redes e pertencimentos, destacando, assim, que um dos caminhos para ler Adão Ventura procede do forte sentimento de individualidade que identifica o eu em meio à coletividade(Pereira, 2008, p. 140). Nesses versos, o pronome pessoal espalha/dispersa até outros membros da sua prole, e é através deles que o autor reconfigura um horizonte histórico amputado, desintoxica sua biografia, afirma sua identidade, solidariza-se com os seus e contesta um processo bestial.

Adão Ventura, ainda nessa última estrofe, permite leituras a contrapelo, por meio da metáfora deplorável, em que há, por um lado, a subserviência dos corpos negros subalternizados e, do outro, o regozijo dos palácios e dos reis mantido através da barbárie racista sobre aqueles. É válido destacar novamente a figura ancestre e estratégica dos avós nessa estrofe, enquanto fio que conduz para a contranarrativa, que colide contra a versão oficial da história divulgada pelo mundo ocidental.

Nessa estrofe, podemos interpretar mais uma postura preta descentrada de Adão Ventura em considerar um monumento da cultura colonial como produto de exploração e de opressão (Benjamin, 1985), assim como colocar em relevo os indivíduos explorados nesta conjectura. Posto isso, podemos constatar, nesse bloco final, uma estrutura, ou forma, em que se tem os avós negros, essa corveia anônima carregando as imensas pedras e, do outro lado, a edificação dos palácios dos reis cumprindo a função de celebrar a exploração e o triunfo.

Considerações Finais

Em suma, as três estrofes do poema “UM” proporcionam, para a literatura brasileira e para prática leitora, uma pesquisa que tensiona poética e postura de negritude atrelada à experiência identitária-cultural, à crítica escravagista, à denúncia contra o racismo e à releitura do horizonte sócio-histórico por meio da memória familiar, sustentando a hipótese que essa composição representa uma fatura autêntica de poesia negro-brasileira, em que observamos, por meio da análise e da interpretação, a performance de um poeta assumidamente negro e que, diante do jogo textual e poético, opta pela habilidade de enunciar pontos de vista descentrados, desassimilados, contestatórios, polêmicos e sensíveis acerca da situação e da condição do preto-brasileiro, por meio de uma mobilização lexical simples, que não obstrui o acesso à compreensão e à complexidade das imagens e das metáforas elaboradas.

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NOTAS

 

[1] Matheus José é discente da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Colaborou no inventário arquivístico do poeta Adão Ventura como bolsista no Acervo dos Escritores Mineiros/FALE/UFMG. Autor dos livros: A cachoeira do poema na fazenda do seu astral, Selo Tomate Seco, 2013; Poemas na galáxia pupila, Editora Urutau, 2016; Utensílios de resiliência e flutuabilidade, Editora Primata, 2017; Poema ou pomar em meio ao caos, Editora Primata, 2021.

 

[2] Cadernos negros v.1 (São Paulo, Edição dos autores, 1978), poemas de Luís Silva (Cuti), Jamu Minka, Henrique Cunha Jr., Angela Lopes Galvão, Eduardo de Oliveira, Hugo Ferreira, Celinha e Oswaldo de Camargo.

 

[3] Abdias Nascimento (1981, p. 22) menciona Adão Ventura, Oswaldo de Camargo, Cuti, Oliveira Silveira e Oubi Inaê Kibuko.

 

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