Grito de angústia
 
À memória de meu pai
 
Dê-me a mão.
Meu coração pode mover o mundo
com uma pulsação...
Eu tenho dentro em mim anseio e glória
que roubaram a meus pais.
Meu coração pode mover o mundo,
porque é o mesmo coração dos congos,
bantos e outros desgraçados,
é o mesmo.
 
É o mesmo coração dos que são cinzas
e dormem debaixo da Capela dos Enforcados...
é o coração da mucama
e do moleque;
e eu sei muitas canções de ninar gente branca,
sei histórias,
todas feitas à sombra das palmeiras,
ou nas margens do Nilo...
 
Eu conheço um grito de angústia,
trovejante,
que deve estarrecer todas as minhas amantes
que tenho decerto...
 
Eu conheço um grito de angústia,
e eu posso escrever este grito de angústia,
e eu posso berrar este grito de angústia,
quer ouvir?
"Sou um negro, Senhor, sou um... negro!"

                       (15 poemas negros, p. 51-52)

Maralinga

Oswaldo de Camargo

De manhã, ainda a cidade escura, meu pai me acordou. Trouxe o meu peniquinho, pediu que eu mijasse depressa e me lavasse ainda mais depressa, que a casa do Dr. era longe e eu não podia atrasar, senão ficava mostrado que a gente não se interessou. Então engoli meu café, peguei o saco com minha roupa, os dois boizinhos de sabugo e, atrás de meu pai, saímos de casa, que ficou solitária dentro da neblina matinal e entre as três mangueiras desfolhadas pela geada do mês. Não me esqueço que meu pai trouxe o peniquinho, ato desusado, delicadeza de quem tinha desamparos por dentro e muita coisa doendo, por me deixar ir tão pequeno e magrelo ao povoado do Dr., lá servir e tentar ser alguém em Maralinga.

Então olhei os sobrados, os terraços, a matriz de São Gonçalo, com sua barriga de azulejo azul, a praça, que os jeremins tentavam atapetar com a floração amarela, após o bravo frio que desrespeitara os jardins e as latinhas com gerânios nas janelas. Olhei os sobrados, então olhei a praça e o coreto, olhei as ladeiras, enquanto meu pai recolhia o seu desgosto ao coração, que naturalmente sofria de me deixar. Minha mãe morrera na Semana Santa passada, na quarta-feira, e eu, quando vi tudo escuro, as velhas trajando panos de crepe e as moças conversando d'olhos baixos, os meninos com cara de susto, vi que haviam acontecido no mundo coisas muito sérias. Até o sol, pareceu-me, brilhava menos, os passarinhos dormiam cedo e eu pensei que fosse por causa de mamãe...

Mas meu pai caminhava quieto e eu ouvia nossos sapatos na pedra como saudações ao chão que deixávamos naquela manhã que até hoje me espanta, tão notória está na relembrança, tão nítida e confrangedora, tão única e desamparada na minha vida. Hoje meus olhos descem à ladeira que subimos pra galgar a saída de Rosana, cheia de rosas murchas nos jardins, cheia de coisas doendo, onde brinquei, briguei e defendi-me dos sustos que a vida prega às crianças sem parada, cuisarruins, infernais, mas que sentem, se o pai pega o seu braço e fala brabo: Vamos, doutor espera, tá chorando, menino?

Hoje estou me observando lá.

Dona Miquelina me desejou boa sorte, porque sabia que eu passaria ali, na rua Fortuna, em frente à sua casa decadente onde havia um piano belo e sonoroso nas tardes. O capitão, de camiseta, riu pra mim, fumando o seu cachimbo na janela e falou palavras de animação e tranquilizantes na emergência de eu ir de vez pra Maralinga.

Andamos mais de horas, o sol já estava na carapuça das montanhas, quando a brancura das casas anunciou Maralinga, povoado antigo, onde eu ia tentar me arrancar do desamparo e, se desse certo, prosseguir depois como homem mesmo e não ficar feito o primo Zequinha na fazenda, cultivando bicho-do-pé na sola, e pondo no mundo uns negrinhos mirrados, brincando ali na barroca, até que arranjassem, na oficina da necessidade, uma enxada e um talhão de café pra existência toda, sem termo, pros séculos seculorum, sem amém de anjo jubiloso, porque isso é desgraça e Deus não quer mas deixa. Foi dali, de Maralinga, que eu parti pra hoje.

O doutor era velho e tinha olhos azuis, pequenos e úmidos, debaixo dos óculos de aros dourados. O doutor chamava-se Ricardo, era dono daquilo, de Maralinga, e dos corações dos habitantes, pois era famoso de bom e eu me senti contente quando ele falou:

– Pois este é o menino, João? É pequenino...

E ele me pôs a mão na cabeça, me olhou lá de cima, pensativo, e depois, pra meu pai:

– Então, João, está resignado?

Meu pai parece que não 'entendeu o que era resignado, mas sorriu, pegou minha mão e respondeu ao homem rico:

– Pois é, doutor.

Doutor Ricardo me olhou de novo, gritou uma ordem rumo à casa branca maior e comentou pra ele mesmo, baixo, como quem admira pensamentos:

– O menino é pequenino, não imaginei... – mas, voltando-se a meu pai:

– Volta a Rosana, João?

– Volto hoje – respondeu meu pai – e vi que ele catava reforço difícil no coração, pra me deixar ali sem tremer sem molhar os olhos mansos que eram os dele.

– O menino então fica, doutor. É bom menino, o senhor pediu, eu trouxe ele. O que o senhor fizer...

E meu pai susteve a palavra, pôs a mão na minha cabeça, pegou o saco com minhas coisas:

– O menino é bom, sem luxo de mãe...

Pegou os meus boizinhos:

– Brinca pouco, pode usar ele, doutor.

Então o doutor Ricardo pegou também meus dois boizinhos, meu saco com as coisas e, em cima do meu espanto:

– O menino fica feito filho, João.

****

Meu pai, na estrada, tremia o corpo, de tanto chorar.

(In: O carro do êxito, 1972, p. 21-4)

 

Como num passe de mágica, a parede da sala desaparece e a imagem do barco atracado no cais ganha proporções reais e tridimensionalidade. Caminhando pelo píer, o pai, o menino e outro homem parecem estar a passeio.

– Meu inseparável amigo Luiz Cândido Quintela, minha dívida contigo já não tem mais dimensão!

– Que isso, meu caro? Você já vendeu seu sobrado para pagar dívidas de jogo. Queimou a herança de sua tia. Eu te aceito como hóspede em minha casa até que saia dessa situação. Apenas te peço uma coisa: não entre mais em minha casa de tavolagem.

– Por que me faz esse pedido?

– Porque uma casa de jogos não é ambiente para um viciado como você.

– Você pode ter razão. Mas eu sinto que a sorte se aproxima. Preciso só de um pequeno capital para reverter essa situação.

– Não posso lhe emprestar mais nada.

– E nem precisa. Tive uma ideia que vai resolver definitivamente meu problema. Me aguarde aqui que vou conversar com uma pessoa ali naquele veleiro e já volto.

– Certo. Preciso cobrar uma dívida de jogo de um estivador e depois nos encontramos.

Ambos se afastam e o pai continua a caminhada de mãos dadas com o filho, agora com 10 anos. Passando por um escritório do porto, o menino vê um calendário numa das paredes. Apesar de nunca ter frequentado escola, guarda os números correspondentes àquela data: 10/11/1840.

– Luiz, me aguarde aqui. Vou conversar com o barqueiro e já volto.

– Vamos ao Rio de Janeiro procurar minha mãe, pai?

– Estou pensando nisso.

– Pode ir conversar que eu espero.

De onde está não consegue acompanhar a conversa, mas percebe a insistência do pai, que volta e meia aponta para ele. Se estivesse mais perto, ouviria o barqueiro perguntar:

– Mas tem certeza de que o menino é escravo?

– Sim. Filho de escrava, escravo é. Eu o herdei de uma tia. Preciso desse dinheiro para salvar uma dívida.

– Está bem. Apesar de franzino, ele me parece bem vivaz. Posso conseguir um bom dinheiro por ele lá na Corte.

– Só te peço que não revele que o vendi. Ele é muito afeiçoado a mim. Diga apenas que lhe pedi para levá-lo ao Rio de Janeiro. Peço ainda que não o maltrate. Também me afeiçoei a ele. Não fosse essa dívida...

– Tudo bem. Tome a quantia que me pediu. Quanto ao tratamento quem decide sou eu. Agora ele me pertence.

Os olhos marejados de cada um do grupo não lhes permitem ver com nitidez a tristeza e o ar assustado do pequeno infante, ao entrar no veleiro. Menino vendido pelo pai falido, viciado em jogo, herdeiro perdulário de uma fortuna. Criança de olhar assustado, nascida livre, mas escravizada por conveniência e mentira.

A bordo do patacho Saraiva, seu coração palpita dividido o entre o temor do futuro incerto e a esperança de encontrar a mãe, assim como ele, levada para o Rio de Janeiro.

As lágrimas, que lhe escorrem pela face, não o impedem de ver o cais do porto de São Salvador, cada vez mais distante, onde ainda avista o vulto do pai de costas.

(A luz de Luiz, p. 42-44)

 

 
Grito de angústia
 
À memória de meu pai
 
Dê-me a mão.
Meu coração pode mover o mundo
com uma pulsação ...
Eu tenho dentro em mim anseio e glória
que roubaram a meus pais.
Meu coração pode mover o mundo,
porque é o mesmo coração dos congos,
bantos e outros desgraçados,
é o mesmo.
 
É o mesmo coração dos que são cinzas
e dormem debaixo da Capela dos Enforcados ...
é o coração da mucama
e do moleque;
e eu sei muitas canções de ninar gente branca,
sei histórias,
todas feitas à sombra das palmeiras,
ou nas margens do Nilo...
Eu conheço um grito de angústia,
trovejante,
que deve estarrecer todas as minhas amantes
que tenho decerto...
 
Eu conheço um grito de angústia,
e eu posso escrever este grito de angústia,
e eu posso berrar este grito de angústia,
quer ouvir?
"Sou um negro, Senhor, sou um... negro!"

 

(15 poemas negros, p. 51-52)

 

 

Em Maio

Já não há mais razão para chamar as lembranças
e mostrá-las ao povo
em maio.
Em maio sopram ventos desatados
por mãos de mando, turvam o sentido
do que sonhamos.
Em maio uma tal senhora Liberdade se alvoroça,
e desce às praças das bocas entreabertas
e começa:
"Outrora, nas senzalas, os senhores..."
Mas a Liberdade que desce à praça
nos meados de maio,
pedindo rumores,
É uma senhora esquálida, seca, desvalida
e nada sabe de nossa vida.
A Liberdade que sei é uma menina sem jeito,
vem montada no ombro dos moleques
e se esconde
no peito, em fogo, dos que jamais irão
à praça.
Na praça estão os fracos, os velhos, os decadentes
e seu grito: “bendita Liberdade!"
E ela sorri e se orgulha, de verdade,
do muito que tem feito!

 

(O Estado de S. Paulo, 25-01-1987, Cad. 2, p. 5)

 

 

Maralinga

De manhã, ainda a cidade escura, meu pai me acordou. Trouxe o meu peniquinho, pediu que eu mijasse depressa e me lavasse ainda mais depressa, que a casa do Dr. era longe e eu não podia atrasar, senão ficava mostrado que a gente não se interessou. Então engoli meu café, peguei o saco com minha roupa, os dois boizinhos de sabugo e, atrás de meu pai, saímos de casa, que ficou solitária dentro da neblina matinal e entre as três mangueiras desfolhadas pela geada do mês. Não me esqueço que meu pai trouxe o peniquinho, ato desusado, delicadeza de quem tinha desamparos por dentro e muita coisa doendo, por me deixar ir tão pequeno e magrelo ao povoado do Dr., lá servir e tentar ser alguém em Maralinga.

Então olhei os sobrados, os terraços, a matriz de São Gonçalo, com sua barriga de azulejo azul, a praça, que os jeremins tentavam atapetar com a floração amarela, após o bravo frio que desrespeitara os jardins e as latinhas com gerânios nas janelas. Olhei os sobrados, então olhei a praça e o coreto, olhei as ladeiras, enquanto meu pai recolhia o seu desgosto ao coração, que naturalmente sofria de me deixar. Minha mãe morrera na Semana Santa passada, na quarta-feira, e eu, quando vi tudo escuro, as velhas trajando panos de crepe e as moças conversando d'olhos baixos, os meninos com cara de susto, vi que haviam acontecido no mundo coisas muito sérias. Até o sol, pareceu-me, brilhava menos, os passarinhos dormiam cedo e eu pensei que fosse por causa de mamãe...

Mas meu pai caminhava quieto e eu ouvia nossos sapatos na pedra como saudações ao chão que deixávamos naquela manhã que até hoje me espanta, tão notória está na relembrança, tão nítida e confrangedora, tão única e desamparada na minha vida. Hoje meus olhos descem à ladeira que subimos pra galgar a saída de Rosana, cheia de rosas murchas nos jardins, cheia de coisas doendo, onde brinquei, briguei e defendi-me dos sustos que a vida prega às crianças sem parada, cuisarruins, infernais, mas que sentem, se o pai pega o seu braço e fala brabo: Vamos, doutor espera, tá chorando, menino?

Hoje estou me observando lá.

Dona Miquelina me desejou boa sorte, porque sabia que eu passaria ali, na rua Fortuna, em frente à sua casa decadente onde havia um piano belo e sonoroso nas tardes. O capitão, de camiseta, riu pra mim, fumando o seu cachimbo na janela e falou palavras de animação e tranquilizantes na emergência de eu ir de vez pra Maralinga.

Andamos mais de horas, o sol já estava na carapuça das montanhas, quando a brancura das casas anunciou Maralinga, povoado antigo, onde eu ia tentar me arrancar do desamparo e, se desse certo, prosseguir depois como homem mesmo e não ficar feito o primo Zequinha na fazenda, cultivando bicho-do-pé na sola, e pondo no mundo uns negrinhos mirrados, brincando ali na barroca, até que arranjassem, na oficina da necessidade, uma enxada e um talhão de café pra existência toda, sem termo, pros séculos seculorum, sem amém de anjo jubiloso, porque isso é desgraça e Deus não quer mas deixa. Foi dali, de Maralinga, que eu parti pra hoje.

O doutor era velho e tinha olhos azuis, pequenos e úmidos, debaixo dos óculos de aros dourados. O doutor chamava-se Ricardo, era dono daquilo, de Maralinga, e dos corações dos habitantes, pois era famoso de bom e eu me senti contente quando ele falou:

– Pois este é o menino, João? É pequenino...

E ele me pôs a mão na cabeça, me olhou lá de cima, pensativo, e depois, pra meu pai:

– Então, João, está resignado?

Meu pai parece que não 'entendeu o que era resignado, mas sorriu, pegou minha mão e respondeu ao homem rico:

– Pois é, doutor.

Doutor Ricardo me olhou de novo, gritou uma ordem rumo à casa branca maior e comentou pra ele mesmo, baixo, como quem admira pensamentos:

– O menino é pequenino, não imaginei... – mas, voltando-se a meu pai:

– Volta a Rosana, João?

– Volto hoje – respondeu meu pai – e vi que ele catava reforço difícil no coração, pra me deixar ali sem tremer sem molhar os olhos mansos que eram os dele.

– O menino então fica, doutor. É bom menino, o senhor pediu, eu trouxe ele. O que o senhor fizer...

E meu pai susteve a palavra, pôs a mão na minha cabeça, pegou o saco com minhas coisas:

– O menino é bom, sem luxo de mãe...

Pegou os meus boizinhos:

– Brinca pouco, pode usar ele, doutor.

Então o doutor Ricardo pegou também meus dois boizinhos, meu saco com as coisas e, em cima do meu espanto:

– O menino fica feito filho, João.

*

Meu pai, na estrada, tremia o corpo, de tanto chorar.

(O carro do êxito, 1972, p. 21-4)

 

 

Civilização

 

Aos "malungos" Odacir, Aristides,

Thereza Santos e Dalmo.

 

Subi na "Neurotic's House", porque Fred foi com a minha cara. Foi, pousou a mão no meu ombro, fa­lou logo:

— Gostei de você, preto, gostei mesmo...

O mundo bravo comigo, o desencanto reinava na minha vida. Exemplo: o maestro Borino, que me alu­gara o quarto, me enxotou e largou nos meus ouvidos umas palavras, com jeito sofrido, mas largou:

— Assim não dá, Paulinho, a gente quer ajudar, mas vocês...

Aí está, vocês, pretos, pessoal de cor... Se traiu o maestro, claro, se traiu. Vocês... ou seria: vocês, músicos, artistas? Não! O maestro Borino não me aguentou, claro, na sua sala deslumbrante. Alguém lembrou a ele o destôo, o desequilíbrio no ambiente... é claro.

Peguei, então, minha mala, e da estante da sala re­tirei os meus poucos livros, com um raspão, como re­colhendo faíscas pra meu começo de briga.

— A gente quer ajudar, mas vocês...

Parti, então, para um hotel, depois de examinar o cheque de cem cruzeiros, assinado por Borino, pelas lições de Harmonia que eu dera em seu lugar. Quase cuspi no cheque. Dormi então muito mal, levantei-me três vezes pra urinar. Palpando as paredes sebentas do hotel, senti que minha vida mudava. Senti mesmo que minha existência ia apodrecer, se eu não cuidasse dela, se eu não gostasse um pouquinho mais de mim... Minha vida começava a apodrecer. Minha vida ia apo­drecer, como uma fruta machucada, rolada pra debaixo da cama, por alguma criança. De costas, na cama, acom­panhei o vôo da barata, ziiimmm, tão breve. Minha vida também vai ter um vôo breve, pensei, seria bom se eu morresse. Sou um sujeito feio, fendido por com­plexos, sou um preto fodido, isso, fodido...

Dona Aída, a mulher do maestro Borino, falou que eu precisava gostar mais de mim. Bolas... Eu gostava era dela, mas com pureza, por Deus! Que olhos boni­tos que ela tem, que dentes, e que riso de semi-Gioconda... Eu gostava era dela, com pureza, e nisso nunca fui sacana, por Deus! Podia ser minha mãe...

Às vezes uma treva me assaltava e eu ficava mais escuro. Tenho fases dessas: sou um sujeito espontâ­neo na multidão, dou meus gritos contra o ar e cumpri­mento as coisas; súbito fico preto, no sentido defeituoso: sou um sem irmão, solitário entre o povo, na rua que gera tumultos, sou um moço desgraçado...

Então, muitas vezes dona Aída chegava com a chávena de prata (tanto luxo comigo pra quê?) e me trazia um chá, um comprimido. Eu quase chorava de sentimento, mas ela fazia que não enxergava e pedia que eu tocasse “As lembranças do castelo antigo”. Meus olhos úmidos, minhas finas mãos, meus braços tornavam-se asas de anjo, se ousassem tocar em dona Aída. Nada de sacanagem, nada de pensamento sujo. Podia não gostar de mim, mas de dona Aída eu gostava. Gostava dela, sim, e me comprazia comigo mesmo na cama, evitando pousar a imaginação sobre ela. Sou um sujeito confuso. Mas me resta no pensamento a imagem de dona Aída, sem respingo, sem jaça no meu coração.

Então eu tocava “As Lembranças do Castelo Antigo” e meus dedos, nos sons graves, arrebanhavam trevas, dragões e fossos. Dona Aída não se movia. Meus dedos ressuscitavam febres de princesas, paredes nuas e frias de masmorras. Mas o amor, ao fim, fremia sobre as teclas e ia, triunfante, subindo aos sons agudos, para a peroração gloriosa.

— Que coisa linda, Paulinho!

— Dona Aída, sou o seu músico. Essas lembran­ças "tuas são".

E eu ria pelas "tuas são", palavras de cavaleiro medievo cortejando dama. Mas, comigo, nada de corte. Ela podia ser minha mãe e eu a amava, talvez, como a mãe que me morreu muito cedo. Outra coisa: eu era casto e dona Aída sabia. E se aproximava de mim, às vezes, com os olhos batidos e tristes, Borino bebia e passava a noite fora. Eu ficava demente de medo, pois era o meu fim, pois não podia ser assim: Borino nas boites e eu na casa, sob o mesmo teto com Dona Aída. E eu pedia a Deus que Borino se comportasse, que aqui­lo não ia dar certo. Pedia que Borino voltasse a ser o sujeito tranquilo que conheci nos "Concertos Mati­nais", os cabelos levemente prateados, indicando juízo, o riso bondoso comigo e com os outros rapazes, o peito largo onde cabia muita compreensão.

— Moço, você tem talento, poxa... E está se per­dendo nessas liçõezinhas bestas... Vem comigo, rapaz.

Fui. Era maio. Treze de Maio levei-o a uma con­ferência sobre "Negritude na Modinha", pelo Eduardo Embondeiro, nome de guerra, que o verdadeiro era José da Silva. Borino fungou muito durante a confe­rência, balançou a cabeça e coçou a testa enrugada como a destrinçar enigmas.

— "Negritude"... Você vai sair de "Negritudes" e outras bobas atitudes. Vai morar comigo... Você se perdeu, rapaz, você está perdido nesse chão. Desse jeito você não chega a ser nada, ouviu? Nada!

— Mas eu sou negro e isso me diz respeito...

— Não reparei que você era negro... É, interes­sante, você é negro...

E ironia, como uma clava, me fendeu a resistên­cia. E ele me levou pelo braço e alugou o quarto vazio de sua casa e de manhã perguntou: — Como é, gos­tou? E sua mulher, dona Aída, trouxe o café pra nós dois e se sentou também, mas isso como num sonho, porque tudo passou e hoje ando com outros passos. Hoje respiro o ar de loucura na "Neurotic's House".

*Mas não posso deixar de voltar a dona Aída. É como uma flor que pende sobre o meu sono e roça-me a face na hora do pesadelo. Guardo daquilo uma in­descritível tristeza, eu, por natureza um debochado, pois o deboche tornou-se-me arma poderosa e fêz-me subir, com modos de gigante, na "Neurotic's House". Aprendi a rir do mundo e de mim mesmo. Mas há um momen­to em que meu coração cresce pra abrigar a imagem dela. Há um momento em que invento castidades nessa casa onde se encontram aleijões morais disfarçados co­mo bolinhas de barro cobertas de açúcar. Dá pro ga­roto, ele pensa que é bombom e, clack!, comeu barro e a garotada ri dele: Comeu barro! Comeu barro! E ele é bobo, bobão. Eu fui esse bobo... Evoluí modos de comportar-me. Agigantei-me no meu domínio. Casto e duro comigo, meus olhos cor de aço roíam, ao baterem nelas, as crostas das sujeiras do mundo. Eu, o rapaz de aço. Eu, o negro que se desejou paradigma e foi chamado de fresco e outras amenidades que os párias mentais armam contra o sujeito que se contém e não avança o sinal...

Mas, hoje, estou sentindo o bafo da loucura na mi­nha cara, hoje minha carapuça é de desânimo, nojo. Sou um sujeito gretado e me defendo entre muitas sa­fadezas. Procuro espécimes raros de desastres. Cata­logo-os para Fred, o doido, que me acha imprescindível e me paga salário muito alto.

Subi na "Neurotic's House", porque sou um preto inteligente e agudo (opinião de Fred) e também de­samparado, após tentar a beatitude. Fred leu meu livrinho de versos, “Um homem tenta ser anjo”, riu alto, gargalhou até ficar roxo, perguntou:

Você foi isso? Piada! Ah, ah, ah, piada! Pi-a-da! Mas eu subi, tenho dinheiro, graças a esse louco rico e desatento à minha esperteza.

Saí de manhã, picado de pulgas e com o nariz entu­pido de mofo.

— Vocês, pessoal de cor...

É isso: me levou com ele, fez que me deu a mão, mas por dentro se remordia de ter avançado o passo sem avaliar minudências... Não viu que eu não cabia naquele quarto, naquela sala, não viu que um preto ocupa muito lugar, se o deixam livre e ele é um sujeito que aprendeu a "golpear", isto é, educado, brunido de fi­nezas, coberto de ouro, que é a educação, sim senhor. Preto é um sujeito muito danado, se descobre o engonço do êxito e trabalha na sombra, acobertado por "sim, se­nhor", "o senhor é muito bondoso comigo", "nem tanto, minha senhora" e reverências que empinam o traseiro, mas empurram o carro do êxito pra frente.

Saí, pois, de manhã, sentei-me num banco da Pça. da República, onde conversei com o José do Patrocínio (Pa­trocínio, sim senhor, que sarro!, o cara nem sabe ler, be­be como um porco, fede a catinga e os engraxates cha­mam ele de José do Patrocínio, oh José do Patrocínio!).

Abri meu Cruz e Sousa, aquela edição de papel mendigo, do Zelio Valverde, li dois poemas, não buliram comigo. Eu estranhei: se Cruz e Sousa não bole comigo é porque estou bem ruinzinho, estou começando a ficar podre e um sujeito podre precisa ganhar dinheiro, se não fede, descasca, fica gretado e todo mundo fala: aquele é um sem eira nem beira e, se é um preto: é um preto "Tu" e não um preto "sim senhor". Desculpem de eu falar assim, mas estou amargurado, amargurado mesmo. Prouvesse a Deus que eu me desgovernasse feito um idiota, mas no fundo abissal me encontrasse como um homem, um homem cutucando o chão do abis­mo, catando caramujo, mas um Homem, entendeu o senhor?, um Homem!

Esses pensamentos de ser idiota, etc., me aflora­ram ao me sentir surripiado do cheque do Borino. Na Pça. da República. O José do Patrocínio não podia ser, pois eu lhe acabara de contar as peripécias do seu xará ilustre:

— Olha aqui, um negro aprumado, comprou um carro, já naquele tempo, tribuno (outro dia te explico o que é tribuno), beijou a mão da Princesa... Você, por acaso, não encontrou um cheque?

Sentei-me então noutro banco, desanimado. Peguei o livro de Cruz e Sousa, mirei a dona que passava, linda (ó Formas alvas, Formas brancas, Formas claras) e percebi que eu estava "emparedado”. Percebi que os “miseráveis, os rotos, são as flores dos esgotos", percebi que eu apodre­cera naquela manhã e que algo me ia acontecer, naquele instante, algo que me ia entortar o focinho da vida pra outro lado.

*

Era um sujeito de uns cinquenta anos. Cabelos loiros, olhos azuis, lábios finos e nariz fino, a testa larga, revelando inteligência muito alta. Homem bo­nito. Percebi, sem esforço, que era um branco. Parou na minha frente, a bengala de junco na mão, alçou o chapéu com uma inclinação graciosa:

— O senhor lê...

— Leio.

Adiantou alguns passos, um sorriso malicioso nos lábios:

— O senhor é um desocupado. O senhor lê... Em que trabalha? se me perdoa a indiscrição...

— Professor de Piano e Harmonia, respiro um pou­quinho pra recomeçar.

Fixou-me alguns segundos e nos seus olhos azuis eu vi meu rosto preto, úmido de águas do Reno...

— O senhor é músico. O senhor lê... Então, que acha de Bach?

— Bach? — e fiz uma cara de mui complexa aná­lise — Bach devia ser Mar e não bach = riacho. Es­creveu o Antigo Testamento da Música. A música deve tanto a ele como uma religião a seu fundador. O "kantor" de Sto. Tomaz continua sendo, ainda, o maior dos compositores...

Aí me falhou a memória e as ideias catadas breve­mente em Kurt Fahlen, Schumann e mesmo Caldeira Filho se misturaram ao meu desânimo, de modo que eu não sabia mais nada de Bach.

Olhei, então, a manhã que caminhava rumo à tar­de, os edifícios com suas barrigas planas de concreto, onde o sol batia feito um borrão amarelo, olhei a Praça da República. No banco, perto do coreto, o José do Patrocínio roncava.

— Bach é Bach, meu senhor.

— Eu gostaria de lhe falar... em outro local. Gos­tei de você, preto, gostei mesmo — e me pousou no joelho a mão peluda.

— Meu cartão, o cartão de Pred. Já ouviu falar na "Neurotic's House"? Pois me procure, então, me pro­cure...

Estendeu-me a mão, inclinando-se. E eu senti um cheiro áspero de colônia e seus cabelos, fixos como por goma, pareciam uma carapuça de ouro. E já a alguns metros de mim, repetia:

— Gostei de você, preto, gostei mesmo...

Hoje estou na "Neurotic's House" e Fred me apre­cia. Chego de manhã e minha função, além de bater as cartas e tocar piano, no almoço, é conversar com os frequentadores. Conversar oficialmente e sofismar, também oficialmente. Devo ainda aprender citações em várias línguas, ler a "Enciclopédia", pelo menos duas horas, e tocar em Klavarskribo, esse método para instru­mento de tecla, revolucionário, inventado pelo holan­dês C. Pott.

Em resumo, Fred me exibe como fruto de seu des­velo, cria sua. "Pegou-me pequeno a uma preta bêbeda, tuberculosa e sem marido, mas não me pôs em colégios, nada disso. Me levou com ele, me deu roupinhas bran­cas e, arrostando a fúria da família, ergueu-me às fi­nuras da educação, como filho seu muito querido, mui­to amado".

Meu ofício, então, é contar aos frequentadores da "Neurotic's House" o meu caminho amargo, o meu início, como um garotinho preto e ranhento, calça ver­melha, com um remendo verde no traseiro (verde = es­perança!) e pixaim ignorante de pente.

— "Nasci, minha senhora, a bem dizer por nascer. Meu destino surgiu furado, cercado de zeros, um des­tino zarolho, turvo e besta, minha senhora. Depois Fred me encontrou na gélida madrugada, eu vendia rosas diante de uma boate e cantarolava "God save the King", estropiado, mas muito engraçadinho. Minha mãe apren­deu o "God save" na casa de uma madame inglesa, onde trabalhou antes de ficar doente, bêbeda, tuberculosa e sem marido... Meu destino surgiu furado, madame, mas eu o consertei com a ajuda de "papai" Fred."

Quando minha ouvinte ria eu ficava satisfeito de minhas "verdades" e ela, por seu turno, feliz de se dei­xar levar...

*

Subi na "Neurotic's House", porque Fred foi com a minha cara, foi e ainda vai:

— Gosto de você, preto, você provou que um preto pode livrar-se de sua carga... Gosto de você, preto, gosto mesmo...

E ele me ajeita o nó da gravata, sorrindo, muito loiro, muito fino e bonito, como um branco.

É sua mão, no meu ombro, me belisca a carne até o osso, testando a resistência...

— Gosto de você, preto, gosto mesmo...

*

Um odor áspero, de colônia, me envolve, como nuvens de Civilização.

(O carro do êxito, p. 63 - 71)

 

 

É o Frio, Irmãozinhos, É o Frio!

 

Provo a quem quiser a existência do frio

 

NINGUÉM SABIA DONDE VIERA DO FRIO.

Para uns, ele já se havia instalado, há muitíssimo tempo, no País e engordara, sem que as autoridades percebessem. Achavam outros que os dirigentes do País não viam razão para deter o frio de que alguns negros se queixavam, vez ou outra, em páginas de jornais ou em depoimentos aos estudiosos que pesquisavam os efeitos do friíssimo bafo. 

Existia o frio?

Muitos duvidavam; outros queriam provas. No geral, contudo, a maioria se mostrava indiferente ante essa pergunta. O frio, se existente, teria, quando muito, a importância da sarna que se pega nos bancos da escola  primária. Coça um bocado, sim, mas não mata.

Por isso, quando Zé Antunes apareceu na cidade, afirmando que no País soprava um frio que só os negros sentiam e que, tinha certeza, tal frialdade já matara e continuava matando um incalculável número deles, quase todos os que souberam de tal descoberta riram muito com a notícia e do seu divulgador.

Zé Antunes, porém, não recuou, mas respondeu, num desafio:

– Provo a quem quiser a existência do frio!

Zé Antunes teria uns vinte e três anos quando começou a bradar a presença do frio. Um negro magro, alto, pixaim embaraçado por onde nunca andava pente. Um jovem solitário, de pais desconhecidos, que de repente apareceu na cidade, apresentando-se nas entidades negras, nos bares mais frequentados por afro-brasileiros, em suas reuniões de rua às noites de sextas-feiras.

Tal afirmação, no entanto, só começou a perturbar quando ele a levou ao Malungo1, o barzinho afro dos menos endinheirados. Muitos se sentavam junto do Zé Antunes, para ouvi-lo falar do frio, da “ameaça”, como alguns passaram a chamar o velho sopro que ninguém sabia  de onde tinha chegado.

– Já fez sumir muita gente – insistia –, continua fazendo.

No bar e restaurante Toca das Ocaias2, porém, preferência dos que se achavam em melhor situação financeira, Zé Antunes raramente entrava, pois ao tentar pela primeira vez tocar no assunto, diante de um grupo que ouvia o poeta Batista Jordão, intelectual de prestígio na coletividade, a maioria dos presentes não o levou a sério.  Disseram, sem dó, que o anunciador do frio, de escassas leituras, desembarcara recentemente do “Navio negreiro” do Castro Alves, trazendo no lombo um baú cheio de estranhas e absurdas conclusões.

Batista Jordão, o comentado autor de Várzea da mansidão, no entanto, não se rira do Zé Antunes.  Pediu que prosseguisse falando a respeito do frio, mas Zé Antunes, magoado, recusou o convite do poeta.

Todos sabiam que Jordão, publicitário, mulato de olhos grandes, unhas manicuradas, era o amante, tímido, de Ana Rosália, a dona e responsável pelo barzinho afro, cujos frequentadores, vindo no geral da periferia, por lá demoravam algumas horas. Abasteciam-se ali com as novidades, pegavam panfletos da raça quando houvesse ou tão só se aqueciam com o sentimento de que finalmente um “rumor negro” estava agitando a mesmice da cidade.

Ana Rosália era bonita, chegava, sem desgaste, aos quarenta anos, tinha um filho de treze, de um marido desaparecido no mundo quatro meses após o nascimento da criança.  Sozinha, pôs-se a enfrentar da maneira mais prática a nova situação: fez-se quituteira.

Juntou-se, depois, a duas primas chegadas do interior, abriu uma pensão; mais tarde, com a venda da pensão, comprou o Recanto do Bem-te-vi, que, por sugestão de Laudino da Silva, seu primo universitário, passou a ser chamado Malungo.

Quando Zé Antunes começou a denunciar o frio, houve apenas perplexidade. Que frio? Que evidência havia de tal absurdo? Doidice! O negro delira!

Alguns da Toca das Ocaias foram duros, ou mesmo cruéis, na avaliação da anunciada descoberta, envolvendo o frio com o mais prazeroso hábito do Zé Antunes:

– O frio de que ele tanto fala, ao contrário, deve ter vindo do bafo de conhaque, de que, convenhamos, Zé Antunes anda abusando.

Noticiou-se, no entanto, um caso concreto da glacial “ameaça”. Difícil de aceitar, mas afirmaram ter visto.

Se o crioulinho Josué Estevão montou tal cena, era gênio, pois impossível sofrer tanto, apenas para se mostrar, sem cachê, sem nada.

Coruca, Batista e Romário, uns garotos ginasianos, haviam marcado encontro com Laudino na praça Lundaré, perto do Bar Malungo. Algumas entidades negras, após discussões, apresentação de dezenas de projetos e, por fim, uma demorada angariação de fundos, tinham feito erguer na Lundaré uma estátua de Zumbi dos Palmares. Foi difícil deixá-la ali, mas, conseguida a permissão da Prefeitura, o pessoal se reunia, à noitinha, para dizer poemas afros, mostrar textos novos inspirados pela Afro-brasilitude ou, como queria Laudino, Africanitude:

– Os pés nessa miséria, o coração com a mãe África! Quem ainda nos dá forças? Houve falência e liquidação. Se o coração, sem que soubéssemos, não pulsasse distante, na tribo, ai de nós!

Reunidos em torno das ideias de Afro-brasilitude ou Africanitude, alguns jovens, então, formaram um grupo: o Grupo Malungo.  Coruca iniciava seus escritos e queria mostrá-los a Laudino. Batista e Romário, fascinados pelo ruído em torno de algo a que jamais haviam assistido e que jamais poderiam imaginar em sua vida na periferia, chegavam para conhecer os intelectuais do recém-fundado movimento literário negro, de que jornais e revistas andavam falando.

[...]

– Poesia não tem fronteiras... Olha, que é aquilo?

E voltaram-se todos para Josué Estêvão.

Aproximava-se do bando, batendo os queixos, um ruído seco que se ouvia a distância de metros. Retalhos de flanela enrolavam-lhe as mãos, a cabeça achava-se coberta com três gorros grosseiros de lã amarela, porém, o mais extraordinário: saíam-lhe dos tênis várias tiras de couro de gato, imitando canos de botas.  Subiam até a barriga das pernas de Josué. Magro, desajeitado, avançava com dificuldade, a cabeça pendida.  Algo absurdo, algo inimaginável sob o calor de setembro. Via-se, grudada no rosto, brutal, a vergonha de se achar em tão esquisito molestamento.

E, de fato, alguém gritou, já de longe, como farejando a gravidade do ocorrido:

– O neguinho está perdido!  Isso é  mais que gripe; é Sibéria...

Nesse instante, o idealizador do Grupo Malungo expunha aos companheiros o primeiro verso do seu poema “Eles verão!”

O despropósito das vestes, o treque-treque dos dentes, toda a figura de Josué inutilizaram o verso e Laudino, saído aos poucos da estupefação, pôs-se a mirar atentamente o friorento.

Os garotos ginasianos aproximaram-se, temerosos.  E Josué chegou: nos olhos, mais do que no frio, havia algo muito, muitíssimo estranho.

Laudino dobrou o papel com o poema que estivera a ler.  E, a voz rouca, aos berros, anunciou o impossível, a quase lenda, o fato suprainsólito que arrastaria a comunidade à beira da treva:

– É o frio!  É o frio, irmãozinhos, é o frio!

(A descoberta do frio p. 23-28)

 

Absurdo de minha vida!

Minha vida seria muito diferente se eu não tivesse, quando pequeno, aprendido tocar oboé.

Criança preta, pais apanhadores de café, absurdo que, com sete anos, sempre descalço, vadiando na fazenda Cristiana – em uma região hoje chamada Vale dos Castelos –, havendo me aproximado do notável instrumento logo alcançasse habilidade e inexplicável brilho.

Absurdo também eu, por volta dos seis anos, trazer às vezes no corpo cheiro de sabonete alemão – (Seife) – em circunstâncias que retive de narração até hoje, e só vou contar ao doutor porque vejo que já estou demais vergado debaixo da idade – 86, cheios, à meia-noite – e saber isso é muito importante para que desvende o que luziu e o que foi escuro nesta minha intricada existência.

O oboé na minha vida se deveu à alemanzinha Liddy Anne, uma entre os vinte e cinco emigrantes que aportaram a Cristiana, herdade antiga de Sinhazinha, na primeira leva que chegou, em 1934, para espanto e susto dos simplórios camaradas, gente preta, a maior parte.

Eu tinha seis anos. Absurdo eu ali, naquele ano em que vieram os alemães. Minha mãe apanhava café e não me levava mais com ela; meu pai tinha sido escolhido para o trabalho de separador de grãos; com uma vassoura juntava as sementes, depois tirava as que não prestavam. Minha achava mais digno eu ficar com meu pai – a mesma coisa que estar ao léu na fazenda, na barroca, solto, pois ele andava sempre, enquanto vassourava, distraído com imaginar alguma cantoria para apresentar nas festas em Pretéu, povoado adjacente a Cristiana. Meu pai inventava música, longe de pauta, sustenidos e bemóis, mas inventava bastante.

Absurdo esta minha vida!

Às vezes chego até a pensar que Deus, para se divertir, mas me estimando muito, resolveu que eu estivesse na fazenda da Sinhazinha naquele ano em que os alemães, descendo até o Vale, terminaram sua viagem; resolveu deixar o paiol ali escondidinho atrás do casarão, deixar que Liddy Anne tivesse doze anos e iniciação de corpo.

Absurdo!

Sou assim, por isso, um tanto “desnegrado” – dizem que pouco ligo para a minha raça – mas, anote: é que às vezes me desocupo de mim mesmo e volto àqueles anos. Pra quê? Para revolver-me no paiol antigo, à busca de alegria; mas sou triste.

Como, doutor, escapar de toda essa desavença?

Veja: sou hoje um homem desbotado, mas tive a minha cor. O oboé mostrou minha cor, de preto que se alçou e, então, foi notado; eu luzi, brilhei por cinquenta anos, na fazenda de Sinhazinha, em Pretéu, Vila Morena, em Mundéu, Tuim, aqui no triste dia do enterro do Antoninho que perdeu a vida pela mão do mestre por ter matado o pavão dele; depois na capital.

Quando os alemães chegaram, vindos de uma região perto de Zwickau – Saxônia –, mudou tudo na fazenda.

De repente, os apanhadores de café, empregados – meu pai, um deles –, perceberam a paisagem extraordinária que eram os teutos saindo cedo para examinar a terra, quase todos grandões, sorrindo, sem saber palavra da nossa fala, oferecendo chocolate pros molequinhos – exclamando So shöne schwarze Kinder! (Que lindas crianças pretas!), e os camaradas rindo da prosa deles.

E eles sorriam, cor de sol, cabelos lambuzados de ouro.

Seis anos, e a mãe de Liddy Anne me ouviu cantarolando alguma coisa, sentado no primeiro degrau da escada do casarão de Sinhazinha. Na certeza, estropiação de alguma toada caipira, invenção de meu pai. Talvez assim – (vou tentar tirar da memória, que já está muito gasta):

 

Me vingo dessa tristeza,

cantando só alegria;

vingo sim, oi lá!

 

Parou diante de mim, tentou chegar mais perto de minha face e acariciar-me o pixaim de molequinho; corri. Ela exclamou algumas palavras lá na língua dela, creio que lamentando, mas eu corri pra casa, que reunia dois recintos – paredes barro; cobertura, folhas de zinco. Para espantar pulgas, minha mãe borrifava no chão com mistura de água e estrume de vaca, e espalhava com vassoura urdida com galhinhos de alecrim-do-mato. Na comida, dava às vezes mingau de fubá com folhas de taioba. Mas eu estava pensando na mãe de Liddy Anne, o cheiro perfumoso dela e a mão alva, sem nenhum calo.

Demais vivida com gente alemoa esta minha existência, doutor; difícil limpar. Mas tudo abrindo caminho para o oboé, que eu iria conhecer com sete anos. Sem os alemães, não saberia de oboé. Sem eles, eu nunca estaria no salão da casa imensa de Sinhazinha, com ocasião para assistir ao despropósito que era viver no meio de tanta beleza, móveis de gente nobre, piano vistoso num dos cantos, luminárias muitas encimando peanhas lindas de metal dourado. Só mesmo por eu tocar oboé; mas, quando sucedeu isso de eu ser chamado pela Sinhazinha pra tocar no casarão dela, eu já ia nos meus doze anos, e um tanto sofrido, porque ninguém lá nem ligava para a música que meu pai inventava, só mesmo em Pretéu, nas festas como a de São Benedito ou na comemoração do passamento do Beato Nego Vito. E eu queria que ligassem.

(Oboé p. 37-40)

 

1 Camarada, companheiro. Título que os escravos africanos davam àqueles que tinham vindo da África no mesmo navio.

2 Ocaia: esposa, companheira, amante.

 

Texto para download

Não tinha olho que piscasse quando ela entrava na roda.

– Olha, mãe! É Luana que vai jogar!

O pessoal batia palmas e cantava até mais forte quando Luana aparecia e cumprimentava o adversário. Ela se ajoelhava ao pé do berimbau, fazia uma breve oração e dava um tremendo salto-mortal para trás.

– É bonito como quê! – comenta o velho Mandinga. – A menina joga com um dengo que lembra a vovó Adina. Aquela sim. Quando ela entrava na roda, não tinha valente que ficava em pé.

[...]

 

– Ei, pai! O que é um quilombo?

A pergunta vem de um menino de 5 anos, Luizinho, o irmão caçula de Luana, que os amigos chamam de “Luizinho Por Quê?”. O motivo está na cara: é perguntador como ninguém.

– Quilombo, Luizinho, era um lugar onde iam os escravos que fugiam das fazendas. Lá, negros, brancos e índios viviam em paz. Não tinha diferença. Não tinha nem rico nem pobre.

[...]

 

Os ancestrais de Luana viviam na África. Um continente que fica do outro lado do mar. Eles foram caçados como se fossem bichos, por homens muito maus. Foram amarrados e colocados num navio, que se chamava navio negreiro. Muitos não completaram a viagem. Morreram no mar, de tristeza, banzo.

Chegando aqui, no Brasil, foram vendidos para outros homens e tiveram que trabalhar nas fazendas, cortando cana, de sol a sol, e, pior de tudo, de graça!

Mas eles eram malungos, guerreiros, fortes, pessoas que nunca desistem do que querem. Souberam conquistar a liberdade e se juntar aos índios e a outros habitantes do Brasil daquela época, para construir esse quilombo. Aqui trabalharam, agora não mais como escravos, mas para eles.

 

[...]

 

Luana pisca forte e começa a sorrir. Agora ela já conseguiu saber onde é aquele lugar e em que tempo está:

– Ah, então é isso?! Aqui é Porto Seguro, na Bahia, e hoje é 22 de abril de 1500. Nesse momento, está sendo descoberto o Brasil. Gente! O meu país está nascendo!!!!

Um a um, os tupiniquins vão saindo do mato para de perto aquela gente estranha que chegava do mar. O primeiro foi Itabajauá, o pai de Itabaji. Depois, o próprio Itabaji e sua nova amiguinha, Luana, que estava de mãos dadas com a pequenina Tanauá. Essa, porém, puxava a mão e tentava escapar mato adentro.

Valente como ele só, Itabajauá foi direto aonde estava o homem barbudo, segurando a bandeira. Esse, que disse se chamar Cabral, tinha um montão de homens armados ao seu lado.

(Luana: a menina que viu o Brasil neném p. 7-32).