Carolina Maria de Jesus: Meu sonho é escrever
Os resíduos da escritora no tempo

 

Lorena Barbosa*


Nos berços de Sacramento-MG, no ano de 1914, nascia uma escritora improvável[1], que anos mais tarde viria a se tornar um dos nomes mais instigantes da literatura afro-brasileira, Carolina Maria de Jesus. Autora de obras como Quarto de Despejo: Diário de uma favelada (1960), que lhe rendeu a fama, com milhares de exemplares vendidos e traduzido para 14 línguas, Casa de Alvenaria (1961), Pedaços da Fome (1963), Provérbios (1963), Diário de Bitita (1986), entre outros, ela levou sempre consigo o sonho de se tornar uma escritora famosa.

Registrando em seus diários a vida na favela do Canindé, na cidade de São Paulo, e discorrendo sobre questões como a fome, a exclusão de determinadas existências e os jogos da politicagem, Carolina se ergueu sob os escombros de um país desigual e mísero, construindo, dessa forma, um lirismo muito próprio, numa estética única, que só seria aceita posteriormente.

Utilizando o mecanismo da arte e escrita para expressar sua condição social, a autora abre as portas para vozes historicamente silenciadas, contribuindo com seus escritos para os estudos pós-coloniais, de gênero e raça, que surgiriam no final do século XX.  

A partir dessas nuances, numa perspectiva de restauração apaixonante da sua obra, e com resgates cautelosos dos múltiplos significados do que é ser mulher, negra e favelada, sobretudo num país às vésperas da Ditadura Militar, Raffaella Fernandez, Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas e organizadora do livro comemorativo Onde estaes a Felicidade? (2014), apresenta agora nova “escavação” que se aproxima de um trabalho arqueológico pelos escritos e processos criativos de Carolina com o volume Carolina Maria de Jesus: Meu sonho é escrever (2018).

Reunindo páginas soltas, contos, fragmentos de romances, provérbios, diários, anotações, recados e poemas, alguns deles inéditos, Raffaella se deixa atravessar pela literatura de Carolina, definida por Heloísa Buarque de Holanda como uma “poética de resíduos” (FERNANDEZ, 2018). No livro, publicado pela Ciclo Contínuo Editorial, a escritora é observada a partir do tempo. Tempo este que, segundo a organizadora, aproxima-se muito do jazz, estilo musical criado pela população negra estadunidense.

Essa aproximação de temas, segundo ela, se dá pelo “descompasso friccionando elementos incompatíveis, gerando ruídos (...) uma enxurrada de palavras que segue seu curso sinuoso em movimentos descontínuos” (FERNANDEZ, 2018). Diante dessa semelhança, não podemos nos esquecer de que Carolina também era compositora, inclusive autora do LP de música popular Quarto de Despejo, lançado em 1961, que reúne 12 faixas sobre sua vivência e realidades da comunidade periférica.

O volume organizado por Raffaella, além de reunir textos emblemáticos como “O Sócrates africano”, também traz para a cena alguns datiloscritos. Um exemplo é “O Chapéu”, em que Carolina narra o deslumbramento de um famigerado político de Sacramento ao chegar em São Paulo e se deparar com tamanho progresso industrial.

No livro, todos os textos foram editados e revisados, com ajustes dos desvios gramaticais e ortográficos da autora, mas com cautela para que o caráter da escrita e do conteúdo não fosse alterado. Segundo Raffaella, tal escolha se justifica a partir dos anseios de Carolina, relatados pela filha Vera Eunice de Jesus, que durante um período também foi revisora de seus textos.

Na sua escrita, Carolina Maria de Jesus traz o inusitado, colando em seus textos as narrativas da pobreza, maternidade, raça e discursos alheios. Indo de encontro aos ditames do cânone literário, pode-se dizer que ela se aproxima da Estética da fome [2], tese-manifesto do cineasta brasileiro Glauber Rocha, no contexto do movimento do Cinema Novo.

Na semelhança de pensar e falar sobre a realidade cultural e a desigualdade socioeconômica a que estamos submetidos,  a escritora transforma a linguagem em arma crítica. Nesse consciente processo criativo, Carolina deixa registradas frases como “meu sonho é escrever”, que dá título ao novo livro, em respeito a seu desejo mais íntimo.

O material reunido é uma tentativa de reconstituição mínima do acervo deixado pela escritora, sem se preocupar com a lógica linear de sua construção, mas sim com o dever de manter vivo seu legado dentro da Literatura Brasileira. Além disso, é fundamental para que entendamos, sob a perspectiva dos excluídos, a história de uma cultura brasileira que até hoje se repete. A compilação de seus escritos, parafraseando o biógrafo Tom Farias (2018), busca, acima de tudo, compreender “a força criadora e criativa de uma mulher determinada a viver pelo seu ideal de vida”.

 

Referências

FARIAS, Tom. Carolina: uma biografia. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2018.

FERNANDEZ, Raffaella (Org.). Carolina Maria de Jesus: Meu sonho é escrever. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.

JESUS, Maria Carolina. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. Organização e apresentação de Audálio Dantas. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1960.

JESUS, Maria Carolina. Onde estaes felicidade?. Organização de Dinha e Raffaella Fernandez. São Paulo: Me Parió Revolução, 2014.

Notas

[1] SANTOS, Joel Rufino dos. Carolina Maria de Jesus: uma escritora improvável. Rio de Janeiro: Garamond; Fundação Biblioteca Nacional, 2009.

[2] Tese-manifesto Uma estética da fome, de Glauber Rocha, publicada em 1965, em comentários jornalísticos sobre Quarto de Despejo.


 * Lorena Barbosa é estudante do curso de Letras da UFMG e bolsista de Iniciação Científica do CNPq junto ao projeto literafro – portal da literatura afro-brasileira, Fase 2.