A escrita como forma de libertação

Rafaela Pereira*

“A liberdade não morre onde restar uma folha de papel para decretá-la”
Machado de Assis

Tendo como tema nuclear o testemunho da submissão escravista e suas consequências, 12 anos de escravidão (2013), cinebiografia de Solomon Northup, e A noite dos cristais (1996), de Luís Fulano de Tal, apresentam aspectos em comum que merecem ser destacados. O filme, baseado no livro homônimo publicado em 1853, narra a história de Northup, um negro americano nascido livre, violinista e amante dos livros e da música. Atraído por uma falsa proposta de emprego, ele deixa a sua cidade e acaba sendo sequestrado e vendido em 1841. Durante os doze anos em que viveu como escravo, foi torturado e submetido a trabalhos forçados em diversas fazendas da Louisiana, sul dos Estados Unidos. Já a novela de Luís Fulano de Tal põe em cena Gonçalo Santanna, negro livre que também foi vendido como escravo, condição na qual viveu durante dez anos. Na velhice, Gonçalo resolve escrever as suas memórias, encontradas décadas depois, na Guiana, por um professor e estudante de línguas que resolve viajar para Caiena, onde objetivava aprimorar o seu francês. Tais escritos foram preservados e se encontravam justamente na pensão onde o professor estava hospedado. Muito interessado no que poderiam conter aqueles papéis, ele tem em suas mãos a história de um fugitivo que fora escravo na Bahia no século XIX e que vivenciou um dos principais movimentos de resistência negra – a Revolta dos Malês.

Gonçalo Santanna era neto de uma africana nagô e filho de pai haussá. Conheceu a escravidão ainda menino, quando tinha apenas dez anos de idade. Por incentivo do pai, educado no alcorão, Gonçalo teve contato com as letras. Nesta época, havia uma presença marcante do islamismo entre os negros que viviam na Bahia, cujas principais características eram serem disciplinados, bem treinados para exercerem vários tipos de atividades e serem alfabetizados. Ao contrário da realidade da comunidade escrava daquele período, os malês, como eram chamados os nagôs islamizados, tinham conhecimento da escrita, o que em muitas situações era um risco para eles, já que a instrução estava relacionada à possibilidade de rebeldia, logo, à repressão.

A necessidade de letramento da comunidade escravizada foi repudiada pelos europeus que, ao reduzirem os cativos a mera força de trabalho braçal, fizeram o mundo acreditar que estes não poderiam nem precisariam saber ler e escrever. Certamente porque percebessem que o letramento tinha o poder de instaurar algo que pudesse transformar a forma de pensar daqueles sujeitos. Na prática, a intimidade com a escrita – logo, com o poder advindo do conhecimento –, funcionava como mais uma forma de intimidação para os submetidos, a exemplo do que ocorreu com Amaro e Solomon que, para não sofrerem novos castigos, tinham que ocultar suas habilidades. Solomon encontrou a liberdade através da escrita. Já Amaro não teve a mesma sorte e acabou descoberto e apreendido.

Quando a revolta explodiu em Salvador, na noite do dia 24 para o dia 25 de janeiro de 1835, várias casas foram invadidas em busca dos responsáveis pelo levante. A rebelião não ocorreu da forma como os malês planejaram e, devido às denúncias, tiveram que se adiantar e se defender como puderam. Uma das casas revistadas foi a de Gonçalo. Seu pai, Amaro, foi tido como suspeito pelo fato de terem visto Mala Abubakar, um dos homens mais procurados da Bahia, saindo de lá e também porque a milícia encontrou um papel com escritos árabes. O resultado destas suspeitas foi a morte da avó, a deportação dos pais para a África e a venda do garoto como escravo para um engenho no Nordeste. Inconformado com sua condição, Gonçalo tenta fugir várias vezes, não tendo muita sorte nas primeiras tentativas. Com o passar do tempo, fica sabendo de um lugar onde os negros não eram escravizados e vê este lugar como uma esperança para viver em liberdade. E este lugar era a Guiana.

A leitura dos papéis do fugitivo desperta várias inquietações no professor. Uma delas é a possibilidade do autor do manuscrito ser seu ascendente, já que possuíam o mesmo sobrenome. Além disso, seu bisavô trabalhou em uma usina de açúcar em Pernambuco, mesmo local onde nasceu sua mãe, e que, no século anterior havia sido o local da escravização de Gonçalo. Motivado por tais coincidências, o professor busca refazer os fios que levam ao passado. Quanto aos aspectos memorialísticos presentes no texto, podemos invocar o Ricoeur de A memória, a história e o esquecimento (2008) para destacar os conceitos de imagem e lembrança: esta estaria para Gonçalo, que relata os acontecimentos que vivenciou; já a imagem estaria para o professor, que por estar somente de posse de um registro, imagina as cenas relatadas por Gonçalo, que podem ser tidas como verdadeiras ou não.

É interessante ressaltar que o quando o professor reconstrói as memórias de Gonçalo, o fez sem estar de posse dos escritos do velho escravo, pois eles lhes são subtraídos de forma autoritária. É neste ponto que podemos observar a forma como Luís Fulano de Tal contextualiza no presente a Revolta dos Malês, relacionando-a à globalização e, sobretudo, ao terrorismo, que deixou o ocidente paranoico frente ao mundo árabe/muçulmano, aí residindo a principal motivação para o apreensão do manuscrito. Por estar com os papéis de Gonçalo, o professor é preso e deportado para o Brasil, acusado de espionagem e de fazer parte de uma organização terrorista. O texto ressalta que a cena dos policiais chegando e abordando o professor é idêntica à da prisão dos pais de Gonçalo. E, ao voltar, ele resolve “botar tudo no papel antes que esquecesse.” (TAL, p.119). Desta forma, passado e presente se entrelaçam a partir de flash backs inseridos com maestria a fim de aproximar a ficção da história.

Tal capacidade leva o leitor a ver no personagem quase uma testemunha dos fatos, alguém dotado de uma memória eidética, que lhe permitiria lembrar os acontecimentos com extrema exatidão e em abundante volume de detalhes. Entretanto, a ausência de datas, a exemplo da que marca a fuga de Gonçalo, aponta para a existência de lacunas de esquecimento presentes na trama. Por outro lado, elas convivem com uma riqueza de detalhes do contexto histórico a partir do qual a narrativa é construída, e remetem ao conceito de “lugares de memória”, de Pierre Nora:

São lugares, com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação investe de uma aura simbólica. (NORA, p. 21)

Com efeito, a Salvador presente na narrativa surge marcada por tais lugares de memória, por exemplo a Ladeira da Praça e a Ladeira da Conceição da Praia, locais que foram palcos principais da revolta e onde vários rebeldes amanheceram mortos na manhã do dia 25 de janeiro. Em tais espaços se fixou uma memória que não se vive mais, ou seja, para o senso comum, o que a Revolta representou naquele período não faz tanto sentido nos dias atuais da cidade. Mas de certa forma, os fatos se cristalizaram na memória da comunidade afro-baiana e contribuíram para a construção de uma identidade social ao longo das gerações que foram se sucedendo. Daí a importância do resgate histórico promovido em A noite dos cristais.

Ao colocar no papel a memória de seus infortúnios, o personagem denuncia as aflições e as penúrias da população negra escravizada. Deste modo, utiliza a escrita como elemento de identificação individual e social. Agora, se a busca da lembrança comprova uma das finalidades principais do ato de memória, como afirma Paul Ricoeur (2008), estariam Gonçalo e Solomon lutando contra algum tipo de esquecimento ou estas recordações estariam relacionadas a algum tipo de reconhecimento? É inegável que ambos os personagens possuem muitas coisas em comum, não só o fato de serem homens livres e depois, de forma injusta, tornaram-se cativos, nunca desistindo de conquistarem a sua liberdade. Mesmo tendo que negar o conhecimento que possuíam da escrita, encontraram nesta uma forma de conquistarem sua liberdade, de darem o seu testemunho daquilo que vivenciaram, e se a lembrança pertence ao mundo da experiência de um indivíduo, a memorização torna-se apenas um aspecto para a construção destas narrativas, já que a escrita ainda é uma das formas mais significativas para o registro de um testemunho e também de libertação.

Referências:

NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. In: _____. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 1981.

RICOEUR, P aul. A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Editora UNICAMP, 2008. p. 48.

NORTHUP, Solomon. Doze anos de escravidão. Trad. Caroline Shang. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2014. Do original Twelve Years a slave, 1853.

TAL, Luís Fulano de. A noite dos cristais. São Paulo: Edição do autor, 1996. 3. ed., São Paulo: Editora 34, 2001.

* Rafaela Pereira é graduanda da Faculdade de Letras da UFMG.

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