Revelações de Olhos d’água*

Adélcio de Sousa Cruz**

A maior parte de qualquer presente é feita de passado. A história [...] é em grande medida continuidade. Faz parte de seu complexo peso material não poder ser constantemente remodelada. E, mesmo quando conseguimos transformá-la de fato, podemos perceber que seu peso repousa como um pesadelo no cérebro dos vivos.

Terry Eagleton

 

O público leitor que ainda não teve a oportunidade de conhecer a literatura construída pelos textos de Conceição Evaristo pode começar pelo seu mais recente livro: Olhos d’água, publicado em 2014, coedição da Fundação Biblioteca Nacional e da editora Pallas. O livro é constituído de quinze contos, muitos deles publicados nos Cadernos Negros e que, agora reunidos, constituem um novo e intrigante mosaico de personagens e situações baseadas no cotidiano da comunidade negra/afro-brasileira urbana. É o que a própria escritora, sensação no recente Salão do Livro de Paris, denomina “escrevivência”, conceito-atitude que pode ser identificado em escritores como Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus e João Antônio, para citar apenas três exemplos.

Este modo de escrita é fundamentalmente comprometido com a vida, sem o receio de que o trato da lida cotidiana comprometa a qualidade literária, pois escrevemos justamente porque estamos aqui, vivos... Alguns o fazem e fizeram também no intuito de suportar a própria vida, o que não chega a ser o caso de Conceição Evaristo.

Outra característica marcante de sua criação literária é o que Eduardo Duarte denomina de “brutalismo poético”, pois a violência também integra a maioria dos enredos de suas narrativas. O que surpreenderá não somente aos novos leitores e leitoras é a maneira como a escritora tece e costura cenas de profundo impacto, no que diz respeito à violência urbana, imprimindo a quase inexplicável leveza no trato do tema. Estes dois fatores que compõem seu modo de criação literária, a meu ver, operam como estratégia e/ou convite para que leitores sejam surpreendidos ao se perceberem imersos na história contada. Arrisco pensar que a voz que narra tais histórias, em terceira pessoa, é feminina e negra, o que por si só não seria suficiente para manter o tom poético no ato de narrar e/ou construir/sugerir as imagens e/ou características das personagens. Entretanto, é fundamental para representar a proximidade da voz que narra aos acontecimentos que se desenvolvem vorazmente diante dos olhos-ouvidos do receptor.

Devo agora trazer para o diálogo com o texto de Conceição Evaristo a epígrafe de Terry Eagleton que faz referência aos conceitos de passado e história. Originalmente, no texto do teórico inglês, ao mencionar o segundo conceito indica significado mais amplo, que poderíamos chamar de a grande narrativa ou história humana. O texto de Evaristo, no entanto, pontua de forma suplementar o conceito ao abrir o livro com o conto “Olhos d’água”: o presente e o passado são apresentados/relidos a partir da perspectiva feminina e negra/afro-brasileira, mesclando a memória afetiva do indivíduo com a de sua comunidade de pertencimento. Ter o passado histórico como “um pesadelo no cérebro dos vivos” parece ser o componente que salta das páginas de forma repentina, chegando a tirar o fôlego de quem lê. Estas narrativas, na forma breve do conto, foram possíveis justamente pela “transformação” diária de sua própria história feita pela comunidade. E mais, é a história recente dos desdobramentos da diáspora africana no Brasil, operada pelo sistema escravista até que foi “oficialmente” concluído com a Abolição, em 1888. A “escrevivência” de Conceição Evaristo aponta, a partir de seu “brutalismo poético” a permanência e reatualização da violência do passado que atua, ainda, como pesadelo.

Críticos literários e escritores concordam, não pacífica e prontamente, num ponto: o trabalho literário deve ocorrer de maneira quase incansável, com a exploração de novos caminhos com linguagem, sempre em busca de renovação ou criação de algo único ou, ainda, de uma “assinatura” estética. No que diz respeito à produção de Evaristo, nesta coleção de contos, especialmente, ressalta o recurso de escrita que se baseia na hifenização, a qual passo a denominar, neste caso específico, palavras siamesas (cuja lista a seguir, aviso, pode estar incompleta): “lava-lava” e “passa-passa” (p. 16); “peitos-maçãs” (p. 22); “gozo-pranto” (p. 23); o nome de uma de suas mais contundentes de sua galeria de personagens, “Duzu-Querença” (p. 31); “flor-criança” (p. 46); “borboleta-menina” e “dedos-desejos” (p. 51); “ave-mãe” (p. 55); “corpo-coração”, “gozo-dor” e “jorro-d’água” (p. 60); “barrigas-luas”, “águas-lágrimas”, “dança-amor” e “buraco-perna” (p. 61); “alma-menina” (p. 63); “figurinha-flor” (p. 74); “quarto-marquise” (p. 76); “coragem-desespero” (p. 80); “beija-beija” (p. 82); “verdades-mentiras” e “peito-coração” (p. 83); “Deus-menino”, “imagem-mulher” e “imagem-homem” (p. 84); “rio-mar” (p. 99); “fumacinha-menina” e “contra-contra” (p. 101); “mar-amor” e “mundo-canal” (p. 104); “mar-amar” e “mar-morrente” (p. 107).

Esse jogo de busca-descoberta com palavras, devo mencionar também, passa pela experiência de Evaristo como leitora e produtora de poesia. Talvez, seja justamente esta particularidade de transitar tanto pela poesia quanto pela prosa, que contribua para a carga poética mesmo quando suas narrativas tratam de temática tão contundente quanto a condição feminina negra/afro-brasileira. E tal ludicidade séria não se resume às palavras siamesas. Os nomes escolhidos para seus personagens são criados a partir da aglutinação de palavras – “Luamanda” – exemplo formado pelo substantivo lua e o verbo “mandar” (conjugado no presente do indicativo, terceira pessoal do singular) – “Dorvi” – novamente utilizando um substantivo “dor”, aliado ao verbo “ver” (conjugado na primeira pessoa do pretérito perfeito). Outras fontes preciosas para a denominação de personagens são as culturas Banto e Iorubá. E não são utilizadas apenas para este fim, pois as referências às narrativas míticas africanas se apresentam ora como poderosas metáforas, ora como alegorias que podem se referir, direta e/ou indiretamente, à diáspora africana no passado brasileiro e seus desdobramentos em nosso “presente-cotidiano”.

Enquanto o mundo se modifica brutal ou tediosamente à nossa volta, os contos de Olhos d’água (2014) nos impulsionam a pensar sobre a condição humana vivenciada pela comunidade negra/afro-brasileira. E as narrativas não operam com objetivo de dar respostas prontas e fáceis ao público leitor, pois o desafiam constantemente a aventurar-se pela seara indagadora de nossa própria existência: “Mãe, qual é a cor úmida de seus olhos?” (p. 19); “Esqueceu da vida? Esqueceu de você?” (p. 29); “Não está vendo que ela era uma menina?” (p. 33); “Por que estavam fazendo isto com ela?” (p. 42); “Já que não estava dando para viver, por que não procurar a morte?” (p. 94). Entretanto, a esta última pergunta parece ser dada resposta em forma de um fio de luz no conto que encerra o livro. Para descobrir, sugiro que se aventure pelo mundo das personagens que brotam das narrativas de Olhos d’água.

* Publicado em O TEMPO, Belo Horioznte, 05/04/2015, Caderno “Magazine”, p. 5.

** Adélcio de Sousa Cruz é doutor em Letras, Estudos Literários (UFMG), professor de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura do Departamento de Letras da UFV; pesquisador dos núcleos NEIA e NELAP, ambos da UFMG; autor de Narrativas contemporâneas da violência: Fernando Bonassi, Paulo Lins e Ferréz (7 Letras, 2011).

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