A maquinação do tempo em 23 minutos: o afrofuturismo como contrafeitiço ao realismo capitalista
Kétely da Silva Oliveira
A especulação do futuro, a perlaboração do presente e a tentativa de apreensão do passado são ações intimamente ligadas à formação maquínica da realidade, sobretudo no que diz respeito ao seu plano de existência na literatura. A escrita engajada do autor e pesquisador Waldson Souza, na obra 23 minutos (2024), projeta a ambiência necessária para a transcrição de territórios existenciais em imagens ficcionais. Por meio de um golpe de magia potente, a história decodifica e reconfigura a maquinação do tempo e do mundo.
Originalmente lançado pelo Clube de Assinatura de Livros TAG inéditos, em junho de 2024, 23 minutos ainda teve a sua publicação realizada, em agosto do mesmo ano, pela editora HarperCollins Brasil. A narrativa em questão é tecida em prol da experiência de um estudante da cidade de Pedra Redonda, interior de Goiás, que passa a enfrentar uma maldição na véspera de seu aniversário. Após ser assassinado a caminho de casa, uma noite antes de fazer 18 anos, Hugo acorda minutos depois em uma casa abandonada, ao lado da arma do crime. Às 21 horas, entre dois minutos de agonia, o jovem passa a morrer todas as noites e a retornar à vida, 23 minutos depois, ficando preso a uma espécie de ritornelo infinito.
Desde então, cada noite vivenciada é acrescida da sensação de ter o corpo mais pesado e mais dolorido no dia seguinte:
Sozinho, tremendo de frio na cama, sem vontade até mesmo de ouvir música, fiquei me perguntando o que aconteceria se eu morresse em outro horário. Não tinha respostas, mas já estava me sentindo esgotado por causa da repetição das mortes. Os sintomas eram a consequência e um aviso de que não tinha como viver daquele jeito. Tudo o que eu queria era não sentir mais dor (SOUZA, 2024, p. 51).
Ao retornar à vida, as marcas das balas desaparecem, sendo todo o desarranjo dessa realidade agenciado por uma força sobrenatural incompreendida. Contudo, apesar de aparentemente reverter os danos da morte, tal magia desponta numa somatização do horror transmutado no corpo, por meio de um estado febril, um dos sintomas gerados pela misteriosa repetição instaurada.
Desafiando a lógica, a narrativa conjectura episódios inexplicáveis, mas pertinentes ao desvendamento da etimologia de seu mistério. Um deles se inicia com a arma que o jovem levara consigo na noite de sua primeira morte, com o intuito de investigar o que lhe havia ocorrido. Essa arma, como revelado posteriormente, contém balas que se reintegram ao tambor do revólver como se jamais tivessem sido disparadas. Nas escansões temporais desses eventos, o estudante descobre outros mistérios, cujo funcionamento o conduz a um de seus maiores dilemas: para cessar o ciclo contínuo de sua morte, seria necessário atirar em outra pessoa. A mágica reintegração das balas, assim, funcionaria como mecanismo de transferência do ciclo da morte, perpetuando-o em uma cadeia cronológica indeterminada.
Ao longo da composição, é perceptível como a repetição da morte-ressurreição, no sublinhar da experiência de Hugo, está interligada à repetição do trauma colonial, conforme descrito por Grada Kilomba (2019). A ferida continuamente aberta em Hugo, pela morte ininterrupta, reflete a imagem especular do genocídio da juventude negra no Brasil que, não por acaso, segundo o Mapa da Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), ocorre a cada 23 minutos. Esse dado, mencionado por Waldson Souza ao final da obra, em seus agradecimentos, revela um elemento de tradução importante em sua narrativa, composta nas nuances de sua criação (p. 233). Nesse escopo de pensamento, a reminiscência da violência colonial é construída como parte do presente de Hugo, instrumentalizada não apenas pela arma de morte cíclica, mas também pelos episódios de racismo institucionalizados em seu cotidiano (KILOMBA, 2019, pp. 71–72). A maldição sugere uma elaboração imagética da concretude de uma realidade violenta e dos efeitos nocivos do racismo.
Nesse viés, a obra apresenta especulações sobre o tempo, à medida que sua grafia traça procedimentos cinéticos de retorno e evoca noções cíclicas da história colonial. Ao descobrir a natureza da maldição e os meios para libertar-se dela, Hugo decide reunir informações capazes de interromper, de forma definitiva, aquele mortífero espiral. Nesses termos, o jovem coleta, em jornais e livros encontrados na biblioteca, relatos e notícias que o conduzem a um horizonte mais sombrio, ainda assim, capaz de promover uma nova imagem para o futuro.
Esse índice de visualidade, portanto, apresenta um desfecho agenciado por uma viagem no tempo, num movimento circular de ida/volta a um cenário colonial de escravização. A maldição é, como Hugo observa em diferentes espacialidades temporais, um dos vestígios do genocídio negro que, devido à configuração racista de uma arma criada para exterminar, exclusivamente, a negritude ao longo dos séculos, havia, por fim, até ele chegado. Contudo, ao observar de perto o momento exato da criação da magia, ele foi capaz de compreender sua lógica e revertê-la — não sem perdas, mas, ainda assim, criando um contrafeitiço e interrompendo sua reprodução.
Importa-nos assinalar que, ao traduzir o conceito de afrofuturismo, Waldson Souza, como pesquisador, oferece a percepção de que a ficção especulativa, o horror sobrenatural e a ficção científica são gêneros dialéticos que escapam ao real por meio de elementos irrealistas que, a despeito disso, refletem realidades conhecidas e sonhadas (SOUZA, 2019). A sua transmutabilidade como autor pesquisador, reterritorializa, em 23 minutos, a potencialidade do afrofuturismo enquanto criação literária. Nessa ciranda, os procedimentos críticos/estéticos da obra são revelados em imagens alternativas ao horror do mundo neoliberal-capitalista.
Esses processos evidenciam uma elaboração técnica intelectual-criativa dissonante do realismo capitalista produzido pela noção de um futuro vetado pelos desafios e tragédias fabricados pelo capitalismo globalizado. Como melhor nos ensina Mark Fisher (2009), a modernidade está atrelada à uma crise da imaginação sobre a realidade, em que o fim do mundo parece mais crível do que a possibilidade de um futuro mais digno, a partir de melhores organizações econômicas e sociopolíticas (p. 78). Assim, ao pensar a devastação mental e corporal da negritude, nesse cenário, Souza vislumbra tal maldição vencida por Hugo, por abdicar da impossibilidade de um real restituído pelo desejo e pelo sonho:
Hoje as horas deixaram de me preocupar e a morte não me segue mais. Ela não espera, não espreita, não observa. Não penso nela, não sinto medo, não fico ponderando sobre o que há depois. [...] Enquanto houver o agora, só quero estar bem. Viver uma vida boa, sendo eu mesmo pelo tempo que me for permitido, entendendo que a nossa existência é feita de vários ciclos (p. 230).
Em sua trajetória, Hugo experiencia uma intensa melancolia e desesperança. No entanto, simultaneamente, aprende a restaurar sua vitalidade e emocionalidade ao emergir de um estado paralisante de medo, alcançando uma mudança radical em sua perspectiva sobre si mesmo. A repetição da morte, antes um fardo mantido em segredo, passa a ser compartilhada com os amigos, permitindo que o contrafeitiço seja lançado com base em um trabalho coletivo e responsável: “A amizade deles era muito importante para mim, nossos laços envolviam cuidado e reciprocidade. Aos poucos, eu entendia que não precisava me sentir um incômodo ao receber apoio, principalmente vindo deles dois” (p. 168).
Resulta daí uma transformação ativa de Hugo, que aprende a analisar a pertinência de romper o silêncio e compartilhar seus afetos. Sua sobrevivência passa a ser regida pela partilha, codificando a transformação do silêncio em linguagem e ação — o que, nas palavras da poeta norte-americana Audre Lorde (2019, p. 52–53), significa dar sentido aos traumas recalcados e criar mecanismos objetivos de cura. É certo que a expressão da angústia e do medo não atua como um esvaziamento do traumático, mas sim como um recurso que possibilita a sobrevivência por meio de um processo criativo e contínuo de ressignificação: “[...] meus amigos eram os únicos que sabiam tudo o que tinha acontecido comigo, as pessoas que mais me conheciam. Eram também um lembrete constante de que eu não estava sozinho e de que podia pedir ajuda quando precisasse” (p. 229).
Em consonância com o que se observa na obra supracitada, o afrofuturismo não constitui a elaboração de um futuro utópico, mas sim de um mecanismo crítico e estético, capaz de construir imagens necessárias para forjar espaços de reflexão sobre modos de representação existenciais. Mesmo na morte, a história de Hugo torna presente a decisão de alcançar a dignidade individual e coletiva, diante da urgência de realizar um futuro livre da maldição que recai sobre sua vida e a de seus pares. No exercício dessa ficcionalização, o escritor expande seu direito de sonhar com futuros reais e mais fecundos — “de imaginar as ficções que desejamos encontrar no mundo real” (SOUZA, 2019).
Belo Horizonte, maio de 2025.
Referências
FISHER, Mark. Capitalist realism: is there no alternative?. London: Zero Books, 2009.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
LORDE, Audre. A transformação do silêncio em linguagem e ação. In: Irmã outsider: ensaios e conferências. Tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 51-56.
SOUZA, Waldson. 23 minutos. 1 ed. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2024.
SOUZA, Waldson. Afrofuturismo não é só sobre futuros utópicos, mas essas são as imagens que mais precisamos. Grupo de estudos em literatura brasileira contemporânea, 7 set. 2019. Disponível em: https://gelbcunb.blogspot.com/2019/09/afrofuturismo-nao-e-so-sobre-futuros.html. Acesso em: 17 maio 2025.
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* Kétely Oliveira é Graduada Bacharel em Letras/Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com formação complementar em Psicologia/Psicanálise, e integrante do grupo Portal da literatura afro-brasileira: pesquisas em rede.