Deixe que eu sinta teu corpo
Luiz Henrique Oliveira*
Vagner Amaro tem se consolidado no campo literário por meio de narrativas envolventes, reflexões densas e repletas de personagens bastante parecidas com seres do dia a dia de nossas cidades brasileiras. Se foi assim em incursões anteriores do autor no universo da prosa, a exemplo de Eles (contos), em obra mais recente, intitulada Deixe que eu sinta teu corpo (Editora Malê, 2024), o autor amplia o olhar sobre a realidade que o circunda, de tal modo a ter em mãos diversa matéria para a criação de textos ainda mais carregados de sentidos.
É preciso afirmar que a edição é cuidada, sóbria e conta com sutil projeto gráfico de capa, assinado por Dandara Santana e com supervisão de Francisco Jorge. A embalagem do livro sugere, tátil e visualmente, o contato com a “corporeidade” deste outro previsto pelo título. A ilustração, acima do título, sugere um movimento de corpos em abraço, duas faces de um afeto partilhado. Ao mesmo tempo, a escolha do papel amplia a intenção do texto verbal ao jogar com cores marcantes: o vermelho escuro da capa (para muitos, vermelho-sangue) contrapõe-se ao amarelo-vivo, presente tanto no título quanto na contracapa. Cores distintas e vibrantes, cada qual ao seu modo, “abraçam-se” pela dobra do papel-cartão encerado que reveste as narrativas. Ainda seria possível dizer que o papel pólen, utilizado no miolo, suporta bem a fonte Arnold pro light 13 e oferece conforto no ato da leitura. E, por fim, o papel escolhido parece clarear o amarelo da capa, quiçá metaforizando os contatos corporais que serão lidos por aqueles que abrirem as páginas do livro. Arriscaria dizer que edição convida o leitor (até o mais incauto) a fazer conexões com as narrativas.
Estas, aliás, totalizam-se 20 e estão agrupadas em 2 seções, contendo 10 contos cada: A parte 1 traz os seguintes contos: “Marlene, a bibliotecária”; “Deixe que eu sinta o teu corpo”; “Corta-mágoa”; “Aquele ano que não aconteceu”; “Feliz aniversário”; “Tainara”, “Beijo sem máscara”; “Nervos de aço”; “Rota”; “Deslike”. Já na parte 2, temos: “Água turva”; “O amor é um caos”; “Cupim”; “Edivaldo e Ercílio”; “Felipe”; “Aconselhando Machado de Assis”; “Mísia”; “Nuvens”; “Bernardo” e “Aquele frevo axé”.
Dentre inúmeras possibilidades, uma linha interpretativa da obra pode ser justamente a análise do desejoso contato de um corpo com o corpo de um outro, objeto de desejo. Proponho entender o corpo não apenas como o corpo humano, mas metáfora de tudo aquilo que dá forma e desperta sentidos em todos nós. Em outras palavras, o corpo (ou forma) aqui embala nossos desejos e nossas recusas. No primeiro caso, o desejo pressupõe uma falta e, segundo a psicanálise freudiana, é a falta um dos elementos que nos move adiante. E, no segundo caso, por vezes recusamos no outro o espelho daquilo que nós mesmo somos. Talvez seja possível afirmar que o livro proponha um ensinamento: ninguém se realiza sozinho. É na relação com o outro, com o estranho-familiar que nos situamos. Em texto homônimo, de 1919, Freud já afirmava: “o “estranho” é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito ‘familiar’” (FREUD, [1919]1976, p. 277).
Vejamos apenas um exemplo. No conto “O amor é um caos”, Marcílio e Fernando protagonizam um encontro entre personagens tão diversas e ao mesmo tempo tão parecidas. O primeiro é editor renovado, com mais de 30 anos de atuação, diretor da casa Motrix, celebrada por inovar a literatura nacional, por meio tanto de obras de vanguarda quanto de produtos comerciais, o “equilíbrio estético e ético da Motrix” (p. 95), segundo Marcílio, o que confere ao empresário prestígio entre os pares. Por outro lado, Fernando Carrão, jovem periférico, procura estabelecer-se como escritor e, para isso, enviou para a casa Motrix o original de seu romance de estreia.
“Se dos amigos havia se desvencilhado” (p. 96) e “se dos amigos, fugia” (p. 96), Marcílio, solitário, porém cheio de si e impaciente com o mundo além de seu apartamento na “zona sul do Rio de Janeiro” (p. 95), possuía um hábito incomum: ler os originais que chegassem à empresa. Não apenas percorria os textos, mas perversamente picotava-os em sua máquina, sentindo prazer neste ato, pois “isso lhe dava uma sensação de equilíbrio, de limpeza mental” (p. 96). Tal atitude lhe ocupava as manhãs, fizessem chuva ou sol.
Certa feita, chega-lhe às mãos justamente o texto de Fernando, o romance O amor é um caos, ao que o editor julga como “formulação precária, uma emotividade kitsch” (p. 97). Mesmo assim, Marcílio avança na leitura e se depara com os seguintes dizeres: “as pedras do centro da cidade iam se transformando em fardos desassossegados, como os que Ricardo levaria para sempre em seu peito envelhecido” (p. 97). O trecho desnorteou o editor que, em seguida, procurou conhecer o autor de tais palavras.
Ao convidar Fernando Carrão para um café no pomposo apartamento do Flamengo, Marcílio se vê diante de um prepotente jovem.
“Eu criei esse personagem, o Ricardo, como a expressão da velhice no homem gay contemporâneo”, disse Fernando, gesticulando de forma exagerada.
“Você é gay?”, perguntou sarcástico o editor.
“Não”. Fernando se desconcertou um pouco, assumindo uma postura menos segura (...) (p. 98).
Daí em diante, Marcílio decide publicar a obra de Fernando, que fica radiante com a notícia. Para isso, eles passaram a se encontrar três vezes por semana na casa do empresário, a fim de alterar trechos da obra e deixá-la melhor elaborada. Em determinado momento, Marcílio se impacienta com a limitação criativa de Fernando e chama de lixo o texto. Fernando, ofendido, derruba Marcílio no chão. Estaria o conto pronto para o clímax? Não.
A razão da agressão é que ambos, editor e autor, viam-se em Ricardo. Marcílio via na personagem do romance a imagem de si mesmo, a solidão diária, os passeios pela cidade, o desejo reprimido por corpos masculinos por detrás da leitura de tanto material impresso. É como se ler originais recalcasse o desejo de tocar o mundo lá fora, receber dele, arriscar-se, em última medida. De forma especular, Fernando via-se em Ricardo, vale dizer, projetava um futuro que potencialmente se desenhava à semelhança também ao de Marcílio. A começar pela dificuldade de aceitar a si mesmo como homem gay. A escrita, repleta de chavões, significava para Carrão a possibilidade de atingir universos (e corpos) jamais imaginados. Seria o romance um passaporte, ainda que arriscado, para experiência outras, que pudessem livrá-lo, quiçá, da solidão futura. Marcílio e Fernando, tão distintos, são bastante familiares ao verem projetadas as suas imagens na personagem Ricardo. O “estranho” Ricardo, de O amor é um caos, despertou o que de familiar e comum habita no escritor e no editor.
Ao final, não poderia haver desfecho mais simbólico. No dia do lançamento do livro, Fernando “estava pleno, sua hora enfim chegava, a hora da estrela” (p. 105). Com a livraria lotada de jornalistas, familiares e pessoas de toda sorte, a tensão coloca-se no ar: os livros não chegaram ao evento; Marcílio, tampouco. Funcionários deslocam-se até o apartamento do editor, tocam-lhe a campainha, mas ninguém atende. “Marcílio, nu, compenetradamente, fazia uso da máquina de picotar papéis e destruía um a um os exemplares de O amor é um caos (p. 106). Ao destruir os livros, Marcílio destrói não apenas corpos de papel, mas também Fernando, a reputação da casa Motrix e a si mesmo. Destrói, por fim, Ricardo, gatilho de tão peremptória ação. Assim como Ricardo, a solidão aqui é gatilho de sentimentos que habitam os corpos das personagens.
Poderíamos alongar a leitura de vários outros contos de Deixe que eu sinta seu corpo. Porém, deixemos essa tarefa ao leitor, porque cada linha da obra vale o melhor de nossa atenção.
Belo Horizonte, dezembro de 2024.
Referências
AMARO, Vagner. Deixe que eu sinta seu corpo. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2024
FREUD, Sigmund. O estranho. V. 17. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
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* Luiz Henrique Oliveira é Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. Professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens e da Graduação em Letras (Tecnologias da Edição) do CEFET-MG. Autor, entre outros, de Poéticas negras: representação do negro em Castro Alves e Cuti (2010) e de Negrismo: percursos e configurações em romances brasileiros do século XX (1928-1984).