Conceição Evaristo: vozes mulheres voltadas ao homem

 

 

Constância Lima Duarte*

 

 

 

 

Entretanto,
insisto que sempre estive inteira
no momento da escuta.
Contudo, a escrita me deixa
em profundo estado
de desesperação,
pois a letra não agarra
tudo o que o corpo diz.
Na escrita faltam
os gestos, os olhares,
a boca entreaberta
de onde vazam
ruídos e não palavras.

Conceição Evaristo

2022

 

 

 

Agraciada por duas décadas de forte presença na cena literária do país, com narrativas em que emerge o tom poético de construções e situações, muitas delas marcadas pela violência racial e de gênero – a exemplo dos romances Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da memória (2006); e dos contos de Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), Olhos d’água (2014) e Histórias de leves enganos e parecenças (2016) – Conceição Evaristo traz novamente a público uma surpreendente narrativa intitulada Canção para ninar menino grande, lançada em 2018, em edição logo esgotada.

Ao longo das últimas décadas, ela publicou ainda Poemas de recordação e outros movimentos (2008, 2017), participou de diversas antologias, com destaque para a série Cadernos Negros, e viu seus textos cruzarem fronteiras e surgirem em traduções para o francês, o inglês, o espanhol e o árabe, entre outros idiomas.

Em 2022, ela atende aos reclamos de seus leitores e nos entrega a segunda edição de Canção para ninar menino grande. Sem querer adentrar em minúcias comparativas, ou incorrer em spoiler, adianto que se trata realmente de uma nova edição e não apenas da reedição do livro de 2018. Evaristo segue exemplos fundantes – como o do mestre Machado de Assis que afirma, a partir de Pascal, ser o escritor acima de tudo uma “errata pensante” ao justificar as alterações nas diferentes edições de Memórias póstumas e Esaú e Jacó – e promove, ela também, significativos acréscimos na nova versão de sua Canção. Aliás, no excelente texto que introduz a narrativa, a escritora faz reflexões profundas sobre as dificuldades enfrentadas para apreender o ato/gesto de falar, ouvir e recontar, e transformá-lo em escrita, em sua incessante labuta de perseguir a escrevivência.

Mas o importante nesta nova edição é que o fundamental permanece. E o belo e sedutor Fio Jasmim, apesar de estar no centro da narrativa, não será o narrador das aventuras que vivencia, e sim as mulheres que o conheceram. Jasmim é o fio condutor do enredo nos vários cenários e situações vividas junto às “suas” mulheres. Numa narrativa de perspectiva afro-gendrada, como esta, o homem é o centro, mas também o alvo. Na figura de Fio temos a representação ao mesmo tempo do macho conquistador e do conquistado; do sedutor e do seduzido; do assediador e da vítima de assédio. E à medida que a narrativa avança, o mito do masculino se desmorona, e ficam mais evidentes os sentidos possíveis para seu nome – fio-cordel, fio-corte de um instrumento; e flor-jasmim, cujo perfume revela-se melhor à noite num claro apelo à sensualidade e ao erotismo.

Distante da figura do herói, o personagem representa as contradições do universo masculino, socializado desde a infância para aceitar pensamentos e ações sexistas. Com o pai e com outros mais velhos, aprende a ter orgulho de sua virilidade, tornando-se parte da engrenagem de dominação masculina naturalizada socialmente através da reprodução incessante de valores e comportamentos.

O trem que conduz é “de ferro” e, como tal, “come os trilhos” a modo de máquina implacável. Coincidência? Tal como o pai procriador e ausente, o jovem segue a cartilha da masculinidade tóxica que marca igualmente a identidade polígama de seus companheiros de trabalho. E tal como o trem, que em cada estação deixa e recebe pessoas e coisas antes de seguir viagem, o belo jovem também se faz “de ferro” nos corpos das mulheres que cruzam seu caminho.

E novos nomes surgem e desaparecem capítulo após capítulo – Neide, Angelina, Dalva, Aurora, Antonieta, Dolores... – restando apenas Juventina, a jovem amante, e Pérola, a esposa. A polifonia de vozes femininas, fruto da experiência própria ou alheia, alerta sobre os riscos do sexo sem compromissos, do prazer seguido do abandono.

Embora situado no tempo das “marias-fumaça”, Canção para ninar menino grande impressiona pela atualidade visível no imenso número de crianças ainda registradas apenas com o nome da mãe. Culpa da pobreza combinada à ausência de educação sexual e do planejamento familiar; ou da irresponsabilidade masculina que reluta em assumir a paternidade?

O fato é que, sem perder de vista a ternura, o poético e o erótico, marcas registradas de seus escritos, Conceição Evaristo denuncia e questiona o patriarcado, apresentando a questão como um problema que passa necessariamente pela cultura machista. Afinal, como ocorre com as mulheres, os homens não nascem homens, mas são feitos homens pelo arbítrio cultural transformado em natural. E Fio Jasmim mantém a “ordem do mundo”, preso ao estigma de ser macho, ao não revelar fraquezas, engolir o choro e renegar qualquer sentimento menos másculo, como a dor e a tristeza. Os benefícios do patriarcado têm um preço, e um dia ele terá que pagar.

Canção para ninar menino grande revela-se, pois, um livro de muitas surpresas e desafios. Além de criar uma narradora que abala a “verdade” da ficção, e tornar a própria autora também personagem, cria um protagonista viril para solapar a fantasia do macho e do machismo, não vitimiza as mulheres, e ainda sugere que homens e mulheres podem se constituir enquanto sujeitos inteiros, livres, capazes de amar e criar.

E tal distanciamento crítico se constrói pela via do recurso ao “testemunho ficcional”, a partir de múltiplas falas femininas. Qual sábia e paciente griotte, a voz da narradora se faz tecido de muitos fios-mulheres irmanados na elaboração do novelo narrativo. E, em consonância com o projeto da literatura negra ou afro-brasileira ao qual se filia, a onisciência desta terceira pessoa se estrutura a partir da escuta das amantes, compartilhando o narrado com o ponto de vista das apaixonadas e desiludidas. Conceição Evaristo mais uma vez contribui para o fortalecimento da literatura contemporânea, ao refletir sobre as necessidades e demandas inerentes às relações entre os gêneros.

Belo Horizonte, dezembro de 2022.

Referência

EVARISTO, Conceição. Canção para ninar menino grande. Rio de Janeiro: Pallas, 2022.

 

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* Constância Lima Duarte, é Doutora em Literatura Brasileira e professora voluntária do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFMG. Coorganizadora, entre outros, de Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo (2016, 2.ed. 2018); e Escrevivência: a escrita de nós Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo (2020).

 

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