“Por uma literatura (brasileira) menos ordinária”

Giovanna S. Pinheiro*

 

Durante muito tempo, Jesus foi criticada por não fazer literatura, e sim denúncia social. Muitas injustiças conceituais contra a autora de Quarto de Despejo: ela foi acusada de não dominar a norma culta e de não estabelecer uma separação entre vida social e matéria literária.

Todos brancos. [...]

Uma teoria materialista negra vai reconhecer tanto o potencial de denúncia da vida fragmentada

da comunidade de Canindé,

quanto os procedimentos

técnicos-narrativos que

Jesus utiliza para chegar

aos seus feitos estéticos

Luiz Maurício Azevedo

2021

 

A questão aqui colocada, como se lê nessa epígrafe de Luiz Maurício Azevedo, impõe-nos a urgência de uma revisão do cânone literário brasileiro. Historicamente organizado como forma não apenas de manter a tradição, mas também de atribuir um sistema de produção estético-formal – dentro da assim designada “alta literatura” –, tal cânone parece insistir, equivocadamente, em imputar à literatura negra um status de não pertencimento dentro de um conjunto de valores já estabelecidos. Estamos na segunda década do séc. XXI; no entanto, a concepção canônica da literatura ainda se manifesta com evidente força. Mudam-se os tempos, mas, numa sociedade estruturalmente racista, o status quo permanece o mesmo. Para Edimilson de Almeida Pereira (2022), há uma dinâmica de tensões que se insere nesse quadro literário, o que nos possibilita perceber tanto a necessidade de confrontar esse viés opressor, quanto lançar novo olhar para as estéticas que constituem outras literaturas. Deve-se, por isso, reconfigurar leituras críticas, de modo que estas estejam atentas à especificidade da língua/linguagem que integra as culturas e as histórias negras.

É, pois, desse espaço de torção que surge Estética e Raça: ensaios sobre literatura negra, de Luiz Maurício Azevedo: mestre em Comunicação Social pela PUCRS, doutor em Teoria Literária pela UNICAMP, escritor e editor-chefe, juntamente com Fernanda Bastos, na Figura de Linguagem. O livro, publicado em 2021, pela Editora Sulina (Porto Alegre/RS), compõe-se de 16 ensaios que abordam a literatura afro-brasileira, a afro-americana e os aspectos conceituais circunscritos a essa produção.

Na apresentação ao Estética e Raça, Azevedo sinaliza aos seus leitores a origem desses textos, publicados em jornais (Correio do Povo), em revistas (CULT), em periódicos acadêmicos (Nau literária, Parêntese) e no site Literatura RS – estúdio de produção de conteúdo e de divulgação da produção literária a partir do Rio Grande do Sul, aos quais se juntam os inéditos. Ao rigor analítico que modula tais escritos, podemos acrescentar uma linguagem aguçada, estética e politicamente, que não hesita em percorrer os equívocos da crítica literária eurocentrada, principalmente em torno da escrita negra, conforme assinala Rosangela Sarteschi, na primeira orelha do livro. Não menos importante é a revisão que o autor faz de aspectos conceituais envolvidos na caracterização das poéticas afro-brasileiras e afro-americanas.

De modo geral, observo que o projeto de Luiz Maurício Azevedo percorre ao menos dois eixos centrais de leitura, o primeiro, no campo sócio-político: “estou casado com a classe trabalhadora negra. E o fato dela não esperar nada de mim não apaga minha dívida” (2021, p. 10); e o segundo, no campo estético-formal. Esses dois eixos não se separam, muito pelo contrário: experiência, corpo e linguagem estão no centro das discussões, reforçando a questão da crise de representatividade – na esfera da mimesis e da política – tão bem delineada, por exemplo, no ensaio “Esse adorno, você teria também em preto”. Neste texto, propõe-se a criação de uma teoria literária materialista negra, a partir da tradição internacional iniciada por Eric Williams, que seja capaz de inserir o negro como sujeito produtor de debates intelectuais, acadêmicos, editoriais, críticos e culturais.

Azevedo menciona, entre outros autores, o caso de Carolina Maria de Jesus e a maneira distorcida como a crítica tem lido os recursos materiais de sua linguagem. Como não compreender a relação entre experiência e linguagem circunscrita ao seu Quarto de desejo (1960)? Sabemos bem que linguagem é manifestação partilhada entre sujeito e mundo; por extensão, pode ser ainda abismo, encontro, construção, lapidação e, como se tem visto, opressão e incompreensão: estas sim vinculadas à tradição formalista da linguagem, de caráter racista, em grande parte das situações. Para esta, reconhecer em Quarto de despejo um novo modo de operar o sistema signico, por meio das dicções negras, beira quase à insanidade.

A ausência desse debate, na concepção do autor, aprofundou a crise da representação nessas literaturas, o que acabou por sustentar certa estabilidade de um cânone cerrado em si mesmo, apoiado pela iniciativa editorial, cujo foco principal são as literaturas produzidas por brancos. É claro que um contraponto indispensável se formou, e não apenas no domínio da crítica: na ausência de espaço para edições de vozes pretas, surgiram os quilombos editoriais, assim definidos por Luiz Henrique Oliveira (2022) como o conjunto de ações no setor editorial negro destinadas à publicação de obras produzidas por autores/autoras afrodescendentes, no qual se insere a própria editora Figura de Linguagem, do autor aqui referido.

Ainda bastante atento a essa questão é o ensaio “Ideologias da cor na reconfiguração do cânone brasileiro”. Nele, Luiz Maurício Azevedo problematiza a função “normatizadora” das academias, que sistematizam, chancelam valores estéticos, e delimitam o que entra, sai e permanece na tradição literária. A revisão crítica ganha evidência, à medida que um painel histórico sobre a produção crítica brasileira em torno da literatura afro-brasileira vai sendo tecido. À dicção marcadamente racista de José Veríssimo, cujo projeto de branqueamento é conhecido por muitos, opõem-se os pensamentos de Zilá Bernd, Zahidé Muzart, Eduardo de Assis Duarte, Liv Sovik, Benedita Damasceno, para citar apenas alguns dos nomes.

A partir do terceiro ensaio, nota-se um direcionamento à literatura afro-americana, com enfoque nas obras de Ralph Ellison, Colson Whitehead e Toni Morrison. Nesse cenário, Azevedo realizou pesquisa de doutorado na UNICAMP, com residência-sanduíche na Rutgers University, Newark (EUA), cujo resultado foi o trabalho intitulado “A Toupeira invisível: marxismo negro e cultura antimarxista em Ralph Ellison”, defendida em 2016. Em “O livro invisível”, por exemplo, de Ellison, o autor se debruça, afetuosamente, à leitura e à recepção do escritor, trazendo ao leitor uma das camadas inerentes ao romance do afro-americano. Aponta, assim: “É por isso que a obra começa com um significativo ‘eu sou um homem invisível’. Ser capaz de determinar aquilo que se é, longe de ser uma limitação, uma libertação” (p. 65). Neste ponto, torna-se manifesta a ideologia do racismo, que afeta o corpo negro, o nosso corpo, invisibilizando-o diante de um cenário global de hostilidades e de opressão. Não há como suplantar a experiência violenta do racismo, como sugere o autor. Destacam-se, ainda, “Os meninos”, “O Azul mais escuro” e “A origem do nosso nome”, dedicados aos trabalhos Colson Whitehead e Toni Morrison.

Do sétimo ensaio em diante, escritores afro-brasileiros contemporâneos recebem atenção especial. Nomes, como os de Conceição Evaristo, Jeferson Tenório, Itamar Vieira Junior, Ronald Augusto, Priscila Pasko, Cidinha da Silva, Ana Maria Gonçalves, delineiam um conjunto de textos que abordam tanto a recepção desses autores pela crítica, quanto os procedimentos formais inscritos em suas obras. Em “Tenório e o anúncio da guerra”, Azevedo se propõe a uma leitura premonitória, por assim dizer, e também arguta de Jeferson Tenório, autor, dentre outros, de Estela sem Deus, publicado pela Editora Zouk, em 2018; e O avesso da pele, que saiu pela Companhia das Letras, em 2020, conquistando o prêmio Jabuti, em 2021. O texto, de caráter mais intimista, sem negar o seu próprio estilo, revela a admiração pela escrita de Tenório: “O modo como vamos ler o que Tenório brilhantemente escreveu, e o que vamos fazer com a construção estética que seu talento – e apenas seu talento – nos delegou são decisões nossas, que cabem somente à nossa autonomia inalienável” (p. 120). Não é para menos: Jeferson Tenório é assombroso, sua escrita é potente, política e poética.

Nesses 16 textos que compõem Estética e raça: ensaios sobre a literatura negra, Luiz Maurício Azevedo visa traçar um panorama crítico, teórico e literário sobre a produção negra, partindo do séc. XIX, conduzindo-nos ao XXI. As indagações continuam as mesmas, embora com pequenos avanços. Conforme ele sinaliza: “Até agora os críticos literários brasileiros se dedicaram a entender a manifestação do racismo em sua forma literária, quando o que importa é destruí-lo” (p. 10).

A partir desse ponto de vista, é preciso insistir: como provocar a crítica literária produzida no país a sair desse modus operandi ordinário? Como compreender que, no jogo entre corpo/voz e experiência dilacerante do racismo, uma nova concepção estética sobre a forma, sobre a linguagem, se anuncia? O texto de Azevedo nos faz recordar a própria natureza do ensaio, tão bem delineada por Jean Starobinski (2011) em seu estudo do gênero. O que está em análise é o poder de experimentar, de julgar e observar a si mesmo e ao outro. Ainda é preciso insistir noutro ponto: Estética e raça não apenas se compõe pela densidade do exercício crítico-teórico, como também evidencia a presença de uma voz negra persistente e necessária dentro da esfera sócio-política que circunda a instituição literatura, ainda que muitos a negligenciem. Escrita transnegressora a do autor, Ronald Augusto (2019) em seus estudos sobre Arnaldo Xavier.

Por fim, é interessante perceber o título provocativo do ensaio “Por uma literatura menos ordinária”, que acena, com evidência, à produção de Gilles Deleuze e Félix Guattari a respeito de Franz Kafka. Entretanto, no campo textual, Azevedo se refere, entre outros aspectos, à literatura brasileira, ao caráter “anódino” do que se tem produzido contemporaneamente no país, em oposição ao “brilhantismo criativo” de Jeferson Tenório, que consegue emular, com maestria, forma e conteúdo, estética e política. Assim, reinventar a tradição, como suplemento do que já está, é o que nos indica o Estética e raça: ensaios sobre a literatura negra. Enquanto prática discursiva que confronta o status quo, a escrita de Luiz Maurício Azevedo visa fraturar o habitual, o ordinário, no sentido mesmo daquilo se repete, que se faz presença fixa no pensamento instituído como norma. Rasurá-la é imprescindível contra as diversas práticas opressivas e racistas do nosso cotidiano.

Belo Horizonte, março de 2022

 

Referências

AUGUSTO, Ronald. O leitor desobediente. Porto Alegre: Figura de Linguagem, 2019.

AZEVEDO, Luiz Maurício. Estética e raça: ensaios sobre a literatura negra. Porto Alegre: Sulina, 2021.

OLIVEIRA, Luiz Henrique. Quilombos editoriais: características e estratégias Editorial “quilombos” – as independent initiatives. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/1382-luiz-henrique-silva-oliveira-quilombos-editoriais-caracteristicas-e-estrategias. Acesso 18 de março de 2022.

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Panorama da Literatura afro-brasileira. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/147-edimilson-de-almeida-pereira-panorama-da-literatura-afro-brasileira. Acesso 18 de marco de 2022.

STAROBINSKI, Jean. É possível definir o ensaio? In: Serrote 10. São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2012.

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* Giovanna Soalheiro Pinheiro é professora, escritora-poeta, mestre e doutora em Letras, Estudos Literários, pela UFMG. No momento, cumpre Estágio Pós-doutoral nesta Instituição. Pesquisadora também no NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e no Portal literafro, é coautora de Literatura afro-brasileira – 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., 2019).

 

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