Os olhos bovinos ou um modo outro de usar a língua/gem:

comentários acerca do livro Olho de boi de Giovanna Soalheiro Pinheiro

Matheus José*

 

Em outubro de 2023, foi lançado, através da Editora Reformatório, o livro de poemas Olho de Boi, da autora Giovanna Soalheiro Pinheiro. Trata-se da estreia da escritora na esfera da poesia, disponibilizando aos leitores um conjunto de poemas organizado em duas seções: Animalia Vegetabilia e Linguagem Mundo. Neste volume destacam-se, sobretudo, os desempenhos crítico e criativo da poeta, ressaltados através do manejo com a linguagem e com a poética, das quais as suas funções não são apenas de comunicar ou de expressar, convergindo, assim, com a abordagem da pesquisadora Leyla Perrone-Moisés, que sublinha, em Mutações da literatura no século XXI (2016), a potência do texto literário através da força de sua linguagem e da capacidade deste de enunciar de maneira antes insuspeitada.

Neste fluxo, diante das tensões entre linguagem e lírica, entre forma criativa e função crítica, a poeta Giovanna Soalheiro Pinheiro partilha com singularidade, nos 51 poemas publicados, seus enunciados poeticamente registrados através de imagens, cavalgamentos estilísticos, efeitos rítmicos, versificação concisa, pluralidade temática, excessos, semânticas plurais, rupturas sintáticas e experimentos gráfico-visuais no espaço da lauda. Assim, disponibiliza para a prática leitora uma fatura de possibilidades outras de inferir e, sobretudo, ao convocar os olhos do bovino enquanto potência interpretativa, a poeta sugere modos outros de ver, de observar, de compreender situações e condições, sejam estas afetivas ou não, individuais ou coletivas.

Esta resenha intenta, então, observar que a poeta, através deste empréstimo óptico, conduz a uma interpretação possível de que as perspectivas e os pontos de vistas do olho do boi são “outro modo / de usar a língua” (PINHEIRO, 2023, p. 54).

A crítica literária Célia Pedrosa, em Poéticas do olhar na contemporaneidade (2005), sugere uma distinção entre a visão como fenômeno meramente óptico e o olhar como índice de uma interação entre o óptico, o estético e o político. Recorremos a essa colocação para salientar que através do olho do boi aderido ao seu nervo ocular, a poeta Giovanna Soalheiro Pinheiro realiza suas interpretações, suas análises e convida o leitor a efetuar o mesmo, olhar de maneira outra, crítica e criativamente, as imagens, as memórias, as preocupações, os incômodos, os afetos, as alteridades, as pequenezas, pois, segundo a própria poeta, “penso / quando olho” (PINHEIRO, 2023, p. 43).

Ao convocar o signo bovino e a sua estrutura ocular, a poeta Giovanna Soalheiro Pinheiro, filia-se, ao seu modo e estilo, a uma linha discursiva da poesia em que o boi é um elemento estrutural sob o qual pode-se embasar várias análises metafóricas e críticas. Maria Esther Maciel, em O espaço “zoo” da literatura: animais e os limites do humano (2023), destaca “que os animais sempre frequentaram o imaginário cultural da humanidade, sob diferentes configurações poéticas, artísticas e religiosas, o que vem atestar a nossa intrínseca (e milenar) relação com esses viventes” (MACIEL, 2023, p. 61).

Cabe citar, diante disto, no panorama da poesia, uma espécie de bovinopoética, a partir de exemplos como os poemas “Pecuária”, de Gilberto Mendonça Teles, “Dar nomes aos bois”, de Adão Ventura, “Boi Morto”, de Manuel Bandeira, “Oração do boi”, de Carmen Bernos de Gasztold, “Boi da Paciência”, de António Ramos Rosa, “O açougue”, de Bueno Rivera, e, também, o poema “Episódio”, de Carlos Drummond de Andrade, em que a máquina bovina é capaz de transportar o sujeito para uma experiência em “outro reino”. Percebe-se, então, a diversidade de usos da imagem bovina na poética, seja na medida que o gado se associa a um processo de formação social e agroindustrial, seja pela sua utilização como tração-animal ou, sobretudo, enquanto animal de corte. Há, também, as imagens bovinas que adquirem um outro aspecto, explorando, como ressalta André Pinheiro (2021), as potencialidades bovinas extraídas, por exemplo, do seu modo de ruminar, de pastar e na expressão do corpo ou no brilho do olhar. Assim, é alçado um nível não mais da bestialidade, mas ao inocular-se no poético, estes animais/estes outros, como é abordado em Poesia e subjetividade animal (MACIEL, 2008), acabam por ensinar e sugerir bastante.

Já Giovanna Soalheiro Pinheiro aponta o olho do boi como modo outro de linguagem, e que, consequentemente, também é um modo outro de interpretação e de compreensão de temas, de questões, de situações ou de condições afetivas ou não. Ao tomar de empréstimo essa estrutura óptica bovina, a poeta comunga de “atravessarmos as fronteiras entre as espécies e de termos acesso à outra margem, a dos animais não humanos, num encontro também com a animalidade que está dentro de nós” (MACIEL, 2023, p. 65). Assim, a poeta versa que:

[...] como o olho de gente
olho de boi sabe
o que sente
         (PINHEIRO, 2023, p. 15).

Na primeira seção da obra, intitulada Animalia Vegetabilia, a poeta Giovanna Soalheiro Pinheiro disponibiliza algumas perspectivas a partir dessa negociação com o olho bovino. Acionando recursos gráfico-visuais e de versificação precisa, através do olho do boi é possível observar, depreender e interpretar questões que abrangem, por exemplo, o abate e o matadouro, em versos como “Aqui / a sina do boi / é outra” (p. 16) e no poema M(c)orte (p. 30):

 

Nascem aqui rumores ruídos resíduos
[...]
poros abertos) jaula (o terror e a recusa
[...]
                      (PINHEIRO, 2023, p. 30).

Cabe relevar, nas composições desta obra da poeta, a estabilização entre forma e expressão, como podemos ler nos versos acima, em que a disposição dos vocábulos aliterativos e dos caracteres no espaço gráfico da lauda orientam a leitura em que o termo jaula é posicionado entre dois sintagmas e entre dois parênteses invertidos, simulando, assim, o cenário de um abatedouro com toda sua tensão e terror. Ao destacar o olho do boi enquanto modo outro de perceber e compreender situaçõese condições, a poeta nos dispõe, também, realizar relações com alteridades radicais ao sondar a similaridade das condições tanto do animal bovino quanto do animal humano, ambos inseridos numa problemática de exploração, de potência e de extermínio.

Essa perspectiva é acirrada em outros momentos do livro, como nos poemas “Pólen” (p. 25) e “Bestiário” (p. 28), em que estamos, todos, diante de um necro-planejamento. A poeta enuncia que tanto as abelhas e as girafas “podem ser / extintas em breve // como nós, humanos” (p. 26 e p. 29).

Prosseguindo o exame de interpretações, de compreensões e de modos outros de olhar por meio do empréstimo do olho bovino, a poeta proporciona, para nossa prática leitora, possibilidades outras de interpretar estas questões polêmicas, como a indústria da carne e dos laticínios, conforme podemos notar no poema Outras formas de ser fêmea:

ao longe
ouve-se
o mugido de vacas
muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu
muuuuuuuuuuuuuuuuuu
muuuuuuu

[...]

vacas leiteiras
não consomem
bocados de gente
(PINHEIRO, 2023, p. 33).

 

Como podemos ler nos versos acima, manejando recursos visuais, gráficos e onomatopaicos, a poeta instaura um discurso crítico e, ainda, acessa, no decorrer da composição, não apenas o fruto laticínio da vaca, essa fêmea outra, mas, também, aciona outro subproduto da indústria bovina: “já seus bezerros / ― os vitelos ―” que, enquanto as “vacas leiteiras / vivem seis anos”, estes, vivem “apenas um” (PINHEIRO, 2023, p. 34).

Ainda na aderência do olho bovino enquanto modo outro de linguagem, modo outro de percepção e de atenção, a poeta indica, também, observarmos outra alteridade, que aliás, os bovinos, também, lidam: o reino vegetal. Assim, Giovanna Soalheiro Pinheiro menciona as plantas nos poemas “Da família Araceae” (p. 23), expondo uma “Tempestade verde” que “vaza no vazio / do espaço” e “Amarelas Vermelhas Azuis” (p. 11), em que a poeta versa sobre as plantas que “Guardavam elas os segredos da casa”, “[...] Os detalhes os gestos duros do senhor”, e, também: “― Uma história visual da violência”, “ ― Uma história corporal da violência”, e “ ― Uma história oral da violência” (PINHEIRO, 2023, p. 12).

É relevante destacar nesta postura da poeta a probabilidade de o olho do boi ser expandido a própria linguagem poética, no que tange transver e atribuir sentido àquilo considerado como insignificante e irrelevante. Essa disposição é ratificada, também, no poema “Uma ideia de planta”, através dos versos “Plantas / quando crescem, também ensinam / e ensinam porque sabem olhar” (PINHEIRO, 2023, p. 31). Frisa-se, diante disto, a função poética da linguagem/do olho bovino enquanto uma maneira outra/uma consciência outra de apreender o mundo.

Prosseguindo na análise daquilo que a poeta Giovanna Soalheiro Pinheiro recomenda perceber e interpretar através da utilização do globo ocular bovino, acentuam-se, agora, alguns poemas que se encontram na seção Linguagem Mundo. Nesta seção, a poeta, ainda com os olhos do boi, esse outro modo / de usar a língua (PINHEIRO, 2023, p. 54), percebe temas sensíveis que envolvem as suas próprias experiências enquanto mulher e cidadã. Desta maneira, a poeta elenca suas memórias, afetos e referências, como nos poemas “Era noite era São João” (p. 52), “Hiroshima não se esquece” (p. 61) e “O amor é um tomate vermelho” (p. 83). A poeta, também, evoca/observa, com olhos bovinos, outros saberes, como de Mestra Virgínia no poema “Uma canção folclórica” (p. 64). Já em outros poemas a poeta observa a postura feminina que “persegue / outro modo de estar” (p. 79), da menina que “corre / em direção / ao outro” (p. 76), da “Memória / da mulher em guerra” (p. 61) e o “Sonho / de uma // sonho / de tantas // ser / bailarina / no entanto / no entanto / um sonho / esvaído // um peso / nos ombros” (p. 80).

Ainda na seção Mundo Linguagem, a poeta, com os olhos do bovino, realiza uma contraleitura de artes visuais por meio do poema “Paisagem Brasileira” (p. 45), em que não se descreve o quadro “Morro da Favela”, de Tarsila do Amaral, mas instaura um questionamento acerca das condições inseridas nestes contextos, tensionando, assim, voltagens como o disfarce e a realidade.

Diante dessas possibilidades de percepções sugeridas pela poeta através do empréstimo dos olhos bovinos, é viável recorrer ao professor Edimilson de Almeida Pereira ao afirmar uma tendência de invenção na poesia negro-brasileira que “tem como um de seus aspectos singulares o entendimento da literatura como uma realização da (na) linguagem” (PEREIRA, 2010, p. 142) ressaltando, também, que a tendência de invenção busca uma poética de sugestões. Cito essa perspectiva na medida tanto dos poemas que compõem a obra, principalmente os localizados na seção Animalia Vegetabilia, quanto do sintagma que conduz o título do livro. Este trata tanto do olho fisiológico dos bovinos, capaz de realizar leituras outras, quanto da magia da semente, utilizada em ritualísticas de matrizes africanas, e que a poeta refere no poema “Mucunã”: “trepadeira lenhosa / amuleto da sorte // espanta mau olhado” (p. 27). Sendo planta ou animal, como pudemos verificar brevemente, o livro tenta expandir o signo linguístico do olho bovino a modos outros de perceber, modos outros de interpretar. Condição esta da própria linguagem poética, de auxiliar a romper um modo padronizado de perceber as situações, as imagens, os temas, os outros e as questões que nos envolvem.

Em suma, mesmo tratando-se de uma estreia, a poeta Giovanna Soalheiro Pinheiro apresenta com autenticidade no campo da poesia o Olho de boi, estabilizando consciência crítica, inventividade e manejo formal do verso. É uma maneira outra de compreender/de deduzir alteridades e particularidades, tensões, afetos e memórias. O olho bovino é, em síntese, a possibilidade de realizar leituras outras por meio da linguagem poética, de estimular a eficácia dos mecanismos de compreensão acerca das coisas, sejam estas afetivas ou não. Seja do reino vegetal ou do reino animal, a poeta reforça que o olho de boi é um modo outro de:

 

linguagem

(PINHEIRO, 2023, p. 27).

 

Belo Horizonte, 6 de março de 2024.

Referências

BOSI, Alfredo. Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 1996.

FAUSTINO, Mário. Poesia-experiência. São Paulo: Perspectiva, 1977.

MACIEL, Maria Esther. O espaço “zoo” da literatura: animais e os limites humano. Revista 2i, v. 5, n 7, p. 55-68, 2023.

MACIEL, Maria Esther. Poesia e subjetividade animal. In: PEDROSA, C.; ALVES, I. (orgs.). Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008, p. 219-225.

PEDROSA, Célia. Poéticas do olhar na contemporaneidade. Literatura e Sociedade, [S. l.], v. 10, n. 8, p. 82-103, 2005.

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Poesia brasileira contemporânea brasileira: invenção e liberdade na tradição cultural afro-brasileira. Verbo de Minas, v. 10, p. 137-158, 2008.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

PINHEIRO, André. No andamento dos bois: imagens bovinas como materialização da tradição na poesia de Drummond. In: JORNADA NACIONAL DO GRUPO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO NORDESTE, 24., 2012, Natal. Anais [...]. Natal: EDUFRN, 2012. Disponível em: <https://x.gd/STQVA>. Acesso em: 07 mar. 2024.

PINHEIRO, Giovanna Soalheiro. Olho de boi. São Paulo: Reformatório, 2023.

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* Matheus José é discente do curso de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e estagiário no Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade (NEIA/UFMG). Autor dos livros A cachoeira do poema na fazenda do seu astral (2013, Selo Tomate Seco), Poemas na galáxia pupila (2016, Editora Urutau), Utensílios de resiliência e flutuabilidade (2017, Editora Primata) e Poema ou pomar em meio ao caos (2021, Editora Primata).

 

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