Palavra encantaria

A voz que vem dos poros, de Salgado Maranhão

 

Giovanna Soalheiro Pinheiro*

 

Minha avó – Joana
Angélica da Conceição –, do alto
dos seus 95, sabia
o dia da morte. Detinha
seu alvará, suas locações.

 Na data determinada,
amanheceu encomendando
os filhos (todos já pais
de netos):
cuidem do Sérgio
que é cego;

cuidem do Doca
que é manco;
cuidem do João
que é distraído.

Cuidem também da lua
que é mãe do plantio;
cuidem do sol,
pai da colheita.”

E foi-se!
como um raio partindo
as nuvens. 

(“Memorália IV, Salgado Maranhão)

 

Com quantas memórias se produz um poema, com quantos corpos, fios e filhos, netos, avós, tios, amigos poetas, gerações? Com quantas terras se ergue uma voz? Estes são alguns dos motivos da composição do poeta e letrista, nascido em Caxias (MA, 1953) Salgado Maranhão, como se pode ler em “Memorália IV”, que integra a antologia poética A voz que vem dos poros, publicada, no final de 2023, pela respeitada Editora Malê. No poema, veem-se os signos da experiência, do corpo e da terra – rastros, biografemas – incorporados ao ato de nomeação da avó Joana Angélica da Conceição: uma figura real (?) reimaginada como linguagem. Esta, além de se preocupar com seus entes próximos, também nos ensina sobre a relação humana com a natureza ou com o natural: “cuidem também da lua/ mãe do plantio;/ cuidem do sol/pai da colheita.” (p. 81). É poesia telúrica (QUEVEDO, 2023) circunscrita aos elementos ancestres, isto é, àquilo que, sem limites, é vida e morte, tradição permanente, plantio e colheita. Nesse texto, a modulação concisa da linguagem e o corte provocado pelo enjambement permitem-nos acompanhar temporalmente, retornar e progredir, em direção a um tempo espiralar do qual nos fala Leda Maria Martins (2022), inscrito no próprio modo de conceber a forma/sentido.

Salgado Maranhão não é poeta de agora, pois produz e publica desde a década de 70 do séc. XX, embora seja um dos mais relevantes nomes da literatura brasileira contemporânea. Sua poesia – inespecífica, em certo sentido, tendo em vista a variedade formal que a compõe – segue a via inventiva e, ao mesmo tempo, emula vozes passadas que se traduzem na elegância verbal contida na criação do poeta: “sou da terra/ dos tambores que falam./ E guardo no corpo a memória/ que acorda o silêncio”. (p. 49).

Em A voz que vem dos poros, no entanto, observa-se um gesto inaugural: o de reunir, em 250 páginas, os poemas lançados em livros anteriores, como no poemário intitulado Ebulição da Escrivatura (Civilização Brasileira, 1978), com participação de 13 poetas integrantes da poesia marginal. Depois disso, Maranhão produziu vasta obra individual, lançadas pelas editoras Corisco, José Olympio, Imago, Sesc Rio, Booklink e 7Letras. Por esta editora, por exemplo, saíram O Mapa da Tribo (2013), Ópera de Não (2015) – Prêmio Jabuti em 2016 –, Avessos Avulsos (2016), A Sagração dos Lobos (2017), A Casca Mítica (2019) e Pedra de Encantaria (2021), último livro do poeta, anterior a esta antologia.

Alguns poemas desses livros, portanto, passam a compor a reunião publicada pela Malê, cujo objetivo é apresentar ao leitor a trajetória criativa desse poeta essencial para se compreender não apenas a literatura contemporânea, mas a formação cultural (afro) brasileira: “eu sou o que mataram/ e não morreu,/ o que dança sobre os cactos/ e a pedra bruta/ - eu sou a luta./ o que há ser entregue aos urubus/ e de blues/ em/ blues/ endominga as quartas-feiras/ - eu sou a luz/ sob a sujeira. [...] (noite que adentra a noite e encerra/ os séculos,/ farrapos das minhas etnias,/ artérias inundadas de arquétipos).” (p.79).

Nesse contexto, a poesia de Maranhão se insere num duplo jogo de tensões, não observado apenas neste poema, mas em toda extensão de sua obra: é linguagem produzida pelo deslocamento do corpo que não se encerra apenas na cultura ocidental. O poeta – ou a voz poética – fala desse lugar, mas não deixa de manipular os signos verbais contra a saturação dos padrões formais e estéticos de uma tradição centralizadora: “Outra vez o mar bate em meu cais;/outra vez me rechaça o coração/ poroso de espantos./ Eu que sou/ espessura aguerrida, água/ que virou sal: falo desde um não/lugar para dentro do sol que me exalta./ Dói no vento o gesto/ sem verbete;/ a flor de orvalho/ entre ruínas./ Dói-me um cristal/ que deslumina. [...]” (p. 85). Outra vez, então, sugere-nos a insistência dos processos, a presença desse signo opaco e duplo que é o mar, espaço fluido de deslocamento, de transposição de fronteiras físicas e simbólicas, o que é comum à poesia de Salgado Maranhão. Em outro poema, lê-se: “ouço o mar açoitando a palavra;/ a palavra que é pedra que voa. [...] Sou também esta pedra que canta:/ uma ave cerzida ao Atlântico” (p. 125). Para lembrar a ave baudelairiana (“O Albatroz”), o sujeito lírico segue tecendo a palavra, nesse espaço aquoso e oceânico, recorte autorreferencial ou metalinguístico para a versura do poema e para a constituição do próprio sujeito na linguagem. Seria esse mar um abismo da travessia, a diáspora ou o Atlântico Negro? Parece provável que sim, já que o poeta, frequentemente, elabora um pensamento em torno dessa percepção. Sujeito negro que escreve e se inscreve na criação: pois é corpo e voz, experiência e linguagem. Engana-se, porém, quem pensa nessa relação como fato dado, explicitado, nos poemas. A poesia do maranhense é elaborada, imagética, possui um ritmo variável, cortado ainda por um silêncio material e metafórico.

Em “Tributo a Torquato Neto”, letrista e poeta, vê-se, por sua vez, o procedimento como referenciação: “hoje que você se foi,/ os bois que berravam na chapada/ viraram sócios do açougue:/ os néscios e os midas de sempre/ silen$ifraram nossa dor”./ e neste cenário de real pavor,/ como num lance de touradas,/ o troféu é entregue ao matador.” (p. 211). Ao evocar a presença do poeta carioca e sua morte suicida, surge a imagem de um boi, agora açougueiro, que se entrega à disputa radical entre a vida e a morte. Nesse sentido, deve-se mencionar ainda que Salgado Maranhão, bem como Neto, produziram juntos no contexto da contracultura e da resistência contra a abjeta ditatura militar brasileira.

O poeta maranhense, em A voz que vem dos poros, ao se valer da diversidade temática e formal, é também uma voz única, porosa, por assim dizer, de nossa contemporaneidade. Ao longo de sua constituição formal, a obra (obra de fato) de Maranhão resulta num projeto sólido, trazido à luz pela Editora Malê, que expõe a sofisticação das imagens e da linguagem, mas também apresenta uma poética preocupada – politicamente – com o estado democrático de direito, com as questões que estão na ordem do dia, como se lê no poema “Kuarup”:

dos seis milhões
em mil e quinhentos
restou apenas
uma legião
de vultos
soletrando
uma algazarra
zorra,
um kuarup de calça jeans.
os outros foram mortos
até os que estão vivos
até os que não nasceram.

                            (p. 231).

Nessa referência ao ritual Kuarup em homenagem aos mortos cerimônia sagrada, vinculada, especialmente, aos Xingus

–, referenciam-se os que se foram também para mantê-los presentes, para que ensinem e corporifiquem suas origens

. Entretanto, o poema incorpora a contradição, ao apontar outro projeto: o da necropolítica brasileira, o da exploração

histórica que dizimou povos, culturas, impedindo não só manifestações ancestres, mas também a existência de corpos que

deem continuidade e vivência a esse passado. Nesse sentido, a linguagem comporta a ambivalência, a tensão motivada de um passado que se mantém.

Por fim, vale destacar que, em A voz que vem dos poros, estão presentes poemas de todos os 14 livros publicados por Salgado Maranhão, num extenso repertório criativo direcionado aos leitores e aos poetas interessados na poesia inventiva e crítica deste que é, sem dúvida, um dos maiores poetas vivos da literatura brasileira.

Referência

MARANHÃO, Salgado. A voz que vem dos poros. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2023.

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* Giovanna Soalheiro Pinheiro é professora visitante do IFMG, com mestrado e doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da UFMG. É também poeta (Olho de boi, Editora Reformatório, 2023), pesquisadora do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e do Portal literafro UFMG –, além de coautora de Literatura afro-brasileira – 100 autores do século XVIII ao XXI (2ª. ed., 2019).

 

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