A trajetória poética de Maria Firmina dos Reis

Luciana Martins Diogo*

 

Maranhense de São Luís, Maria Firmina dos Reis nasceu em 11 de outubro de 1825 e faleceu em 1917. Neta de Engrácia Romana da Paixão e filha de Leonor Felipa dos Reis – ambas mulheres escravizadas e alforriadas – que serviram ao Comendador Caetano José Teixeira, um traficante de escravos, comerciante e grande proprietário de terras local. Foi nessa condição que Leonor Felipa conseguiu alfabetizar a filha e despertar nela o amor pela literatura, incentivando-a a escrever, a cantar e a pensar, como declara a autora na dedicatória de Cantos à beira-mar:

Minha Mãe! as minhas poesias são tuas. […] É a ti que devo o cultivo de minha fraca inteligência; – a ti, que despertaste em meu peito o amor à literatura; – e que um dia me disseste:

Canta!

Eis pois, minha mãe, o fruto dos teus desvelos para comigo; – eis as minhas poesias: – acolhe-as, abençoa-as do fundo do teu sepulcro.

Deste modo, estimulada pela mãe a seguir nos estudos, a escritora foi uma autodidata que se tornou professora, poetisa, prosadora, romancista, jornalista e musicista. Inaugurou assim um espaço pioneiro para as mulheres no Brasil do século XIX, utilizando seus talentos nos campos da escrita, da educação, da política, da imprensa, da música e da cultura popular. Para isso, insubordinada, Firmina teve de romper com os paradigmas impostos às mulheres de sua época, promovendo a desconstrução do imaginário patriarcal vinculado à mulher e contribuindo para a construção de novas concepções da identidade feminina, alargando, assim, também o campo das ideias e dos costumes.

Pelo prestígio que a função de professora e artista lhe conferia, suas ideias influenciaram sobre as pessoas de seu tempo e de seu espaço mais próximo. Podemos inferir que sua posição social de intelectual reconhecida e respeitada em sua localidade pode ter contribuído para que seus conterrâneos se aproximassem dos debates sobre a condição das mulheres, a situação dos indígenas e a abolição – temas presentes em sua obra que começavam a fermentar à época. Assim, foram essas tomadas de posição que possibilitaram a Maria Firmina dos Reis a instauração de uma nova forma de imaginação literária no século XIX, na qual personagens negras são representadas de formas mais complexas, reveladoras de suas subjetividades; personagens indígenas são representadas a partir de seu protagonismo nas relações com os colonizadores; e a construção das personagens mulheres evidencia as diferentes formas de opressão que recaíam sobre a mulher negra, a mulher indígena e a mulher branca de elite ou a mulher branca de elite ou a mulher branca dos setores livres pauperizados, instaurando também possibilidades para se pensar a condição das mulheres de maneira interseccional.

Embora atualmente a sua faceta como romancista se sobressaia entre 2017 e 2022, foram publicadas 22 novas edições do romance Úrsula (1859) , em vida Maria Firmina dos Reis foi mais reconhecida por sua produção poética. Suas composições foram fortemente marcadas pela presença do mar e da praia, elaborados como elementos de beleza, meditação ou melancolia, evidentes em poemas como “Uma Tarde no Cumã”, “Nas praias do Cumã”, “Cismar”, “Itaculumim”, “Meditação” ou “Melancolia”; destacam-se ainda a exaltação da terra e o nacionalismo presentes em poemas sobre a Guerra do Paraguai, como “Por ocasião da tomada de Villeta e ocupação de Assunção”, que celebra o caráter guerreiro e vitorioso dos indígenas; a temática indianista estabelece uma interlocução entre a poesia e a prosa firminianas, mais especificamente com a novela Gupeva, publicada pela autora em 1861.

Suas composições caracterizadas também pela crítica da opressão patriarcal presente em poemas como “No álbum de uma amiga”, “À minha extremosa amiga D. Anna Francisca Cordeiro”, “Minha Alma”, “Confissão” e “Não quero amar mais ninguém”; grande parte de sua produção, no entanto, é dedicada a render homenagens a pessoas ilustres, como nos poemas “Minha terra”, oferecido a Francisco Sotero dos Reis; “Te-Deum”, oferecido ao poeta Gentil Homem de Almeida Braga, ou “Por ocasião da passagem de Humaitá”, dedicado ao poeta maranhense João Clímaco Lobato, que nove anos antes havia dedicado o seu romance A Virgem da tapera à Maria Firmina; essas “trocas” eram práticas bastante comuns entre escritores da época e revelam também as estratégias e as redes de relações que a autora utilizou para inserir-se e manter-se no campo literário maranhense.

Na década de 1860, Maria Firmina dos Reis publicou intensamente na imprensa do Maranhão. Seu primeiro poema veio a lume em 19 de dezembro de 1860, no jornal A Imprensa, sob o título “Poesias oferecidas à minha extremosa amiga a exma. sra. d. Teresa de Jesus por ocasião da sentidíssima morte de seu inocente filho Leocádio Ferreira de Souza”. Daí em diante, o nome de Maria Firmina será encontrado em diversos periódicos (Pacotilha, Eco da Juventude, Semanário Maranhense, O Jardim das Maranhenses, O Federalista, A Verdadeira Marmota, Almanaque de Lembranças Brasileiras, entre outros), assinando textos que transitam entre as formas romance, poesia, enigmas, charadas, novelas e prosa poética.

No periódico O Jardim das Maranhenses uma publicação dirigida por homens, mas voltada para o público feminino Maria Firmina dos Reis foi a única mulher que colaborou assinando o próprio nome. A autora começou a sua colaboração a partir do número 23 do periódico, em 20 de setembro de 1861. Nele Firmina deixou de lado temáticas relacionadas ao amor e à moralidade e trouxe um olhar íntimo na poesia, com uma fala que atravessava a intimidade feminina, conseguindo, assim, maior identificação por parte de outras leitoras. Com isso, Maria Firmina promoveu toda uma mudança de dinâmica e de estrutura das páginas do jornal e seus trabalhos passaram a ser destacados nas primeiras páginas. Ela foi a segunda autora que mais publicou nesse periódico1.

Já em 2 de janeiro de 1871, o Publicador Maranhense (n. 1) anunciou a futura publicação de Cantos à Beira-mar, o único livro de poemas da autora. Entre maio e setembro de 1872, Firmina colaborou no jornal literário O Domingo com o texto “Um artigo das minhas impressões de viagem página íntima”, continuado em três números. Após esse período, suas publicações em jornais desapareceram e passaram-se treze anos sem seus escritos circulando pela imprensa, ainda que os diários (“álbum”) revelassem que a produção literária de Maria Firmina dos Reis não se interrompeu.

O período entre 1885 e 1908 também foi marcado por pouca publicação literária em jornais, mas por maior circulação do nome da escritora associado a acontecimentos da pequena vila de Guimarães: festas, noivados, casamentos. Essa presença em eventos sociais será ao mesmo tempo temática e cenário de “A Escrava”, conto publicado em 1887 na Revista Maranhense; nele, a narrativa acontece justamente em um salão, numa “reunião entre pessoas ilustres da sociedade”.

A exemplo disso, destacamos o poema “Um brinde à noiva”, datado de 21 de julho de 1900, esse poema foi escrito por Maria Firmina especialmente para o casamento de sua ex-aluna, Ana Esmeralda M. Sá. Já o poema publicado em 19 de maio de 1903, no jornal O Federalista, oferecido “Ao digníssimo colega o sr. Policarpo Lopes Teixeira”, foi escrito por ocasião da cerimônia de formação de alunos que passaram pelos exames da aula de Francisco Sotero dos Reis, ocorrida em 30 de abril de 1903, a qual ficou registrada na nota do dia 20 de maio de 1903, em que O Federalista faz a seguinte referência: “Pela senhorita Anicota Matos foi recitada uma linda poesia da exma. d. Maria Firmina dos Reis oferecida ao sr. Professor Policarpo Teixeira”. A última produção conhecida de Maria Firmina dos Reis, atualmente, é do ano de 1908: “Poesia recitada por ocasião das bodas do Sr. Eduardo Ubaldino Marques”, publicada em 20 de fevereiro, no jornal Pacotilha.

Mencione-se, ainda, que Nascimento Morais Filho também registrou letras de músicas atribuídas a Maria Firmina. Na década de 1970, o pesquisador esteve na cidade de Guimarães, local onde a autora viveu por 70 anos, e colheu depoimentos de filhas e filhos de criação da autora, ex-alunas e outras pessoas que conheceram a poeta. A memória popular lhe atribuiu sete composições musicais, dentre elas, o “Hino à liberdade dos escravos”, composto para celebrar a abolição da escravatura em 1888; “Valsa”, que seriam versos de Gonçalves Dias, musicados por Maria Firmina; “Auto de bumba-meu-boi”, em que ela compôs letra e música, ou ainda o auto natalino “Pastor estrela do oriente”.

Maria Firmina também exercitou a escrita de versos na forma das “charadas” e “logogrifos”, gêneros muito comuns nas seções de entretenimento dos periódicos do século XIX, cujas decifrações eram publicadas nos números subsequentes dos jornais. E escreveu poemas em seu diário pessoal, como “À minha amiga Terezinha de Jesus”, de 19 de novembro de 1865, que decidimos incluir nesta edição como exemplo dessa produção que não chegou aos jornais, mas que apresentava a alta qualidade de sua poesia.

Nos diários incluídos por Nascimento Morais Filho em Maria Firmina: fragmentos de uma vida, a artista ensaiava e experimentava a sua escrita literária, dedicando versos a pessoas queridas, como é o caso da quadrinha que a autora registrou em memória de Guilhermina: “Descansas no sepulcro, irmã querida,/ Filha do Céu, remonta à essência./ Descansa das fadigas desta vida;/ Desta penosa, e ardida existência!”.

Guilhermina Amélia dos Reis foi escrava da tia Henriqueta de Maria Firmina e era considerada uma irmã pela autora. Ela teve quatro filhos, mas duas meninas, Maria Amélia de Avelar, que foi batizada em 14 de dezembro de 1856, e Otávia, batizada em 4 de abril de 1858, pertenciam a Leonor, mãe da escritora. Insubordinadamente, Maria Firmina alforria as duas meninas na pia batismal, sendo que, nas duas ocasiões, ela se passa por proprietária das meninas, porque estava tomando essa iniciativa à revelia da própria mãe, uma vez que Firmina não possuía uma procuração assinada, exigência legal da época. Este fato é atestado pelo biógrafo da autora, Agenor Gomes. Além disso, essas filhas de Guilhermina foram alfabetizadas por Maria Firmina dos Reis. No diário da autora, há ainda poemas que amigos e filhos deixaram em sua homenagem. A sua amiga Teresa de Jesus Cabral e seu amigo Marcos Raimundo Cordeiro, por exemplo, a quem Maria Firmina dedica poemas publicados, deixaram também poemas registrados a ela em seu “álbum”. Já o último registro do diário é exatamente a anotação de um poema escrito por Óton, um filho de criação da autora, que foi dedicado à mãe.

Agora, para olharmos mais detidamente para essa grande poeta, temos em mãos a primeira edição que reúne Cantos à beira-mar e outros 35 poemas em um só volume. Este livro é o mais completo já dedicado à poesia de Maria Firmina e, como toda edição de sua obra, se beneficia do trabalho pioneiro e decisivo do pesquisador e poeta Nascimento Morais Filho, também maranhense, que, entre outros feitos firminianos, realizou a edição fac-similar de Cantos à beira-mar, em 1976, depois de ter organizado o fundamental Maria Firmina: fragmentos de uma vida, em 1975, que recuperou os textos publicados por ela na imprensa maranhense, junto a registros de seu diário e informações e documentos que estavam praticamente perdidos nas hemerotecas do séc. XIX.

O cotejo entre as edições anteriores da poesia de Maria Firmina revela diversos problemas, como a supressão de estrofes e até a troca de trechos entre um poema e outro, que nos esforçamos para corrigir aqui a partir das publicações originais. Além de revisar a obra poética conhecida de Maria Firmina, esta edição também se empenhou em apresentar alguns poemas que são “novidade” mesmo para o leitor que teve acesso ao fac-símile de Cantos à beira-mar (1976) e à coletânea Maria Firmina: fragmentos de uma vida (1975): “Nênia a sentida morte de Raymundo Marcos Cordeiro” (1881), “O menino sem ossos” (1880), “Prantos” (1885) e “Poesia recitada por ocasião das bodas do Sr. Eduardo Ubaldino Marques” (1908), recuperados recentemente, a partir de 2017, por pesquisadores como Jéssica Catharine Barbosa de Carvalho e Sérgio Barcellos Ximenes. Do mesmo modo, não se pode descartar outras descobertas com relação à obra de Maria Firmina, que certamente teremos prazer em incorporar às futuras edições desta obra2.

O trabalho de recuperação e divulgação da obra de Maria Firmina dos Reis tem sido realizado coletivamente por movimentos sociais, academias de letras e instituições, como a Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional e a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da Universidade de São Paulo, e principalmente por pesquisadoras e pesquisadores de diferentes locais e gerações, aos quais agradecemos na pessoa daqueles aqui citados, por manterem viva a obra de Maria Firmina dos Reis!

Notas

1. SOUZA, N. L. A experiência editorial de Maria Firmina dos Reis no periódico O Jardim das Maranhenses. Revista Aedos, [S. l.], v. 12, n. 26, p. 424–452, 2020. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/aedos/article/view/96840. Acesso em: outubro de 2022.

2. A pesquisa nos jornais maranhenses da época tem revelado informações que apontam para outros textos que Maria Firmina dos Reis teria publicado, inclusive fora de seu Estado natal: uma nota publicada no Diário do Maranhão, em 11 de janeiro de 1901, divulgava o recebimento de um exemplar de uma publicação vinda do Pará, e da qual destacavam a contribuição da poeta Maria Firmina.

Referência

REIS, Maria Firmina dos. Cantos à beira-mar e outros poemas. Organização de Luciana Martins Diogo; Posfácio de Juliano Carrupt do Nascimento. São Paulo: Círculo de Poemas, 2024.

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* Luciana Martins Diogo é Mestra em Estudos Brasileiros pelo IEB-USP e doutoranda em Literatura Brasileira pela mesma Instituição. É criadora e gestora do site Memorial de Maria Firmina dos Reis e editora da revista Firminas – Pensamento, Estética e Escrita, primeira revista brasileira focada na produção artística e intelectual de mulheres negras. É autora de Maria Firmina dos Reis: vida literária (Ed. Malê, 2022).

 

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