O florescer da vida em Macabéa

Aline Arruda*

Cristiane Côrtes**

 

O conto “Macabéa, Flor de Mulungu” fez parte de um projeto da série personagens reescritos, de 2012, que objetivava uma releitura, ou renascimento, como a organização definiu, das personagens de Clarice Lispector. Cada autor escolheu sua persona para criar um texto a partir da inspiração que o texto original propiciava. Em 2023, a mesma editora, Oficina Raquel, publica o conto, releitura de A hora da estrela, agora, ilustrado por Luciana Nabuco e numa bela edição exclusiva para o texto de Conceição Evaristo.

A escritora nascida em Belo Horizonte e recém empossada na Academia Mineira de Letras dispensa apresentações. Conceição Evaristo é uma das maiores escritoras brasileiras da Literatura Contemporânea. Autora de romances, contos, novelas, ensaios e poemas, ela tem sido premiada em todo o país e sua obra traduzida para outros idiomas. Luciana Nabuco, a ilustradora deste livro, é acreana. É jornalista, artista visual, professora, tradutora e também escritora (de contos e poemas). Desde 2003 trabalha com a temática afro-indígena brasileira.

O conto parte da cena em que Macabéa é atropelada. A metáfora da flor de mulungu se inicia com o texto justamente pela imagem da agonizante nordestina acidentada. A narrativa conduz o leitor a conhecer “uma outra Macabéa”, “em estado de floração” recém-nascida naquele conto com direito a história, memória e futuro. A ilustração que ocupa página inteira ao lado do texto escrito é, inclusive, de vários cachos de flores vermelhas de mulungu. O texto se aproxima e se afasta da obra original com o intuito de preencher as lacunas que Rodrigo S.M. deixa em sua construção narrativa.

Conceição Evaristo, ao criar outra Macabéa, revela uma personagem sincronizada com seu projeto literário: dar visibilidade às mulheres negras e capturá-las do estereótipo ou do silenciamento recorrentes no campo literário legitimado. A narrativa faz uma referência explícita ao autor do realismo francês, Gustave Flaubert, para demarcar o seu ponto de vista e o contexto em que sua obra é publicada:

Depois atinei com o porquê da visita do francês a meu pensamento. Se ele, para se defender da severa moral da época, precisou afirmar que Emma Bovary era ele, eu não preciso de nenhum ardil para garantir que Macabéa, a Flor de Mulungu, sou eu. Tal é minha parecença-mulher com ela. Repito, sou eu e são todos os meus. (p. 11).

A “Béa” criada por Evaristo traz, assim, a história da Macabéa de Lispector, mas, para além dela, carrega o projeto de Evaristo, reforçando a escrita socialmente comprometida com o coletivo a que a autora se propõe. Há, durante o conto, um esforço para tirar de Macabéa o estigma do ser o autômato criado por Rodrigo como um gesto de resgate da sua identidade.

Quanto ao título do livro-conto, a metáfora é crucial para a compreensão da reversão dos estereótipos reproduzidos pelo narrador de A hora da estrela. Flor de Mulungu reúne a memória da dor e da tradição ancestral como se tivesse passado por um processo de renascimento, mas não de apagamento da bagagem adquirida. O nome escolhido para o conto já carrega a alegoria da resistência, uma vez que a árvore de Mulungu apresenta um aspecto seco e sem vida antes da floração, que é de um laranja ou vermelho vigoroso e que passa longos meses antes de germinar.

Quanto às ilustrações de Luciana Nabuco, somos surpreendidos pela beleza desde a capa: são cores fortes, traços marcantes e ao mesmo tempo suaves. Registros afro-indígenas ancestrais como máscaras, rostos e corpos femininos negros inteiros; também elementos geométricos como círculos e linhas paralelas. O predomínio do marrom e do amarelo salta aos olhos e só é quebrado pelo preto e pelo verde e vermelho do pé de mulungu e suas folhas e flores, que ornam várias páginas do conto de Conceição.

Evaristo, portanto, ressuscita Macabéa para salvá-la do silêncio confinado à exclusão. O texto exemplifica uma escritura da alteridade que privilegia a escrevivência e cria um projeto que, como um suplemento, preenche os vazios deixados pela tradição literária ocidental. Com o marrom que remete à terra e às raízes ancestrais de “Macabéa, Flor de mulungu” e o amarelo da luz que retarda a morte da personagem, Conceição faz existir essa história antes clariceana e agora porta-voz de tantas outras.

Belo Horizonte, fevereiro de 2024

Porto, fevereiro de 2024

 

Referência

EVARISTO, Conceição. Macabéa, flor de mulungu. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2023.

 

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Aline Alves Arruda possui Pós-doutorado em Literatura/Estudos da Linguagem pela UFRPE,é Doutora em Letras, Literatura Brasileira, pela UFMG e Mestre em Teoria da Literatura pela mesma Instituição. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais – IFMG, Campus Betim, é pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, NEIA, na UFMG e coautora de Literatura afro-brasileira - abordagens na sala de aula (RJ: Pallas, 2019).

 

** Cristiane Côrtes é Professora de Língua Portuguesa e Literatura no CEFET MG – Nepomuceno. Investigadora de pós-doutorado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Mestre em Teoria da Literatura e doutora em Literatura Comparada pela UFMG; pesquisadora do grupo NEIA - Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, UFMG e Co-organizadora do volume crítico: Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo.

 

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