Francisco José Tenreiro: entre as liminaridades identitárias e a ideologia insular[1]

Inocência Mata[i]

Liminar: que constitui limite ou ponto de passagem.
(Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa)


Há escritores que escrevem quarenta livros e ficam na história; outros publicam os mesmos quarenta e entram numa nota de rodapé; há os que publicam um e quando desparecem descobrem-se mais cinco ou dez; outros ainda são escritores postumamente. Francisco José Tenreiro publicou um livro de poesia (Ilha de Nome Santo, 1942) em vida e postumamente foi publicado um segundo livro (Coração em África, 1967). Porém, antes mesmo desse segundo, já era um nome fundamental das literaturas africanas de língua portuguesa.

Uma figura de insigne transversalidade africana

Francisco José Tenreiro foi um intelectual cuja obra poética e ensaística é referência obrigatória em qualquer abordagem do século XX africano do mundo da língua portuguesa.

Falecido em 1963, aos 42 anos, tanto a sua obra ensaísta, como Francisco Tenreiro, quanto a sua obra poética, como Francisco José  Tenreiro, nunca foi desvinculada do mundo africano e são-tomense por estudiosos (geógrafos, sociológicos, historiadores, críticos literários) – à exepção de um artigo[2] que, não adiantando a uma séria discussão sobre a “nacionalidade cultural”, revela uma visão institucional e serôdia de cultura, com reflexos na percepção de nacionalidade cultural. Por outro lado, tal visão sobre a “ausência" de são-tomensidade na obra tenreiriana revela também uma perspectiva completamente a destempo na actual estruturação do mundo globalizado, em que pontua a dimensão de pertenças, ambivalências (que não se confunde com ambiguidade identitária nem com qualquer ideia de desidentidade), ou a condição in between (na expressão de Homi Bhabha) das identidades diaspóricas.

A contradizer essa leitura do percurso intelectual de Francisco José Tenreiro, cada vez mais intensamente se descobre na sua obra a votação à África, e em especial a São Tomé e Príncipe, como esta publicação corrobora, através dos estudiosos que nela participam, de diversas áreas científicas e diferentes visões ideológicas da cultura e até da política.

Com efeito, nos seus escritos de natureza literária e ensaística, assim como no lastro da sua intervenção político-ideológica e nos testemunhos daqueles que com ele conviveram[3], Francisco José Tenreiro sempre se “assumiu” (tanto quanto era possível naqueles tempos) como africano e são-tomense, pelas temáticas recorrentes na sua obra. Raquel Soeiro de Brito, no seu texto de apresentação do homem e da sua obra (ainda 1966, incluído nesta colectânea) afirma que “decididamente, o seu verdadeiro interesse de jovem podia resumir-se nesta palavra: África”, corroborando uma afirmação do próprio Tenreiro segundo a qual a terra (São Tomé) sempre estivera nas “[suas] preocupações científicas e até nas de cunho-sentimental, porventura tão importantes como aquelas” (TENREIRO, 1961: 9). Por seu turno, hoje, 2010, Adriano Moreira, ex-ministro do Ultramar e antigo diretor do ISCSP da Universidade Técnica de Lisboa, dele disse ser “o cientista e o professor universitário, o geógrafo insigne, que deixou a mais autorizada obra, inspirada pela escola de geografia humana da Faculdade de Letras de Lisboa, sobre o seu S. Tomé de origem, de onde partiu, mas que nunca abandonou”. Por isso convoco a epígrafe, da autoria de Alfredo Margarido, com que começa o ensaio que assina em parceria com Isabel Castro Henriques, que privilegiadamente posso reproduzir:

Devemos a Francisco José Tenreiro
Os poemas do mato e da gleba
Não esquecendo o geógrafo
Que trouxe terra frutos e conhecimento
Aos homens que continuam a inventar o território[4]

Porém, como já afirmei anteriormente[5], obviamente que a são-tomensidade tenreiriana dialoga intensamente com a cultura portuguesa, de que também a sua obra e a sua actividade cívica dão exemplos. Tal ambivalência – emblematicamente metaforizada no poema “Canção do mestiço” (Ilha de Nome Santo, 1942) – apenas contribui para a sua originalidade cultural à época: tão notória é a sua estatura intelectual e a consciência desse entrelugar que o seu compagnon de route Mário Pinto de Andrade – aquele que com ele compartilhou o “pão” da rebeldia e das descobertas mais melindrosas, tanto na Casa dos Estudantes do Império quanto no Centro dos Estudos Africanos e no “empreendimento” do Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa (1953), a primeira expressão oficial e assumida da Negritude no mundo da língua portuguesa – o considera um muito ilustre membro da “Geração de Cabral”. A “geração” a que se refere Mário Pinto de Andrade é a primeira da Casa dos Estudantes do Império, nos anos 40 e 50, quando a Casa era... um lugar de aprendizagem da ética política da africanidade e do nacionalismo, aquela que se formou da convergência de três pólos: “Graça, a CEI e a casa da família Espírito Santo, na rua Actor Vale” (ANDRADE, 1997: 71).

Se porventura com justeza, a poesia e a atividade ensaística de Francisco Tenreiro não podem ser incluídas no corpus do discurso nacionalista (discurso ensaístico e ideológico), como o da sua conterrânea Alda Espírito Santo (na poesia) ou a dos seus companheiros do Centro de Estudos Africanos (1951), à rua Actor Vale, 37, em Lisboa, vale lembrar que a actividade nacionalista, sendo naquele contexto (regime fascista e sistema colonial) a actividade mais eficaz da luta pela dignificação do homem africano, não se reduz à militância cívica nem se esgota no activismo político. Nem tampouco pode o nacionalismo confundir-se com africanidade. Além de que há também o activismo cultural. Quero dizer que é verdade que em seus textos a ideologia nacionalista não é actualizada através de uma retórica mais apostrófica de luta anticolonial (chegando por vezes à justificação do colonialismo na sua fase de deputado à Assembleia Nacional). Porém, a leitura dos trabalhos de Francisco José Tenreiro revela um profundo conhecimento, ainda que (apenas) intelectual, segundo Mário Pinto de Andrade, sobre a condição do homem negro no mundo, a condição do africano e a condição colonial, embora os seus próprios pares o não incluíssem nas suas “acções clandestinas, perigosas [porque] era um homem estabelecido, tinha família” e porque “não se podia tocar no Tenreiro, era um homem de ciência” (ANDRADE, 1997: 81). Ademais, é curioso que a sua acção anti-ideologia colonial está presente na implementação do plano de seis capítulos do Centro de Estudos Africanos que visava “a reafricanização dos espíritos”, como consideraria Amílcar Cabral na segunda conferência da CONCP em Dar-es-Salam (idem:80). E, se dúvida houvesse quanto ao comprometimento de Tenreiro na construção da ideologia da africanidade, ao seu posicionamento político, ainda que discretamente reformista as seguintes palavras do seu mais directo colaborador neste empreendimento são elucidativas:

M.P.A. – As nossas intervenções eram cada vez mais políticas –salvo talvez Tenreiro, que escutava, que estava de acordo... Mas a sua intervenção era mais precisamente científica. Ocupava-se de geografia, de antropologia cultural, não avançava demasiado na expressão pública deste engajamento, mas estava de coração connosco (...) Quando  pensámos na criação do pequeno grupo clandestino, à margem do Centro  de Estudos Africanos – nascido no seio do Centro, mas reunindo-se à margem dele -, não associámos Tenreiro por uma questão de simples bom senso: por quê comprometê-lo num quadro clandestino, correndo o risco de ser denunciado à polícia, e pôr em perigo uma parte da sua carreira? Nós pensávamos que aí onde ele estava, o que ele fazia era muito importante para o futuro de África. Portanto, ele não esteve no primeiro grupo.

M.L. – Mas ele não se opunha à orientação do grupo... Vocês falavam desses problemas?

M.P.A. – Não da organização clandestina, mas dos acontecimentos, de tudo. Ele tomava posições muito claras. (ANDRADE, 1997: 97).

Nas páginas seguintes (pp. 98-99), Mário Pinto de Andrade dá pormenores sobre a acção denunciadora de Tenreiro, designadamente na denúncia do massacre de Batepá (1953), enviando artigos para revistas clandestinas, contrariando essa ligeira afirmação sobre uma pretensa inexistente africanidade intelectual de Tenreiro.

Portanto, essa ambivalência de Francisco José Tenreiro não é apenas científica, mas ainda cultural e sentimental e a vinculação à cultura portuguesa nunca foi sonegada. E se “Caminhos trilhados na Europa. De coração em África” ou “Quando amo a branca/ sou branco.../ Quando amo a negra/ sou negro”, o certo é que muitos estudiosos demonstram até à exaustão a sua ambivalência ideológica e cultural.

Apenas um leitor ingénuo dos textos de Tenreiro e desconhecedor das actividades – diria mais do que clandestinos subliminares – desse grupo da “geração de Cabral” pode afirmar a não vinculação de Tenreiro à cultura são-tomense e ao mundo áfrico. Mario Pinto de Andrade conta, por exemplo, que antes de decidirem pela publicação do Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa (1953), Tenreiro havia-o enviado para uma coleção dirigida por José-Augusto França, José Blanco de Portugal e Jorge de Sena, que o recusaram – razão pela qual decidiram fazê-lo no âmbito da CEI (ANDRADE, 1997: 98). Aliás, nessa longa entrevista, Mário Pinto de Andrade enfatiza, em vários momentos, o papel de Tenreiro na formação dessa geração de africanos nacionalistas e estudantes africanistas.

Ademais, a história pessoal de Francisco José Vasques Tenreiro, feita de liminaridades identitárias (culturais, geográficas e étnicas), não podia fazer dele um sujeito monocultural: filho de um português, administrador de uma roça, e de uma são-tomense, cedo o pai retirou-o da mãe para o enviar para a metrópole para ficar aos cuidados de uma tia. Cresceu, estudou, formou-se académica e intelectualmente e casou-se em Portugal com uma portuguesa. Conviveu com nomes grados da intelectualidade portuguesa como os acima citados, a que se juntam nomes como os de Lopes Graça, Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol. A África, São Tomé e Príncipe, o mundo negro africano foram uma opção ideológica e uma razão marcada pela consciência intelectual. Acerca disso, leia-se ainda o que diz Mário Pinto de Andrade.

Aprendi muito com ele [Francisco José Tenreiro]. Tinha uma experiência menos rica do ponto de vista colonial, porque não tinha vivido em São Tomé, veio muito cedo para Lisboa... Vivia com uma tia. Não tinha experiência africana, uma vivência real, uma vivência na carne. O seu conhecimento de África era intelectual, vinha-lhe dos livros. Sabia, evidentemente, o que era colonização, mas através dos livros: não a tinha vivido. (ANDRADE, 1997: 63).

A esta tão límpida declaração sobre o papel de Francisco José Tenreiro, pelo mais insigne intelectual angolano da “Geração de Cabral”, no processo de consciencialização e africanização dos espíritos dos intelectuais africanos no Portugal colonial dos anos 40-50-60, junta-se outra efectiva disponibilidade: a consciência emotiva, bem presente na dedicatória que faz à mãe, ainda em 1942 (em Ilha de Nome Santo), muito antes de se envolver no grupo e antes de começar a pesquisa que resultaria na sua tese de doutoramento publicada em 1961 com o título A Ilha de São Tomé:

                        Mãe!
                        Entre nós: milhas!
                        Entre nós: uma raça!
                        Contudo
                        este livro é para ti...

Aliás, como lembra Amin Maalouf, a identidade é uma “categoria” contextual, histórica, circunstancial até, mas não – isso nunca -  rarefeita ou monolítica, e sim multicomposta e plurivalente:

A identidade não se compartimenta, não se reparte em metades nem em terços, nem se delimita em margens fechadas. Não tenho várias identidades, tenho apenas uma, feita de todos os elementos que a moldaram, segundo uma “dosagem” particular que nunca é a mesma de pessoa para pessoa. (MAALOUF, 2002: 10).

E Amin Maalouf não conheceu Francisco José Vasques Tenreiro!

O lugar de Francisco José Tenreiro na literatura são-tomense

Quando, em 31 de Dezembro de 1963, faleceu aos 42 anos Francisco José Tenreiro já havia deixado uma marca indelével nos movimentos culturais e intelectuais que, nos anos 40-50-60 fermentou na capital do Império entre os africanos das colónias portuguesas de África e os portugueses que pugnavam contra a ditadura do Estado Novo (ainda que nem sempre contra o colonialismo). A Ilha de S. Tomé (1961) continua a ser uma obra fundamental para se conhecer a história de São Tomé e Príncipe, livro a que muitos estudiosos regressam, nele se ancorando ainda que para solapar as suas leituras da formação da sociedade são-tomense, como é o caso da historiada Isabel Castro Henriques. Por seu turno, a seu primeiro livro de poesia, Ilha de Nome Santo (1942), publicado na coleção neo-realista “Novo Cancioneiro”, de Coimbra, tanto pode ser considerado o marco da moderna literatura são-tomense como ainda o “introdutor” da estética negritudinista entre os escritores africanos de língua portuguesa, seus contemporâneos, trazendo ao movimento neo-realista o sopro africano enquanto injectava na Negritude a crítica social e a denunciada precariedade socioeconómica que a Négritude não actualiza – mesmo a césairiana.

Com efeito, o século XIX são-tomense havia conhecido uma produção literária dispersa que ainda carece de uma pesquisa séria, apesar do trabalho de Carlos Espírito Santo, que reeditou a poesia, até então quase desconhecida de Herculano Levy (não obstante a edição póstuma de Poesias em 1981), ou do trabalho de Jerónimo Xavier de Sousa Pontes[6], que vem desvendando a poesia em crioulo de Francisco Stockler. É uma dispersão coetânea da intensa actividade jornalística, marcada pelo espírito contestatário (antecessor das ideias nacionalistas décadas mais tarde), através de associações e agremiações, e de jornais como O Africano, O Negro, A Verdade, Mocidade Africana, A Voz d’África, Tribuna d’África, Correio d’África, periódicos em que “São Tomé ocupava lugar primordial na congregação das propostas unitárias dos ideólogos nacionalistas” (ANDRADE, 1985: 17).

Assim, a poesia dispersa de Caetano da Costa Alegre (que apenas após a sua morte seria reunida em livro), de Francisco Stockler e de Herculano Levy ou mesmo de António Lobo de Almada Negreiros, autor de Equatoriaes (1898), não seria suficiente para se falar, como em Angola, de uma regularidade na produção de intenção literária, sobretudo se pensarmos em sistema como conjunto de práticas criativas convergentes na tematização e na representação espácio-temporal, práticas simbólicas produtoras de objectos da ordem do verbal marcados pelo uso estético da linguagem.

Desde o desaparecimento de Caetano da Costa Alegre em 1889, cujo livro Versos apenas sairia em 1916, o século XIX são-tomense não conhecera, portanto, senão atividade literária dispersa de naturais, ao lado de literatura de motivação são-tomense feita por metropolitanos. Por isso, não obstante a incipiência do “espírito nacional” de Costa Alegre, a apetência etnográfica de Francisco Stockler, a celebração nativista da “cor local” de Herculano Levy e a veemência assertiva de Marcelo da Veiga (que só se conhecerá, com sistematicidade, em 1963 com Poetas de S. Tomé e Príncipe, da Casa dos Estudantes do Império), pode dizer-se que é com Francisco José Tenreiro, um poeta marcadamente neo-realista, que a escrita de intenção literária de temática e “condição” são-tomenses vai revelando que o espaço físico e a natureza, na sua exuberância e na sua magnificência, deixam de se constituir como lugares (temas, motivos, ambiência, projecção mundivivencial, personagens) de gestação da produção literária de e sobre São Tomé e Príncipe. Por esta altura, estes vão sendo substituídos por lugares socioculturais e históricos denunciando, pela diferença, que o que se produzia era uma literatura de motivação são-tomense e não de gestação são-tomense.

Essa diferença, que é afinal a diferença do “olhar as ilhas” / “dialogar com as ilhas”, vai constituir o núcleo da diferenciação entre o discurso colonial e o discurso nacional consubstanciada na relação com a natureza – a exuberância da vegetação, a tellus e o mar, o clima e seus topoi “consequentes” e a indomável geografia das ilhas. Um dos núcleos sémicos diferenciadores será precisamente a representação do mar como motivo e a geografia como dificultadora da vida nas ilhas, construindo-se a aura heroicizante das personagens metropolitanas na ficção colonial e na poesia colonial, sobretudo aquela contaminada pelo modo narrativo.

Por outro lado, dada a preocupação dos agentes culturais, os textos começaram a partilhar uma matriz nacionalista, numa conjunção entre a afirmação cultural (cujos “instrumentos” operativos buscavam na ideologia negritudinista) e na estética neo-realista, com dois núcleos temáticos: a afirmação cultural de uma insularidade africana e a reivindicação do solo pátrio.

Francisco José Tenreiro e a construção de paisagens de pertença: topologias da conciliação

É interessante notar que sendo o primeiro e um dos maiores poetas da Negritude de língua portuguesa, Francisco José Tenreiro seja também o maior poeta da crioulidade são-tomense, com poesia em que a mátria se sobrepõe, não raramente, à pátria. Mesmo os poemas do livro Coração em África, livro inédito, como já se disse, à hora da morte do autor, colectânea de poemas tão emblemáticos do movimento da Negritude (tais como “Coração em África”, “Terra de Alarba”, “Nós, Mãe” ou “Mãos”), contêm uma das mais originais afirmações identitárias da mátria, em seis poemas dos segmentos “Regresso á ilha”. Por outro lado, numa obra com uma pulsão tão insular, como Ilha de Nome Santo, coexistem com a emblemática “Canção do Mestiço”, “Ilha de nome santo” (aliás, todos os poemas de Romanceiro, Ciclo do álcool e de Cancioneiro) com os “3 poemas soltos” (“Epopeia”, “Exortação” e “Negro de Todo o Mundo”) que vão revelar, já em 1942 (onze anos antes de Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa e três anos depois de Cahier d’un Retour au Pays Natal), a existência de uma poesia negritudinista no espaço da língua portuguesa, juntamente, saber-se-á depois, com outro são-tomense, Marcelo da Veiga.

Assim, não admira que esta estética da conciliação entre terra e pátria (CANDIDO, 1989: 141-142) e da ambivalência cultural seja um dos lugares ideológicos da poesia tenreiriana, disponibilidades exponenciadas depois num livro tão negritudinista como Coração em África. Neste âmbito realcem-se os poemas do caderno do “Regresso à ilha” – escritos maioritariamente na Páscoa de 1962 (à exceção de dois deles, “O ossobó cantou” e “Ritmo para a joia daquela roça”, que foram escritos antes), durante uma ida à terra natal. São poemas que se dirigem à mátria que, já em 1942, é interpelada, metonimicamente, através da figura física da mãe, porém não a rasurando (gerando-se, por isso, também, uma projecção autobiográfica); e isso logo na epígrafe que “abre” Ilha de Nome Santo, atrás citada, que dá o tom da intencionalidade textual dos poemas, que continuam a proclamar a vinculação à tellus matricial, pelo primeiro poema da colectânea cujo primeiro verso sacraliza o espaço matricial (pela remissão a um in illo tempore também espacial):

                       Nasci naquela ilha distante
                       num dia de batuque

                       Daí esta pressa de viver!
                       Ombros balançando
                       lábios sangrando de prazer
                       eles dançavam
                       dançavam.

                       Daí este olhar pró sofrer!

                       Depois o descanso.
                       Olhos longe sem se saber porquê
                       Assim esta vontade de viver!

Por seu turno, “Corpo moreno”, um dos poemas do “Regresso à ilha” (Coração em África), é porventura uma das mais significativas manifestações celebrativas da originalidade identitária são-tomense dentro do paradigma da construção da africanidade. Neste poema, o enunciador, começando por “admitir” a origem dual da identidade são-tomense (concretizada na nomeação do “produto” biológico: corpo mulato, palavra de origem árabe[7], que designa o mestiço de branco e negra, ou vice-versa – e que é, como se deveria saber, não uma designação cultural, mas, tão somente, biológica), envereda pelos trilhos do processamento dinâmico da construção identitária:

Se eu dissesse que o teu corpo moreno
tem o ritmo da cobra preta[8] deslizando
mentia.
Mentia se comparasse o teu rosto fruto
ao das estátuas adormecidas das velhas civilizações de África
e boca em segredos de amor.


Depois desse início a partir de elementos exógenos ao espaço geográfico insular, a identidade supõe-se processos a partir de uma gestação endógena e auto-regenerativa: se a celebração começa por uma pseudo-oposição entre a insula africana e a África das “estátuas adormecidas das velhas civilizações”, estes elementos são recuperados mas em transformação, actualizando um paradigma orgânico (tendencialmente evolucionista) que serviu de base às mais perversas teorias da mestiçagem e hibridação. E embora não seja de se negligenciar a afirmação de Robert Young que, ao falar de hibridação e hibridez, considere que “a necessidade de metáforas orgânicas de identidade ou sociedade implica um contra-senso de fragmentação e dispersão (2005: 5), o facto é que o “produto” do “encontro” transformou-se, pela dinâmica e energia internas, em ramos, folhas, flores e frutos, regenerando fruto a partir do corpo mulato:

Como a minha ilha é o teu corpo mulato
tronco forte que dá
amorosamente ramos, folhas, flores e frutos
e há frutos na geografia do teu corpo.


Por isso é que surge completamente inadequada a designação de mulatitude, proposta por Russel Hamilton (1984), e corroborada por Salvato Trigo com a expressão “poesia mulata” (1991:7) no afã de refutar as marcas negritudinista na obra tenreiriana). Tal formulação interpretativa é determinada por uma ansiedade utópica da miscigenação como marca do “modo português de ser” colonial que hoje serve de substrato ideológico à relativização da visão do colonialismo que intenta a rasura dos antagonismos étnicos e culturais (alicerce dessoutro colonizado/colonizador), e que é actualizado, neste contexto, pelo discurso da crioulidade em espaços continentais (Angola e Brasil), vistos como “países mestiços”, como se de uma particularidade se tratasse...

Em todo o caso, embora conhecedor profundo da literatura negra norte-americana sobre a qual publicou muitos artigos, Francisco José Tenreiro não conseguiu, porém, escapar a essa armadilha ideológica da crioulização como processo de convivialidade. Ella Shohat (e também Isabel Castro Henriques, quando estuda o papel dos africanos, no estabelecimento das territorialidades culturais, como em São Tomé e Príncipe, e até na fixação das territorialidades geográficas) chamaria atenção para essa armadilha quando, na celebração da mestiçagem e da hibridez, se opera, por um lado, a desconsideração do processo transculturativo e de transformação das componentes em presença no processo colonial e, por outro, se não articula esse fenômeno com as relações de hegemonia e relação de poder. Dessa não articulação pode resultar na “santificação do fait accompli da violência colonial (Shohat, 1996: 320). Mais recentemente Achille Mbembe, por seu turno, lembra que

La colonissation est inséparable des puissantes constructions imaginaires et des représentations symboliques et religieuses à travers le squelles la pensée occidentale a figuré l’horizon terrestre (...)
La colonisation était également um système de signesd que différents acteurs ne cessèrent de déchiffrer à leur manière. Elle avait ses manières de se représenter à elle-même as mythologie (...) Le rapport colonial de domination ne fut ni simpleni unilateral. Il fut tissé de creux. (MBEMBE, 2010: 90).

A leitura da poesia tenreiriana, quando não sob tais premissas, mesmo a de Ilha de Nome Santo, “atravessada pela literatura americana e pelos acontecimentos da América”, nas palavras de Mário Pinto de Andrade (1997: 96), celebra a Negritude enquanto categoria de uma ideologia reivindicativa de um segmento do mundo marginalizado e inferiorizado nas suas particularidades civilizacionais e culturais. Ademais, a celebração tenreiriana apenas metaforicamente é aqui apenas racial, sendo sobretudo humanista, ultrapassando a dimensão geográfica e temporal e representando a condição autônoma da identidade na sua relação com as origens culturais e ideológicas, embora ancoradas nas matrizes da ancestralidade. Esta disponibilidade dá razão a Le Goff para quem o processo da memória (ainda que original), não apenas diz respeito à ordenação dos vestígios, mas ainda à releitura desses vestígios.

Assim, no poema que tem vindo a servir de âncora a esta leitura da poética insular tenreiriana, o que define a ilha não será o elemento mulato, mas a particular mestiçagem resultante do processo de nativização e ontologização, pela natureza in loco, desse elemento: portanto, gera-se uma nova natureza que vai caracterizar as ilhas através das qualidades eufóricas e profusas específicas mas metamorfoseantes da natureza. Esta manifesta-se nos elementos particularizantes da fauna (a cobra preta, o animal mais terrível e mais temido das ilhas) e da flora (o safu, com o seu sabor original que apenas a habituação consagra, isto é, não apenas a experiência, mas ainda a vivência, para me reportar à subtilmente produtiva diferença formulada por Walter Benjamin, 1936)[9], da sua fecundidade e da fertilização do elemento alienígena, pois os seus componentes ainda não assimilaram a dimensão telúrica de que se vai gerar. Dessa simbiose homem/ terra resultou, numa celebração já ufanista, “Minha Ilha e minha África/ forte e desdenhosa dos que lhe falam à volta” – como diz o final do poema, “a demonstrar que o todo não é igual à soma das partes” (MATA, 2004: 109). Mas, ainda assim, mantendo a vinculação à mater africana, desde o início do poema e reelaborando essa componente matricial:

Teu rosto de fruto
olhos oblíquos de safú
boca fresca de framboesa silvestre
és tu.

És tu minha Ilha e minha África
Forte e desdenhosa dos que te falam à volta. (São Tomé, Páscoa de 1962)

Outros poemas do mesmo “ciclo” – do “Regresso à ilha” – apontam para essa conciliação entre os elementos originariamente em confronto ou de trilhos centrípetos (MATA, 2010). Tal é o caso, por exemplo, de “Mamão também papaia”, poema em que a tensão entre os dois grupamentos (o senhor administrador, representação do poder colonial, e o enunciador, voz que representa a terra são-tomense através dos trabalhadores e dos filhos mulatos arredados da casa grande e confinados ao terreiro) se apaziguam na “sedução” do mamão que para outros também é papaia, o que pela plural (pelo menos dual) designação o torna “fruto democrático”...

Mas já antes dessa tónica harmonizadora dos poemas desse “regresso”, em 1962 (a coincidir com a concertação estratégica do escritor em relação ao regime), no poema “Ilha de nome santo”, essa harmonização de tempos e essa suavização de espaços de dominação fazem-se sentir, proclamando-se uma sociabilidade que representaria uma postura mundivivencial própria da ilha cujas marcas remontariam à formação (à invenção) social:

Onde apesar da pólvora que o branco trouxe num navio escuro
onde apesar da espada e duma bandeira multicolor
dizerem poder dizerem força dizerem império di branco
é terra de homens cantando vida que os brancos jamais
                                                                         [souberam
é terra do sàfu do sòcòpé da mulata
– ui! Fetiche de branco! –
é terra do negro leal forte e valente que nenhum outro!

Esta celebração de convivialidade é expressa numa construção discursiva de forma a que o conteúdo e a linguagem coincidam na “verdade” do que é dito e reconhecido como verdadeiro. Este poema actualiza uma representação de múltiplos espaços históricos de afectos e desafectos que marcam a territorialidade imprecisa das relações sociais na ilha, mas ainda assim não de forma inclusiva pois apenas as relações entre forros, os chamados “filhos-da-terra”, e colonos/colonizadores/metropolitanos são narrativizadas. Isto é, na percepção de Hayden White, tomam a forma de história de que resultam significados fabulosos que vão adubando a história da convivialidade insular. Uma visão ideológica que se expressa tanto a nível científico-cultural (A Ilha de São Tomé) quanto a nível do imaginário poético, pois

A análise do discurso colonial pode (...) olhar para uma ampla variedade de textos do colonialismo, como algo mais do que mera documentação ou “testemunho”, e também enfatizar os meios pelos quais o colonialismo implica não apenas uma atividade militar ou económica, mas formas difundidas de conhecimento que, se não forem desafiadas, poderão continuar sendo aquelas únicas por meio das quais tentamos compreender o próprio colonialismo (YOUNG, 2005: 200).

Este poema, “Ilha de nome santo”, pode dizer-se que todo o macropoema que é Ilha de Nome Santo, funciona como “relato de nação”, porém em que há segmentos viventes na ilha celebrada cujos trânsitos, entrelaçamentos e deslocamentos ficam omitidos do tecido social e histórico da ilha.

As cicatrizes da diferença na poesia pós-tenreiriana: Fernando de Macedo e Conceição Lima

É nessa liminaridade da afirmação da identidade insular que se dá a alteração do jogo de relatos, com Fernando de Macedo, nos anos 90, e Conceição Lima, nos anos 2000, por via da representação de dialécticas dissonantes em novas cenografias da história das ilhas. Através dela, esta visão de harmoniosa convivência colonial e sociabilidade privilegiadas por Francisco José Tenreiro é questionada, numa revisão também da mistificação da mestiçagem como tropo pós-colonial. Com efeito, contrariando esta “pastoral” perspectiva, Rodolfo Stavenhagen afirma que “passou a ser moda [pensar-se] que as verdadeiras nações eram constituídas principalmente por mestiços e que a cultura nacional autêntica era e tinha forçosamente que ser uma cultura mestiça” (1993: 66).

É neste contexto que, visando a reconstituição das subjectividades etnoculturais na poesia são-tomense, Fernando de Macedo e Conceição Lima tornam visíveis outros segmentos da nação são-tomense, revogando o recalcamento dos dissensos internos em que discriminados discriminavam. O outro, tornando-se pertença de uma paisagem outrora de inefável harmonia (habitado tanto pelo senhor administrador quanto pelos filhos abandonados no terreiro, tanto pela Avó Mariana quanto pela Sam Marinha e Sinhá Carlota, tanto por Logindo o ladrão quanto pelo Seu Silva Costa...) faz com que a sociedade se apresente heteroglóssica mesmo se a memória da violência se torne, dolorosamente, violência da memória, agora pela voz dos próprios sujeitos, antes “simples” objectos poéticos.

Manifesto imaginado de um serviçal

Chão inconquistado, chama-me teu que sobre
minha fronte se
esvai a lua esburacada na sanzala. Não mais
                                     [regressarei ao Sul.
Morador interdito, ficarei nas tuas entranhas. Aqui,
                                                        [onde tudo
dei e me perdi. Morro sem respirar o hálito de uma
                                                      [outra cidade que adubei.
                                                     (O útero da Casa, 2004, p.35)

O sujeito subalterno (o tonga e o antigo contratado em solo outro mas seu, afinal), “atado a uma transparência por meio de negações”, pôde, finalmente, falar (SPIVAK, 2010: 45)!

Daimonde Jones

Nas minas da África do Sul
seu nome ronga ou xope ou xangane
ficou sepultado
A sua sonoridade é hoje despojo irrelevante
Na cruel ressureição chamaram-lhe Diamond

Daimond Jones ê!
Daimooooond!

Este livro obsceno que diverte a miudagem
tem a idade das roças de cacau na ilha de São Tomé

Não reside em Santa Margarida nem em Porto
Alegre
nem na Aldeia Murça nem em Agua Izê
O coração da cidade o acolhe e o repele

Bebe os tostões que jardina
e escarra impropérios enquanto jardina
este esquivo transeunte, vacilante hóspede
das esquinas de São Tomé

Não amaldiçoa o sistema que lhe extorquiu
a linha vertebral, o nome, o caminho do Oriente
Guarda intactas velhas mesuras
as mesmas distraídas esmolas
nos bolsos de um grotesco ex-fato do Oriente

Sabe engatilhar a palavra pat’rãão quando tem fome

                                               (O útero da casa, 2004, p.32-33)

É por isso que nessa dinâmica pós-colonial o olhar é direcionado para outros “locais da cultura”, diferentes dessoutros tantas vezes referenciados na “tradição literária” são-tomense: a mestiçagem, a roça, a monocultura do cacau e do café, o contratado, a precariedade socioeconómica, enfim, a relação colonizado/colonizador. Esses lugares trazem impasses de ordem simbólica na medida em que, com essas memórias, segmentos e grupamentos humanos (étnicos e culturais) tornaram-se visíveis dissensos até então ocultos e rasurados da “narrativa da nação”, actualizada no discurso oficial, na acção colectiva e na produção científica através de uma imagem homogênea, sem representação de qualquer diversidade étnica ou cultural. Tal é o caso do segmento angolar, até então representado na sua marginalidade como se a sua história não participasse também da/na “invenção social” de São Tomé e Príncipe:

Alma não fala, sente

Alma não fala, sente
Corre o som nas ondas
em atlântico mistério
vindo de longe, presente

Ergue a tua mão, aponta
qu’a a flecha prolonga o gesto
A certeza d’olhos é porvir
e a nação desponta
                  (Anguéné, 1989)

Embora houvesse a nomeação de outras subjectividades etnoculturais e segmentais, como os contratados, os angolares (tanto em Francisco José Tenreiro como em Alda Espírito Santo e em Manuela Margarido), estes eram apresentados como em espaço outro, existindo entre as diferentes ordens comunitárias uma intensa incomunicabilidade. Vale lembrar que muitas vezes a invisibilidade torna-se visibilidade policiada – o que não deixa de ser outra forma de construção de margens que acentuam assimetrias de fluxos e componentes culturais. É na contramão dessa “concentração em tipos de exclusão” (YOUNG, 2005: 1999) que significa a escrita pós-tenreiriana. E pós-CEI.

Neste contexto, este tipo de representação bastante dramática de pertença à paisagem insular (que muitas vezes se torna paisagem de desconforto) e de encenação de novas performances expõe o quadro das relações internas de dominação colonial que anunciam dialécticas relacionais dissonantes. Uma leitura menos ingénua dessas relações coloniais denuncia uma perspectiva evolucionista da noção de cultura que ainda contamina os estudos de cultura e estudos sobre a (formação de) sociedades crioulas e opera a diluição da componente africana vista como "superável"; mas também em estudos de sociedades africanas continentais, como é o (caso de Angola), com a proposta de uma “cultura crioula” que mais não é, pelos sinais e loci simbólicos de identificação, uma reciclagem do estatuto do assimilado e seus actuais “avatares” (MATA, 2010: 152).

É que a crioulidade, considerada pelos epígonos das teorias da assimilação com fenómeno que caracteriza também uma sociedade continental, sobretudo se pensada a partir da hegemonia da componente europeia, como se quer a Luanda do século XX-XXI, acaba por legitimar o despojamento de matrizes originais desses espaços que se erigem a condição indispensável de modernidade e a um patamar civilizacional superior, numa retrógrada não-conciliação entre o cru e o cozido (isto é, a natureza e a cultura), na conhecida metáfora de Claude Lévi-Strauss. Lembra Serge Gruzinski que

A visão evolucionista inspira a ideia de que a planetarização das mestiçagens seria uma etapa prévia de um desenraizamento radical e de uniformização absoluta que levariam directo à “aldeia global”. (Gruzinski, 2001: 328)

Decorre disso que, por via da ficcionalização e imaginação da mestiçagem, que a transforma num dos nós górdions da dominação e subalternidade, é o que se verifica na exaltação da mestiçagem como condição da modernidade exclusiva de espaços de colonização europeia, como a África ou a América Latina, ou seus sujeitos. Não que a história não deva levar em conta as mestiçagens, porém a perversidade desta perspectiva é o pressuposto de que a condição mestiça (em qualquer grau de hifenização com a Europa) é indispensável à "elevação" do "nativo" à modernidade global, sem levar em conta as considerações políticas e éticas do convívio social conflitivo entre segmentos e genealogias etnoculturais diferentes. Isso mesmo parece admitir Grunzinski para quem a história “raramente abordou de frente os fenómenos de misturas com os mundos extra-ocidentais e as dinâmicas que os provocaram" (2001:55). E tal ideia é bem  expressa em muitos momentos da obra poética e ensaística de Tenreiro, como nesse emblemático capítulo de A Ilha de São Tomé em que fala do “paradigma de uma influência europeia” dos “verdadeiros luso-descendentes” (1961: 177 e ss)...

NOTAS

1 Originalmente publicado em Francisco José Tenreiro: as múltiplas faces de um intelectual, organizada por Inocência Mata, cuja primeira tiragem é de 2010.

2 Refiro-me ao artigo de Gerhard Seibert intitulado “Poeta, acadêmico e político arbitrariamente expatriado”, publicado no diário português Público (Lisboa), 24 de janeiro de 2010, e quando este projecto de publicação, para o qual o articulista já havia sido convidado, já estava em curso.

3 Ler, por exemplo, Uma Entrevista de Mário Pinto de Andrade a Michel Laban (Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997).

4 Alfredo Margarido, Lisboa, 23 de Agostos de 2010. Apud A. Margarido & I. Castro Henrique (p. 67).

5 Inocência Mata. “Francisco José Tenreiro (1921 – 1963): a nacionalidade cultural de Francisco José Tenreiro”. Correio da Semana (São Tomé), Edição nº 251 – sábado, 06 de Março de 2010.

6 Ver: Jerónimo Xavier de Sousa Pontes. “Sum Fâchiku Stockler – No Contexto da Poesia São-Tomense do Século XIX” (2008). Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (http://www.africanos.eu/ceaup/).

7 Segundo a etnolinguista Yeda Pessoa de Castro, a palavra vem da língua árabe: muallad ou mowallad, nascido de um pai árabe, muçulmano, e de uma mãe estrangeira, infiel. Terá sido, ainda segundo a mesma autora, a homofonia com mullus a levar todos os autores portugueses e brasileiros, na sua “busca desenfreada para justificar a etmologia na língua portuguesa”, à ideia errônea de pensar que mulato, mestiço, seja a mesma palavra mulato, muacho, burro de carga. (Informação recolhida no III Seminário Nacional de Estudos Culturais Afro-brasileiros, UFPB, João Pessoa, 3-5 de Novembro de 2010).

Esse equívoco terá sido originado, ou consolidado, a partir da segunda passagem da peça O Clérigo da Beira, de Gil Vicente, sempre invocada para documentar o verbete mulato, reportando-se, por sua vez, ao Grande Dicionário Etimológico e Prosódico da Língua Portuguesa, de Silveira Bueno (São Paulo: Ed. Saraiva, 1968, s.v., 5º vol., 2ª tiragem):

“Se beato imaculato me emprestasse o seu mulato mas não sei se se quererá (O Clérigo da Beira), serve apenas para o muacho, para o mu e não para o descendente de branco e negra.”

Cf. Yeda Pessoa de Castro, Falares Africanos na Bahia, um Vocabulário Afrobrasileiro. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/ Topbooks Editora, 2ª Edição, 2005.

8 O animal mais terrível da ilha de São Tomé (inexistente no Príncipe), o único que os são-tomense realmente temem.

9 No seu ensaio “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, de 1936, o filosófo alemão Walter Benjamin, referindo o lugar da memória na refiguração identitária, faz uma diferença entre a experiência do conhecimento, exemplificada pelo viajante, e a experiência da vida quotidiana e tradicional, a vivência, exemplificada pelo camponês, como pilares da memória, até como instituição social, em que é possível encontrar resistência à perda da capacidade de intercambiar experiências.

10 Não são indicados os livros de poesia citados.

Bibliografia citada[10]

ANDRADE, MÁRIO Pinto de. Considerações sobre a História das Ideia Nacionalistas Nos Países Emergentes da Luta contra a Dominação Colonial Portuguesa. Palestra proferida no Ginásio do Liceu Técnico [Liceu Nacional]. São Tomé, 02 de Março de 1985. Reprografada.

ANDRADE, Mário Pinto de. Uma Entrevista (a Michel Laban). Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.

BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de NikolasLeskov”. In: Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre Literatura e História da Cultura Obras Escolhidas. Volume 1, 3ª Ed.: São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.

CANDIDO, Antonio. A educação pela Noite & Outros Ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989.

CASTRO, Yeda Pessoa. Falares Africanos na Bahia, um Vocabulário Afrobrasileiro. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/ Topbooks Editora, 2ª Edição, 2005.

HAMILTON, Russel. Literatura Africana, Literatura Necessária. Lisboa: Edições 70, 1984.

GOFF, Jacques Le. História e Memória, São Paulo: Editora da UNICAMP, 4ª edição, 1996.

GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço, São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

MAALOUF, Amin. As Identidades Assassinas. Lisboa: Difel, 2ª edição, 2002.

MATA, Inocência. A Suave Pátria – Reflexões Político-culturais sobre a Sociedade São-Tomense, Lisboa: Edições Colibri, 2004.

MATA, Inocência. “Francisco José Tenreiro”. Correio da Semana (São Tomé), Edição nº 251 – Sábado, 06 de Março de 2010.

MATA, Inocência. Polifonias Insulares: Cultura e Literatura de São Tomé e Príncipe. Lisboa: Edições Colibri, 2010.

MBEMBE, Achille. Sortir de la Grand Nuit: Essai sur l’Afrique Décolonisée. Paris: La Découverte, 2010.

TRIGO, Salvato. “Prefácio”. Francisco José Tenreiro. Obra Poética. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991.

SHOHAT. Elia. “Notes on the “Post-Colonial”. In: PadminiMongia (Ed.) Contemporary Postcolonial Theory a Reader (1996), London-New York Arnold.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty “Can the Subaltern Speak?”. In: WILLIAMS, Patrick and CHRISMAN, Laura (Ed.). Colonial Discourse and Post-Colonial Theory (A Reader). London-New York: Harvester-Wheatsheaf, 1993.

STEAVENHAGEN, Rodolf. "O legado de Colombo (visto de baixo)". Revista de Ciências Sociais (Coimbra), n.38, Dezembro de 1993. 

TENREIRO, Francisco .A Ilha de São Tomé. Estudo Geográfico. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1961.

YOUNG, Robert J. C. Desejo Colonial: Hibridismo em Teoria, Cultural e Raça: São Paulo: Editora Perspectiva, 2005.
 



[i] Professora de Literaturas, Artes e Culturas (LAC) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, investigadora do Centro de Estudos Comparatistas (CEComp/FLUL) e diretora do Doutoramento em Português Língua Estrangeira/Língua Segunda. É doutora em Letras pela Universidade de Lisboa e pós-doutora em Estudos Pós-coloniais (Postcolonial Studies, Identity, Ethnicity, and Globalization) pela Universidade de Califórnia, Berkeley. Atua, no ensino e na investigação, principalmente na área dos estudos pós-coloniais, e interessa-se pelos seguintes temas: literaturas e culturas africanas, relações estéticas entre literaturas em português, literatura-mundo, estudos de memória, produção literária de autoria afrodescendente em Portugal e comunicação intercultural. Professora visitante de muitas universidades estrangeiras, é igualmente membro do Conselho Editorial e Científico de muitas revistas de especialidade, nacionais e estrangeiras.

Texto para download