O espaço por quem o vive: para uma geocrítica do espaço ficcional na literatura são-tomense[1]

Inocência Mata[i]

         [A] história literária sempre integrou uma componente geográfica. André Ferré apud Michel Collot (2012:21)

1. A seminal estética do deslumbramento e das alteridades

As árvores colossais, erguidas como sentinelas no cimo dos outeiros alterosos, parece que levantam os braços seculares sobre o formidável exército que as rodeia, para regerem a orquestração divinal produzida pelo vento que as açoita. António Lobo de Almada Negreiros (1895: 129)

Um primeiro convite que um estudo panorâmico da ficção são-tomense — objeto deste ensaio — pode fazer a quem queira perscrutá-la desde os seus primórdios é rastreá-la através das representações do espaço ao longo dos tempos, a interpretação do espaço geográfico sob a perspectiva de valores éticos, estéticos e simbólicos, interpretando as interações entre os espaços (dos) humanos e a produção literária, abordagem que Bertrand Westphal designa como geocrítica (2000). Uma tal abordagem aponta para as relações entre os espaços humanos e o contexto geográfico (Westphal, 2007: 152), considerando os paradigmas epistemológicos em que assentam as percepções e as representações espaciais — entendendo por epistemologia a noção ou ideia, refletida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento (Santos e Meneses). Isso porque desde as primeiras manifestações literárias a produção literária gerada no ou a partir do espaço são-tomense foi caracterizada por um relato do espaço em todas as modalidades genológicas. Destaca-se, deste conjunto literário, a prática narrativa, seja de intenção literária, de informação ou ensaística, com representações denunciando tanto o deslumbramento perante a magnificência da Natureza quanto a sua hostil diferença geográfica (a flora, a fauna, o clima, o ambiente), com reflexos no tecido social, cultural, histórico — humano, enfim —, o que permite estudar esse corpus ficcional através de uma perspectiva crítica, a geocrítica, que Michel Collot assim define:

Proponho chamar de geocrítica a análise das representações literárias do espaço tal como pode ser feita a partir do estudo do texto ou daobra de um autor e não mais de seu contexto. Trata-se de estudar menos os referentes ou as referências de que o texto se nutre e mais as imagens e significações que ele produz, não uma geografia real mas, sim, uma geografia mais ou menos imaginária. (Collot, 2012: 23)


O objetivo deste capítulo é refletir sobre as formas literárias que configuram as imagens dos espaços e dos lugares na produção ficcional de motivação são-tomense e na literatura são-tomense ao longo dos tempos — não me referindo propriamente à espacialização do discurso literário, eventualmente criador de novas formas, mas no sentido em que espaços, lugares e paisagens contam não apenas determinadas histórias das gentes e da sociedade como também a história dos olhares sobre eles, isto é, a visão do mundo do autor. Com efeito, as primeiras representações dos espaços, contemplados ou vividos, foram sempre impregnadas de uma percepção de alteridade e permeadas por uma ideologia de superioridade geográfica da terra do sujeito enunciador (a pátria imperial) que fundamentava a superioridade cultural do colonizador — sendo que a autoria dessas representações era quase exclusivamente metropolitana. Essa produção literária, nos primórdios do sistema colonial (logo após a Conferência de Berlim), dá evidência da ideologia colonial que se estava a construir e que se constituía como justificação do empreendimento imperial.

Embora a poesia tenha sido, como aconteceu na história de muitos sistemas literários nacionais, o berço da literatura são-tomense, é na prática narrativa que a expressão de encantamento e projeção vivencial mais exprimia uma ideologia de alteridade a partir da geografia — embora Equatoriaes (1898), de António Lobo de Almada Negreiros,2 seja um exemplo de poesia que emparelha, pela sua composição semântico-pragmática, com a prática narrativa, destacando-se pelo deslumbramento do homem metropolitano perante a Natureza, cruzando-se esse fascínio pela paisagem natural com a atividade memorialista referente à permanência do autor nas ilhas como “Administrador de Concelho de S. Tomé” e, em particular, à vivência na Roça Saudade (propriedade da família de sua mulher, natural de São Tomé, falecida prematuramente). Equatoriaes é a primeira expressão da fascinação do exótico, da beleza natural, através de uma escrita memorialista em que o sujeito da enunciação, metropolitano, se confronta com a grandiosidade do espaço físico, impenetrável e indomável, nos seus contrastes com a natureza metropolitana, previsível e inteligível. Por essa altura (século XIX) dois fenómenos se verificavam na emergente escrita de intenção literária de motivação são-tomense: por um lado, a poesia dos naturais da terra estava em consonância com as estéticas dos períodos em que essas produções se atualizavam pela escrita de Francisco Stockler (em crioulo forro da ilha de São Tomé), Caetano Costa Alegre, Herculano Levy, todos poetas nascidos na ilha de São Tomé: essa escrita era, pois, marcada grosso modo pela estética da sua contemporaneidade, a parnasiana e a naturalista; por outro lado, imbuídos de um claro “pensamento espacial”, autores metropolitanos dimensionados numa ideologia imperial foram produzindo uma determinada literatura que inscrevia eventos referentes ao homem e à sociedade (colonial) no espaço literário, sem qualquer consciencialização da dimensão espacial dos fenómenos culturais e socioeconómicos. Ou melhor, com uma determinada consciência, então imperial, na interpretação do espaço geográfico, focalizando os lugares, entendidos aqui, como refere Michel de Certeau, como «a ordem segundo a qual se distribuem elementos numa relação de coexistência, implicando portanto uma indicação de estabilidade» (1998: 201). É essa estabilidade uma categoria fundamental para a domesticação desse espaço. É que

                       [Natureza] significa antes de tudo regiões e ecossistemas que não eram dominados pelos europeus, embora incluindo muitas regiões da                               entidade geográfica conhecida como Europa. (Pratt, 1999: 78) 

Com efeito, nessas primeiras manifestações da escrita de/sobre o mundo são-tomense — no século XIX, princípios do século XX —, a alteridade (com o espaço físico, natural e humano) institui-se como eixo do código semântico-pragmático. Muitas das representações do espaço conformam uma prosopopeia e um hino à Natureza, um verdadeiro “espetáculo da natureza”, como o que se vê em textos de António Lobo de Almada Negreiros, tanto na escrita poética, já referida, gerada em lugar afetivo a partir da Roça Saudade (onde vivia com a família e onde nasceu José de Almada Negreiros), quanto na sua escrita ensaística, designadamente o livro História Ethnographica da Ilha de S. Thomé (1895).

A representação do espaço na escrita ensaística de Almada Negreiros faz-se também a partir de uma ideologia — ou melhor, uma epistemologia — subalternizante. E não é despiciendo o facto de, muitas vezes, esses textos ensaísticos serem de contaminação literária — o que corrobora a ideia de que «o referente espacial de um texto é já ele próprio carregado, em parte, de referências literárias» (Collot, 2012: 24) — e de forma não apenas a provocar a faculdade de sonhar (a fantasia), mas também a de apontar para um mundo metafísico que se situa para lá da aparência do real (Paz e Moniz, 1997: 93). É neste contexto que em História Ethnographica da Ilha de S. Thomé o espaço se constitui, logo à partida, como o outro pela estranheza e diferença, embora a admiração e a edenização sejam categorias subjacentes nessa observação. Esta primeira relação de alteridade, manifesta no enfrentamento do sujeito da escrita com a magnificência da Natureza, avaliza, não obstante, um objeto tangível, embora sensível, cuja apreensão e inteligibilidade se processam por via espiritual, já nos contornos de idealização, como se poderá perceber em diferentes passagens:

Esta ilha [de São Tomé] […] deve á natureza tudo o que ella lhe podia dar de mais surprehendente. Quasi assente sobre a linha equatorial, a sua majestosa vegetação, attestando a natureza uberrima do seu solo, infunde o respeito e o pasmo das coisas incomparáveis. […]
[…]
A Natureza gigante, suggestiva, nova, eleva a alma menos contemplativa. Ha um não sei quê de mysterioso e de sobrenatural em tudo isto, que se vê e se não descreve com facilidade. […] Mais ali, o leito d’estes riachos estorce-se, apertado por alterosas montanhas, que parece terem-se confundido n’uma lucta titanica, e o veio de aguas brancas lá vae serpenteando, apertado aqui para despenhar-se com fracasso n’uma explendida cascata; mais livre acolá, marulhando uns sons que só se sabem sentir.
[…]
As arvores collossaes, erguidas como sentinellas no cimo dos oiteiros alterosos, parece que levantam os braços seculares sobre o formidando exercito que as rodeia, para regerem a orchestração divinal produzida pelo vento que as açoita. (Almada Negreiros, 1895: 128–131)

Além de Almada Negreiros — cujas obras citadas, embora não sendo da modalidade genológica em consideração, a ficção literária, partilham características narrativas dessa prática —, há ainda ficcionistas metropolitanos de motivação são-tomense na primeira metade do século XX, tais como Manuel Joaquim Gonçalves de Castro, autor de Horas d’Ócio no Equador (1908), a primeira experiência da prática narrativa (literária) de motivação são-tomense; Manuel Récio e Domingos S. de Freitas, autores de Fortunas d’África (1933), uma noveleta de dupla autoria; Julião Quintinha, autor de Novela Africana (1933), um livro de contos; Luiz Teixeira, autor de Na Roda do Batuque (1933); e Rui Cinatti, autor do conto “Ossobó” (1936). Porém, claramente tais representações dos espaços contemplados ou vividos na literatura de autoria metropolitana eram sempre decorrentes de uma consciência de alteridade em relação ao lugar e impregnadas por uma ideologia sociocultural claramente construtora de uma cartografia espácio-temporal que impunha “culturalizar”, porque o espaço era visto como não humanizado, sobretudo à medida que a função referencial deixa(va) de dominar e a expressão do locus amœnus ia sendo substituída pela representação de uma região fértil habitada por “indígenas” falantes de uma “algaravia confusa”, inofensivos embora “preguiçosos”… Por isso, são celebrados aqueles que, não obstante a nostalgia do lugar de origem, “civilizado”, são obrigados a permanecer, ao serviço da pátria, nas paragens longínquas que são as colónias, pois a missão civilizatória é árdua, como se vê expresso em Horas d’Ócio no Equador, de Gonçalves de Castro:

Os raios calcinantes d’um sol amarello esvahido, atravez d’uma atmosphera baça, a lua d’um pallido sem brilho e as estrellas sem scintillações contrastam com o viço dos vegetaes, sem alternativas na côr da sua folhagem que a humidade alimenta e as pavorosas trovoadas regam; o adejar dos passaros por entre a ramagem do arvoredo, com receio de exhibir a belleza da sua plumagem, requintadamente matisada, soltando gorjeios de entonação diversa aos da Europa; os indigenas de habitos selvaticos e costumes exoticos, com a lentidão de movimentos e a noite escura estampada no rosto, tudo concorre para a tristeza que a nostalgia imprime no sentimento de quantos teem de viver nas plagas africanas. (Castro, 1908: v–vi)

Este aspeto conforma uma particularidade exponenciada na prosa de ficção de motivação são-tomense (e que vai constituir, grosso modo, o corpus da literatura colonial): a de que, na narrativa, o autor não assimila primordialmente o tempo (como pretenderia Gérard Genette, para quem a narrativa seria um modo essencialmente temporal), mas igualmente o espaço, pois as ações dos homens exprimem as relações com o meio em que se produzem. Sem pretender perfilhar qualquer determinismo espacial ou geográfico, pode dizer-se que a ficção de motivação são-tomense, muitas vezes de projeção vivencial e experiencial ou de reflexão metafísica — como “Ossobó”, de Ruy Cinatti (1992 [1936]) —, é expressão do encantamento que as paisagens, enquanto flora e fauna (mormente ornitológica), provocam nos sentidos, do êxtase e da experiência que o contacto com essa fauna suscita, buscando perceber as representações do espaço na elaboração textual e na construção do imaginário sobre esse espaço. Como se pode ver mais abaixo, neste conto, os sentidos são convocados para a construção de uma sugestiva mistura de imagens sensoriais, o que aproxima essa escrita da prosa poética:

Pousado num ramo da acácia, Ossobó canta e alisa as penas do peito com o bico humedecido. Mete a cabeça debaixo das asas, sacode o corpo do entorpecimento nocturno, confundindo o verde das suas penas com o verde das folhagens.
De ramo em ramo, passa batendo as asas com dificuldade, pois as curtas distâncias impedem que se lance no voo. 
Por momentos, qualquer coisa o atrai lá em baixo, no chão, e rápido desce, pousando sobre a macia cama de folhas secas ali acumuladas há tanto tempo. (Cinatti, 1992 [1936]: 27–28) 

Este conto, em que o enunciador (o narrador?) se comporta como um voyeur e um intérprete, funciona como uma crónica em que a geografia da contemplação é mais psicológica e metafísica que constrói um espaço mental, fazendo deflagrar a identificação com o “objeto” que observa e anulando a ruptura entre o plano do acontecimento, do “não eu”, enquanto o do sentimento, do “eu”, concentra na observação do pássaro a experiência vivida na floresta da ilha do Príncipe, e fazendo com que o texto se transforme num apontamento cronístico — daí eu ter designado este texto como crónica-conto (Mata, 2010: 110).

Se, em Rui Cinatti, a Natureza emerge como (apenas) lugar metafórico — e metafísico — de observação e como imagem que articula experiências e sonhos (Stilwell, 1995: 248), na maior parte dos casos, a representação do espaço faz-se apresentando-o como «calvário de homens e de eternas belezas», nas palavras de Castro Soromenho em “Ilha do Príncipe” (1936), que, não disfarçando a sua intencionalidade textual, conforma a dimensão epopeica do navegante que tenta dominar uma terra perigosamente bela, numa temerária conciliação entre a promessa do locus amœnus e a manifestação do locus horrendus:

Príncipe — calvário de homens e de eternas belezas. Os homens que primeiro foram fecundar o teu ventre ubérrimo morreram doidos de febres e deslumbrados com a tua verdura exuberante. […]
Morreram felizes porque até ao momento da abalada só viram esplendor, riquezas de lenda, toda a sua louca ambição realizada…
E outros homens vieram, sem temer os infortúnios e a própria morte, e tanto sonho trouxeram na alma que tu te rendeste à sua glória em oferenda a Portugal. (Soromenho, 1968 [1936]: 131–132)

A celebração da exuberância da Natureza é evidente, não obstante os perigos que ela encerra, e é essa atitude ambígua na representação do espaço que se manterá em outras modalidades genológicas da época, quer estéticas, quer referenciais. São essas representações, relevando de imagens mentais, que foram, ao longo dos tempos, configurando uma «poética da geografia literária» (Collot), feita de múltiplas cartografias, tributárias da geograficidade produtora do locus horrendus e do locus amoenus (e, muito mais tarde, do locus horribilis, como se verá na literatura portuguesa — embora essa horribilidade espacial seja frequente nos espaços em que houve uma luta armada, como Angola, a Guiné-Bissau e Moçambique) (Mata, 2011).

Em outros textos de informação e de cariz documental, como no já citado “A Ilha do Príncipe”, de Castro Soromenho, a linguagem referencial é também forte- mente contaminada pela efusão lírica, o que também acontece em Roteiro de África (1936), de José Osório de Oliveira, Clarão do Império (1938), de Leopoldo Nunes, Ao Sol do Império (1938), de Fernando de Pamplona, ou Padrão de soberania (1939),3 de José Augusto, entre outros textos que conformam a «evidência [… de] que a história literária sempre integrou uma componente geográfica» (André Ferré, 1946 apud Collot, 2012: 21).

2.Expressões da colonialidade na representação do espaço

[Q]uanto mais selvagem a natureza, mais selvagem a cultura.
Mary Louise Pratt (1992: 231)

Se a poesia teve uma produção considerável no século XIX, a prosa (de ficção, pois a de informação acompanhou o processo da posse da terra) de gestação são-tomense era muito incipiente, não tendo o século XIX sido pródigo, para lá de produção esporádica, em manifestações constantes e regulares de registo de espaço geográfico. Pode dizer-se até, como já afirmei em outro lugar (Mata, 2010: 81), que foram tortuosos os meandros da emergência da prosa de ficção em São Tomé e Príncipe. Seria nos princípios do século XX que a narrativa de intenção estética começaria a ganhar lugar na atividade da escrita literária, passado o período da literatura de teor informativo, tais como apontamentos narrativos de assuntos vários (de informações úteis do quotidiano a considerações de ordem experiencial e científica sobre a fauna, a flora, orografia, hidrografia, usos e costumes), crónicas, memórias, testemunhos, itinerários, roteiros, diários e relações de viagem e outros escritos de informação que registavam particularidades das gentes e davam conta das potencialidades da terra. E embora não fossem escritos de intenção literária, a leitura desses textos deixa descobertos, hoje, laivos de uma contaminação estética, como se pode ver nos excertos acima transcritos de História Ethnographica da Ilha de S. Thomé, estudo pioneiro de teor etnográfico e sociológico das populações da ilha, suas origens, organização familiar, vida nas roças, religiosidade, costumes e crenças, medicina tradicional, além de se constituir também como a primeira descrição histórica e linguística, sendo, portanto, texto evidentemente marcado pela dominante referencial, porém, em que a efusão lírica parece amiúde sobrepor-se à linguagem denotativa, como se viu. Ainda com a mesma indefinição na “dominante” função da linguagem (Roman Jakobson), atente-se na seguinte passagem de uma reportagem do repórter-roteirista Luiz Teixeira:

A vegetação é densíssima e rica. Apertada, íntima, exuberante, tem uma ambição e esforça-se por um objectivo — alcançar a luz, ser beijada pelo Sol. (Teixeira, 1933: 24–25)

Por conseguinte, também na escrita referencial existe o “instante” do fascínio pela magnificência do elemento natural, muitas vezes inibindo qualquer distancia mento, fazendo com que uma das coordenadas do modo narrativo propicie (ou atualize) a reflexão e a apreensão cognitiva do objeto (neste caso, do espaço) e condicione a construção de uma determinada epistemologia que aborde o relaciona- mento do sujeito com uma espácio-temporalidade outra. Eis porque mesmo da narrativa referencial resulta, muitas vezes, uma enunciação lírica, com a natureza a ocupar o lugar de leitmotiv da escrita, embora constituindo-se como veículo de outra “mensagem”, essa com “contexto de credibilidade documental” (Lanciani, 1997: 82): informação necessária sobre uma parcela do “espaço português” disseminado pelo Mundo, em cuja construção a literatura também participa. Ainda Luiz Teixeira:

O òbó é um túmulo verde, misterioso. O preto que foge, desce para a floresta como um suicida, que procura liberdade longe da vida numa atitude de desesperada renúncia de quem passa para um outro mundo.
E lá, no òbó, há, na verdade, uma vida diferente.
[…] O preto que fugiu vai viver no òbó o resto da vida. Passa a ser a alma dum outro mundo. É um regresso ao primitivismo feliz. Alimenta-se de banana, de manga, de jaca. A “fruta-pão” fornece-lhe resistência. Dorme sob as folhas lindas das bananeiras num paganismo de Éden perfumado. (Teixeira, 1933: 32–35)

Parece clara a epistemologia que conforma o embasamento ideológico que subjaz a estas afirmações: a de que «quanto mais selvagem a natureza, mais selvagem a cultura» (Pratt, 1999: 231). É por isso que esses textos também se podem incluir no género de literatura de viagens,4 mesmo que se considere não predominar neles o «estatuto genológico da viagem como deslocação», que parece ser um dos critérios fundamentais para a comunicação literária desse/nesse género, segundo Fernando Cristóvão (1999: 15). Mas é preciso ter em conta, como lembra Pires Laranjeira, que «[a]s origens da literatura colonial podem encontrar-se na literatura de viagens, em sentido lato» (1997/1998: 74), na medida em que a viagem é (quase) sempre o evento que inaugura a narrativa colonial.

Com efeito, revelando uma ideologia eminentemente expansionista, sem quaisquer indícios de integração dos seus autores no espaço são-tomense, nessas obras — e em outras de motivação são-tomense, de primária intenção literária ou não, em que a exiguidade do espaço desta breve panorâmica apenas permite nomear — celebra-se a territorialidade imperial pela reunião num mesmo lugar das parcelas do império: reinterpretando o poema “O Infante”, de Pessoa, pode dizer-se que se celebrava a primeira realização imperial, em que «Deus quis que a terra fosse toda uma,/ Que o mar unisse, já não separasse», muito antes do cumprimento do Mar e do desmoronamento do Império… É com esta opção escritural com forte motivação ideológica que se realiza a ideia da portugalidade e da “transterritorialidade lusa”, em que natureza e homem africano (na liminaridade da humanidade e perspectivado como elemento da Natureza e não como sujeito cultural) se erigem a lugares literários com o mesmo valor e em que os espaços não são diferenciados culturalmente senão como parte do mesmo conjunto — Portugal. Esta perspectiva afasta-se da percepção de Michel Collot, para quem «a variedade de paisagens [deveria] aparece[r] como a expressão da diversidade natural e garante das identidades culturais ameaçadas» (2011: 10).

Nessa produção literária, os deslocamentos e as travessias imperiais vão conferir a esse corpus um cunho teleologicamente ideológico. Com efeito,

[A] viagem era um lugar importante para a construção do conhecimento dessas terras longínquas, sempre actualizado segundo uma lógica cultural imperial na representação dos universos narrados, seja na ficção seja em relatos (portanto com intenção documental e/ou científica). (Mata, 2016: 92)

Na verdade, o que se intentava era a construção de uma “continuidade espacial lusa” que funcionaria como princípio estruturante da estética textual. Mas não apenas isso — isto é, não apenas a construção de uma ideologia que fundamentasse a ação colonial, mas ainda o aparato filosófico que a justificasse na perspetiva de uma transterritorialidade nacional, feita de várias geografias. É interessante, neste contexto, ter em conta um corpus de obras cujos espaços transitam entre (a metrópole) e (as colónias, o império), para me reportar ao título (anunciado, porém não concretizado enquanto publicação) da obra Contos de Cá e de Lá, de Fernando Reis, um dos autores mais significativos da literatura colonial de gestação são-tomense.

2.1.A literatura de intenção colonial e a escrita da roça

É a partir da década de 1930, após o Acto Colonial (1930), que uma produção sobre a África colonial foi ganhando foros de instituição, conforme se pode entender a literatura como instituição.5 É por isso significativa a percepção de Augusto dos Santos Abranches (autor de uma das primeiras reflexões sobre a literatura colonial) da literatura colonial como aquela que

pretende contar as reacções do branco perante o meio-ambiente do negro, isto é: a toda essa espécie de descrição mais ou menos ficcionista que nos introduz perante as pessoas imaginariamente vindas de ambientes culturais desenvolvidos, civilizados, para meios-ambientes primitivos. (Abranches, 1949: 79)


Trata-se de uma literatura que sempre foi estudada, sob perspectivas diferentes, desde aquela do supracitado pioneiro Augusto (dos Santos) Abranches à de Amândio César (o paladino da crítica colonial), Rodrigues Júnior ou José Osório de Oliveira, até às mais recentes e atuais, como as de Manuel Ferreira, Pires Laranjeira, Francisco Noa e eu própria. Pires Laranjeira, por exemplo, no seu artigo “A literatura colonial portuguesa” (1997/1998), assim define literatura colonial — na contramão, aliás, de Manuel Ferreira (no seu livro O Discurso no Percurso Africano, 19896):

A literatura colonial relaciona-se com a literatura das Descobertas e da Expansão, com a literatura de guerra e com outros tipos de textos sobre a delimitação e exploração territorial, de toda a espécie de relatos dos europeus, como crónicas, relatórios, missivas, reportagens. Apresenta frequentemente um carácter monográfico, geográfico, antropológico e económico, descrevendo as terras, as gentes e seus costumes mais imediatamente apreensíveis, além de relatar as riquezas do solo e do subsolo. (Laranjeira, 1997/1998: 74–75)

Na expansão ideológica do espaço do “ultramar”, outra alteração estrutural opera-se na composição narrativa, que até então tem na metrópole o início e não raramente o desenlace. A partir dos cruciais anos 30 do século XX, tornam-se evi- dentes numa “evolução” genológica a introdução da estrutura de conflito, que se inicia sempre na metrópole, e a determinação épica da personagem, cuja ação se define pela proeza que é partir da terra pátria, a metrópole, e se vai intensificando com o processo de adaptação e socialização da personagem metropolitana, branca. A representação da Natureza vai ceder lugar à da paisagem à medida que o espaço vai sendo percepcionado por via da interação que estabelece com o sujeito: lembra Collot que

A paisagem aparece assim como uma manifestação exemplar da multidimensionalidade dos fenómenos humanos e sociais, da interdependência do tempo e do espaço, e da interação da natureza e da cultura, do económico e do simbólico, do indivíduo e da sociedade. Ela fornece um modelo para pensar a complexidade de uma realidade que convida a articular os contributos das diferentes ciências humanas e sociais. (Collot, 2011: 11)

Assim, o sujeito metropolitano vai construindo um mundo habitável com emoções, sentimentos, desejos e aspirações a serem realizados , nesse espaço tão diferente, mas que começa a ser compreendido como um mundo possível. O espaço (a ser) culturalizado no âmbito de uma relação de identidade e subjetividade ganha outra dinâmica e é então que se pode falar de paisagem geográfica, não apenas como um recanto do mundo mas como uma certa imagem dele, elaborada através da perspectiva das sensibilidades de quem o observa, seja o autor empírico, o autor textual ou o narrador (Collot, 2012: 24).

Viana de Almeida é o primeiro nome que se impõe quando se fala da prosa de ficção são-tomense, com o seu livro de contos Maiá Poçon, de 1937. Considerado o primeiro ficcionista natural de São Tomé, Viana de Almeida situava as suas histórias tanto em São Tomé quanto em Angola e em Lisboa, inaugurando a escrita da roça (Mata, 2010) e dando assim início a uma estética cujo espaço constrói o mote da trama diegética que, de um modo ou de outro, consoante o embasamento ideológico, irá funcionar como uma presença obsidiante na ficção são-tomense. Na sua obra celebra-se, até pelo modus faciendi do objeto-livro, a “realização performativa da portugalidade”, segundo estratégias diferentes que convergem para a colonialidade e uma dinâmica expansionista que deixa entrever um percurso que, partindo da imperialidade (como nos autores supracitados no trecho anterior) chega à ultra- marinidade, enformando estéticas a partir das quais se vai configurar a literatura colonial. Os autores dessa literatura, ultrapassado o primeiro olhar viajante da expansão imperial, continuam a ser maioritariamente metropolitanos ou de origem metropolitana, assim como o vetor fundador da sua produção continua a ser a alteridade em relação ao espaço insular — o que enfatiza a dimensão épica das personagens principais — na sua tripla dimensão: humana, cultural e física, com prevalência para o espaço geográfico, tornando-se os protagonistas figuras heroicas pois, como lembra Georg Lukács, «o herói de romance nasce desta alteridade do mundo exterior» (1986: 66). Espaço que no final acaba por ser inexoravelmente conquistado, subjugado — civilizado, finalmente, cumprindo-se a missão, muitas vezes através do sacrifício do herói:

João Paulo […] contou pormenorizadamente o seu passado, as suas derrotas e as suas vitórias, a vida dura do mato, a exigência despótica dos administradores antigos, a insegurança dos empregos, a luta contra o mato, desbravando a floresta cerrada, sob um sol incandescente, ou quase esmagados por chuvadas torrenciais que flagelavam como chicotadas, sem arredar pé, para dar o exemplo aos trabalhadores negros, galgando montanhas e picos de esfarrapa- rem nuvens, descendo encostas por declives de causar vertigens, […] ou assassinados, lá em baixo, nos vales abissais, pela cobra negra, cuja mordedura inexorável chegava para matar um boi. (Reis, 1960: 47)


Com efeito, a alteridade do espaço conquistado e doravante a partir de um conjunto de significados é, a nível semântico-pragmático, um dos vetores da colonialidade literária, tendo a sua realização em personagens que, face ao outro, se revelam através de uma dimensão tragicamente sacrificial, e através das quais é celebrado o esforço dos que têm que permanecer em paragens longínquas (as colónias) ao serviço da pátria, o Portugal imperial. Esse princípio estruturante da colonialidade tem graus de integração vivencial dos sujeitos de escrita em que, do olhar exótico, se chega a um saber vivencial que se vai transmudando em nativização.

Será, com efeito, na década de 1960, sobretudo pouco depois da fase do “colonialismo triunfante” (Maria da Conceição Neto), que se situa entre 1920 e 1960, que essa literatura entra na sua fase ideológica mais propagandística em que a função político-ideológica é mais evidenciada do que a ético-pedagógica, sendo o destinatário primeiro o homem português vivendo em Portugal (Ferreira, 1989: 249). É na produção das décadas de 1950 e 1960 que começam a surgir nomes que ficarão como construtores do corpus ficcional da literatura são-tomense. Nessa altura, destacam-se dois escritores metropolitanos cuja escrita é de adesão cultural e afetiva ao mundo são-tomense, não obstante a visão etnocêntrica, própria da ideologia colonial, transformando-o num dos lugares da sua criação literária: são eles Fernando Reis (1917–1992), funcionário administrativo dos serviços de saúde e da repartição do Centro de Informação e Turismo de São Tomé, e Luís Cajão (1920–2008), administrador de uma roça da ilha do Príncipe, autor de A Estufa (romance, 1964), e O Outro Menino Jesus (conto, 1968), assim como Horácio Nogueira, um português com uma experiência literária sobre Angola e Cabo Verde que escreveu uma única novela de motivação são-tomense, Natal em São Tomé (1962), publicada na coleção Imbondeiro (Sá da Bandeira, hoje Lubango).

De entre estes, o mais significativo escritor da literatura colonial de motivação são-tomense é Fernando Reis, construtor de heróis coloniais emblemáticos que povoam a galeria dos heróis da literatura colonial. É, além de um clássico da descrição etnográfica das manifestações culturais são-tomenses, Povô Flogá — O Povo Brinca: Folclore de São Tomé e Príncipe (1969), autor de A Lezíria e o Equador (contos, 1954), Roça (romance, 1960), O Baú de Folha (contos, 1961), Maiá (novela, 1964), As Mangas de Alpaca (teatro, 1965), Djamby (teatro, 1969), Histórias da Roça (contos, 1970), e Ilha do Meio do Mundo (romance, 1982), que o autor dedicaria

aos refugiados e repatriados do (ex-)Ultramar — especialmente de São Tomé e Príncipe — que orgulhosamente supunham serem os continuadores da gesta heróica começada há mais de cinco séculos, e foram, tristemente, os últimos roubados e traídos. (Reis, 1982: 7; itálico acrescentado)

Este paratexto reforma a neutralização da categoria cronológica na conceituação da estética colonial, pois Ilha do Meio do Mundo pode considerar-se uma narrativa exemplar, seja pela dimensão estético-ideológica da colonialidade, seja pelo seu solapamento cronológico: é que este romance, publicado quase uma década depois das Independências das colónias portuguesas de África, atualiza os critérios de uma colonialidade textual através do código semântico-pragmático que constrói uma significação performativa da portugalidade. Este último romance de Fernando Reis concentra todas as categorias actanciais da colonialidade, longe da apetência exotista visível que se via na produção literária do início do século, designadamente na descrição do espaço natural. Com efeito, através de personagens como Marcelino Ventura, Pedro Monteiro, César Henriques ou Carlos Ferro, entre muitos outros agentes, personagens que compõem a comunidade metropolitana e branca nas suas intrigas e relações conflituosas com os naturais, e Maria Tomé, filha de pai branco e mãe negra, que reconhece os benefícios da colonização, o narrador constrói um discurso que, por via do “diário” de Fernão Ribeiro, inventiva o desmoronar de uma civilização mestiça, que corre o rico de sucumbir aos ventos do «desvario do pós-25 de Abril» (Reis, 1982: 278). Diferentemente do que fizera anteriormente, com desta que para o seu romance mais importante, Roça, pode dizer-se que ao mesmo tempo que a obra de Fernando Reis celebra a “macroetnia portuguesa”, a “raça lusa” e o pluricontinentalismo, vai construindo, através de estratégias de efeito performativo, uma apologética da missão colonizadora e do colonialismo. Fá-lo pela rarefação de estrangeiridade e pela inclusão dos territórios colonizados como parte da grande “nação colonial” — e isso vê-se na ausência de marcas gráficas de alteridade (aspas, itálico, notas de rodapé) na referência naturalizada aos termos africanos, na contramão do que se normalizara na literatura colonial. Portanto, já não há nesta lite- ratura uma apetência exotista visível, por exemplo, na descrição paisagística. E, quando ela existe, tem uma função completiva mas fundamental na lógica da heroicidade para o que aponta a composição demiúrgica das personagens metropolitanas, após um percurso iniciático, em que o recém-chegado da metrópole se confronta com uma natureza indomável e não raro hostil que acentua a insularidade vivida como isolamento, num espaço estranho, com uma cultura estranha e homens estranhos (Mata, 2010: 117):

A pequena roça [Esperança], cercada pelo obó e pelo mar, era uma ilha dentro de outra ilha onde os seus habitantes trabalhavam, amavam, reproduziam-se e sofriam, sob o pesadelo da insularidade que os acutilava dolorosamente. Agravando o pesadelo do seu isolamento, aquela região era das mais pluviosas da ilha. (Reis, 1970: 60–61)


Ou mais adiante, num outro conto, “Uma história de cobras”, a percepção de insularidade é exponenciada a nível psicológico e emocional:


A Roça Ponta Gandu fica situada a sudoeste da ilha de São Tomé.
Pelo isolamento, pode dizer-se, sem exagero, que é uma ilha dentro de outra ilha.
[…]
O obó era um mundo estranho, terrífico, hostil para os homens que se atrevessem a devassar e profanar a sua tranquilidade milenária. E os homens não se arriscavam a penetrar no âmago da grande floresta. Limitavam-se, prudentemente, a percorrer umas escassas centenas de metros, serpeando em caminhos por onde sabiam poder regressar ao sol e à liberdade dos espaços livres. (Reis, 1970: 105, 137)

3. Da apologética colonial à denúncia social e colonial

Onde estão os homens caçados neste vento de loucura?
Alda Espírito Santo

Para lá do corpus ficcional acima referido, claramente dimensionado na ideologia colonialista, que ganha sistematicidade na década de 1960 e de que se destaca Fernando Reis, há que referir uma outra produção literária coetânea, da auto- ria de Sum Marky, pseudónimo literário, em crioulo forro da ilha de São Tomé, de José Ferreira Marques (1921–2003), filho de comerciantes metropolitanos nascido em São Tomé. É consensual a ideia de que a obra são-tomense markiana — com- posta de romances e novelas (O Vale das Ilusões, 1956; No Altar da Lei, 1962; Vila Flogá, 1963; Tempo de Flogá, 1966; “Angelina”,7 1969; As Mulatinhas, 1973; Crónica de uma Guerra Inventada, 1999; A Ilha do Santo, 2001; e A Liberdade, 2001) — constitui um libelo contra a situação de discriminação social e étnica e a opressão fascista — de que ele próprio foi vítima, tendo sido preso mais do que uma vez pela PIDE/DGS e a sua obra apreendida, razão por que também escreveu sob pseudónimos menos evidentes (Roy Harvey e Louis Rudolfo, pseudónimos utilizados na publicação de novelas eróticas, «para pagar as contas»). Uma grande diferença em relação aos ficcionistas seus contemporâneos é que Sum Marky elege como categoria actancial da sua obra o espaço humano. É neste contexto que textualiza a opressão e a repressão colonialista que o poder e a discursividade coloniais sempre relativizaram. Um desses eventos é o Massacre de Batepá, ocorrido em fevereiro de 1953, em São Tomé. Apesar de ter sido tema de poemas de Agostinho Neto — “Massacre de S. Tomé”, dedicado à “ilustre Amiga Alda Graça”, que é o primeiro registo literário desse nefando acontecimento — e Alda Espírito Santo — com os seus emblemáticos poemas “Onde estão os homens caçados neste vento de loucura?” e “Trindade” —, Sum Marky foi o único ficcionista, na era colonial, a trazer para a cena literária, em três romances — No Altar da Lei, Vila Flogá e Crónica de uma Guerra Inventada —, a matança que começou em Batepá e se estendeu por toda a ilha, perpetrada pelas autoridades coloniais, sob o comando do Governador Carlos de Sousa Gorgulho, e com a participação direta dos colonos. Nessas obras, o autor denuncia a insanidade de uma “guerra inventada” com o intuito de justificar a perseguição aos forros (autodesignação dos naturais da ilha de São Tomé) que se recusavam ao contrato:

Tudo começara na vila da Trindade, com a população nativa a ser perseguida há meses com rusgas permanentes e arrebanho de pessoas para as obras do Estado. Ao anoitecer do dia 3 de Fevereiro de 1953, o tenente Ferreira e o Zé Mulato, acompanhados de soldados armados de espingarda e baioneta, apareceram num jipe em atitude provocatória. Um homem que passava, descuidadamente, na rua principal foi abatido pelas costas. A população, aterrada com o tiroteio, corre a refugiar-se no mato. E, no dia seguinte, principiaram as prisões em massa, as rajadas de metralhadora, morte de gente indefesa. Com a desculpa, disparatada, de que os nativos, armados de machins, se preparavam para marchar sobre a cidade para matar o Governador. E, no fim, nomeariam como governantes personalidades desafectas ao Governo, como o Eng.º Graça, os professores Januário e Maria de Jesus, os chefes e mentores da revolta. E também alguns brancos-forros, Vergílio Lima, Carlos Soares, Américo Morais. (Sum Marky, 1999: 102)

No entanto, apesar de claramente neorrealista, no sentido em que se foca no social e no desvelamento das relações de desigualdade e apontava para um (novo) humanismo nas relações sociais, a obra markiana não textualiza o antagonismo cultural entre colonizados e colonizadores, situando esse confronto (apenas) a nível do antagonismo social e de luta de classes (povo/burgueses ou elite) em que o contencioso, sendo socioeconómico, se situa ocasionalmente entre “mundos” etnoculturais diferentes. Neste contexto, a sua escrita afasta-se da genealogia ideológica de Alves Preto, nome com que o poeta Tomás Medeiros assinou os dois únicos contos publicados na revista Mensagem da Casa dos Estudantes do Império, “Aconteceu no morro” (1960) e “Um homem igual a tantos” (1959),8 conto em que Manguço, o contratado, relembra a sua vida na sua terra natal, como o soba Mucuama fora enganado pelo branco e como o Chefe Bragança, que julgavam «homem bom e amigo dos negros», prometera ao soba que arranjaria trabalho aos homens do quimbo:

Agora que Manguço sabia que tudo era mentira, sentiu vontade de correr às terras do soba, ir mesmo ao posto e dizer na cara do Chefe Bragança que ele tinha enganado os homens do quimbo. Mas… dinheiro? Só a fome era maior que a dos brancos.
– Esse terra de S. Tomé é mais pior que tudo, dizia. Manguço vai na roça contrato; vem na cidade, Manguço é vadio. É mais pior que tudo.
A noite, a noite esquecida de estrelas com cucucus cucuando no cimo dos telhados, cobria a terra. O mesmo silêncio na praia e a mesma certeza a fermentar-lhe no peito: Chefe enganara os homens do quimbo. (Preto, 2018 [1959]: 444)

Nos dois contos de Alves Preto, o mundo representado é o mundo do colonizado, do contratado ou do marginalizado, tal como na poesia nacionalista; e o mundo urbano, espaço que também Sum Marky representa na sua obra, aqui igualmente diferenciando-se dos seus contemporâneos, que atualizaram exclusivamente a escrita da roça, que começara com Viana de Almeida, com Maiá Poçón (1937).

4. A ficção pós-colonial e o longo caminho da diversidade temática

Toda a ficção literária (e, em sentido mais lato, toda a obra de arte), não só é
história, como não poderia deixar de ser.
José Saramago (1999: 5)

Se a obra de Sum Marky é a mais representativa da ficção colonial, a do Padre Sacramento Neto (1932–2019), autor de uma vintena de novelas,9 é aquela que começa por textualizar, ainda, o mundo da roça (Tonga Sofia, Milongo, A Rainha), estendendo-se depois pelos meandros da situação pós-colonial na tematização da ortodoxia e da intolerância ideológica do Estado e dos seus agentes, os chamados “camaradas dirigentes” (Camarada Paulino, 2002; A Passionária, 2003; A Grande Opressão, 2008), embora regressando amiúde ao tempo colonial para cruzar tempos históricos através de uma construção diegética feita com fiapos de factos (A Rainha, O Testamento de Cristina, O Mediatário); outras vezes essa construção é feita através de uma projeção (auto)biográfica, como no caso de Vovó Marquinha (1998), narrativa que oscila entre a memória individual, familiar (que, no entanto, é erigida a identidade coletiva) e a ficção autobiográfica (Mata, 2010: 186). Porém, a escrita novelística de Sacramento Neto também tematiza a condição humana na sua essencialidade: emoções e sentimentos como o amor, o ciúme, a ambição, a vingança e a coragem são constantes, sempre através de tramas fundadas na moral católica e burguesa, segundo uma visão colonial em que o autor estava dimensionado.

É que embora a textualização das relações socioeconómicas, culturais e políticas entre colonizados e colonizadores e a condição do homem contratado nas roças de São Tomé e Príncipe sejam temas constantes na literatura são-tomense, será depois da Independência que a ficção são-tomense ganha um impulso que ultrapassa a teia dessas relações no processo de socialização circunscrito à roça (o que, note-se, já Sum Marky havia feito) — não sem antes Rafael Branco ter vindo, logo em 1979, reincidir, sob uma perspectiva libertária, nessa “escrita da roça” com Makuta, Antigamente lá na Roça, novela mimeografada que só teria edição em 1999. Por outro lado, Frederico Gustavo dos Anjos com uma reflexão metafísica sobre a condição humana em Bandeira para um Cadáver (1984), e, depois, Manu Barreto em Sam Gentí e Albertino Bragança em Rosa do Riboque e Outros Contos, estas últimas obras publicadas em 1985, anunciam essa viragem, tornando visíveis, enquanto sujeitos sociais, as gentes marginalizadas pelo poder colonial, da periferia urbana (Riboque) e periurbana (Caixão Grande) de São Tomé, na sua socialização pelos meandros tradicionais das suas identidades. Albertino Bragança publicaria depois mais uma coletânea de contos, Preconceito & Outros Contos (2014), e três romances — Um Clarão sobre a Baía (2005), Aurélia de Vento (2011) e Ao Cair da Noite (2017) —, confirmando o seu lugar porventura como o mais importante ficcionista da atualidade literária são-tomense.

Mas é na narrativa romanesca que Albertino Bragança mais inova em termos temáticos, começando com Um Clarão sobre a Baía, dedicado a Lereno Mata, preso assassinado na prisão em 1978, durante o regime único do Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP), movimento que conduziu o país à Independência em 1975 e que instaurou, à semelhança do que aconteceu nas outras ex-colónias portuguesas de África, um regime monolítico e de, em alguns casos, assassina intolerância. Aqui, em Um Clarão sobre a Baía, tal como em romances posteriores, a história do país é representada, mas com sinais tecidos ainda a partir da sua circunscrição topográfica, a ilha de São Tomé no seu processo político mas também para lá dessa inscrição, através das percepções sobre as desigualdades de género, o diálogo entre a tradição e os imperativos da sua atualização, a ficção histórica, a erosão dos valores morais e éticos, relações internas de Poder entre os vários atores sociais: estes elementos temáticos apontam para uma estética pós-colonial de questionamento das relações internas de Poder, muitas vezes marcadamente coloniais.

Parece ser nesta modalidade, a da relação entre ficção e história, que se situa Léveléngue: As Gravanas de Gabriela, romance de Rafael Branco cuja 1.ª edição, de 2006 (após ganhar, em 2005, a “Menção Honrosa” do Prémio Sonangol de Literatura), teve uma circulação muito restrita. Autor de um livro de poesia, Fragmentos de uma Vida Sonhada (2017) e, como atrás se referiu, de Makuta, Antigamente lá na Roça, história de um moçambicano contratado numa roça de São Tomé que via, já nos estertores do colonialismo, o «prenúncio de dias difíceis mas novos. Mas também o despertar de uma consciência» (Branco, 2004). Afastando-se da «pre- sença obsidiante do colonial» (Mata, 2001), Léveléngue: As Gravanas de Gabriela mantém-se, porém, no registo da escrita do passado. Através da técnica de encaixe, é apresentada a odisseia de um jovem aspirante a escritor que tenta recuperar a memória (de resistência) de uma família cuja dinâmica se (con)funde com a do próprio país.

É também no âmbito desse diálogo com a história que o romance Retalhes do Massacre de Batepá (2006), de Teles Neto, se enquadra: trata-se de um romance sobre o Massacre de Batepá, ocorrido em 1953. Também de extração histórica são os romances de Orlando Piedade, O Amor Proibido (2011), Os Meninos Judeus Des- terrados (2014) e Escravos e Homens Livres (2018): estes três romances são narrativas que buscam na factualidade histórica das ilhas de São Tomé e Príncipe matéria diegética, sobretudo nos seus primórdios, com os cruzamentos étnicos e culturais que fizeram a condição colonial e mestiça na invenção da sociedade são-tomense. Cita-se ainda, no âmbito do diálogo com o discurso da história, o romance O Mistério das Sete Pedras (2017), de Manuel Bernardo, que constitui a sua primeira incursão na prosa ficcional, texto que já não potencia uma relação de derivação ou transformação dos textos lidos, como no seu livro de poemas O Silêncio das Águas (2007), mas de um diálogo com o discurso historiográfico mais do que com o discurso sobre o passado. Este romance é claramente uma narrativa histórica sobre o achamento da ilha de São Tomé pelos portugueses, articulando esse acontecimento com a história contemporânea de Portugal e de São Tomé e Príncipe, enquanto se busca a conexão de uma forma menos confrontacional, como nesse trecho em que apresenta Lisboa vivendo «o apogeu da intensa e prospera época ombreando com outras capitais da Europa colonial editando os principais estudos e monografias da ciência e da literatura» (Bernardo, 2017: 94).

E se estes romances se situam numa topografia histórica insular, já o âmbito da história de O Suicídio Cultural (1992), da autoria de Aíto Bonfim — poeta (autor de Aspiração, 2002) e único dramaturgo são-tomense (autor de A Berlinização ou Partilha de África, de 1985, e O Golpe: uma Autópsia, de 1996) —, é do devir histórico africano, tematizando o autor, em qualquer da sua textologia (poesia, romance, drama), a realidade da história para as razões do estado tão pouco celebrável do continente africano. A propósito deste romance, O Suicídio Cultural, disse o autor em entrevista a Michel Laban, em São Tomé e Príncipe — Encontro com Escritores (2002), que a matéria diegética foi extraída da história dos tuaregues passada no Mali, em finais da década de 1970 (Laban, 2002: 398–399). Porém, apesar de a matéria diegética ser de extração histórica, trata-se de um romance político devido à sua pungente contemporaneidade: o estado de fragmentação identitária de muitas comunidades culturais africanas, que o narrador considerará, no final, um “genocídio cultural”.

Como se viu, a mudança político-social de 1975 não resultou numa temática longe da realidade colonial, uma vez que o microcosmos da roça continuou a ser universo tematizado. Mas esse olhar sobre o colonial fez-se — e faz-se — sob pontos de vista muito diferentes, que acompanharam, até, o tempo pós-colonial, como no conto “Preconceito” (2012),10 de Albertino Bragança, em que o processo colonial é autopsiado através do socioeconómico, mas cruzando-o com o eixo sociocultural e psicológico, locus onde se perscrutam os preconceitos e as hierarquias que potenciam conflitos decorrentes da alienação cultural — por isso deste conto disse uma vez representar «preconceitos coloniais, estigmas pós-coloniais» na “Apresentação” da primeira publicação do conto (Mata apud Bragança, 2012: 99).

Citam-se, outrossim, na ficção narrativa são-tomense, nomes de produção intermitente ou que (ainda) não se fixaram na modalidade, como sejam o já citado Frederico Gustavo dos Anjos (Bandeira para um Cadáver, de 1986); Rufino Espírito Santo (A Palavra Perdida e Outras Histórias, 1992, a primeira obra a apresentar, no conto “A Nené e o Tempo”, a dimensão do fantástico, até então ausente na literatura são-tomense); Jerónimo Salvaterra, autor de Tristezas não Pagam Dívidas (1995), uma miscelânea de contos de criação literária, lendas e contos tradicionais republicadas em Butá Cloçon ba Longe (2003), e de Flóli Canido — Crónicas Alinhavadas (2004); Lúcio Pinto, autor de Perdição (2003), conjunto de dois contos; Tomás Medeiros (2003), poeta veterano que publicou O Automóvel do Engenheiro Diakamba, cujo universo, sendo angolano, é representativo da África pós-colonial; a poetisa Goretti Pina, autora de No Dia de São Lourenço/Na Dia Son Leenço: O Encanto do Auto de Floripes (2013), uma narrativa romanesca que, apontando, desde o duplo título (em português e em crioulo lunguyé), para uma feição mormente etnográfica (a descrição das festas tradicionais, o modus faciendi de rituais como vijamento, a representação da convivialidade tradicional da ilhas, de ritmos e danças tradicionais, da música popular, enfim), acaba por ser, também

um processo a fazer-se em entrecruzamentos incontornáveis com o passado para a emergência de um futuro em que sejam efetivamente reconhecidas as grandezas culturais desse país arquipelágico, destacando-se, devidamente, as contribuições fundamentais da Ilha do Príncipe. (Rodrigues e Souza, 2018: 350)

Desse corpus de intermitentes ficcionistas também faz parte a veterana da poesia são-tomense, Alda Espírito Santo, que, em 2002, publicaria Mataram o Rio da Minha Cidade: Estórias, miscelânea de textos dispersos em termos genológicos, temáticos e de intenção, ora literária (como o conto homónimo), ora cronística (como as “Crónicas de emigração”), ora, apenas, primariamente finalísticos, como o são os textos da última parte do livro, “Fabulário de recriação das ilhas”. De qualquer modo, um livro elegíaco em que as memórias da cidade e do seu “rio”, o Água Grande, criam uma ambiência nostálgica que não se refere apenas ao curso de água que desagua na cidade e que então surgia, pela ação do homem, em processo de descaracterização, acompanhando a própria transformação da cidade, metáfora do país.

4.1.Uma modalidade diaspórica da prática literária?


Na verdade, a narrativa são-tomense vem-se atualizando ultimamente incorporando elementos que advêm de práticas ficcionais que se situam para lá da “presença obsidiante do colonial”. Nesta dinâmica de outros olhares, contam-se com vozes e experiências diaspóricas, de que a narrativa seminal neste âmbito é O Menino entre Gigantes (1960), da autoria de Mário Domingues (1899–1977). Trata-se de um romance de identidade, de projeção autobiográfica, escrito quando o autor já teria mais de 60 anos, cuja história se passa na época do que se poderia chamar “colonialismo eufórico”, um romance de maturidade, que ajuda a perceber os meandros da discriminação racial num Portugal imperial em que começam a instalar-se as estruturas coloniais após o Congresso Colonial (1910) e, depois, o Acto Colonial (1930). Interlocutor de grandes nomes da elite dos “filhos da terra” são-tomenses (como Ezequiel Pires dos Santos Ramos, Marcelo da Veiga, Caetano Costa Alegre, Duarte Pinheiro, António Gomes Rocha, Marcos Bensabat, João de Castro), Mário Domingues fez parte da geração do jornalismo contestatário, de que nasce uma literatura escrita associada à ideia de uma nação. E, se uma vez afirmei, de O Menino entre Gigantes, tratar-se de uma narrativa que «constitui a ilustração literária da ideologia colonial» (Mata, 1998: 69), hoje releio esse romance na perspectiva da literatura da diáspora de um autor que reivindica, no lugar de vivência e existência, o reconhecimento de uma identidade étnica que busca romper o monolitismo da nação portuguesa. Ainda no século XX.

Na atualidade, na escrita da diáspora, contam-se os nomes de Gervásio Kayser e de (Maria) Olinda Beja, também poetisa, que, em 1993, publicou o seu primeiro romance que se pode considerar da diáspora, Quinze Dias de Regresso, não pelo facto de a sua gestação literária ocorrer fora do espaço pátrio, mas pela expansão territorial a que se permitem os eventos diegéticos. Essa visão de diáspora prende-se com a de Stuart Hall, para quem a diáspora se baseia

sobre uma concepção binária de diferença. Está fundado sobre a construção de uma fronteira de exclusão e depende da construção de um ‘outro’ e de uma oposição rígida entre o de dentro e o de fora. Porém as configurações sincretizadas da identidade cultural requerem a noção derridiana de différance, uma diferença que não funciona através dos binarismos, fronteiras veladas que separam finalmente, mas são também places de passage (lugares de passagem) e significados que são posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem fim. (Hall, 2003: 33)

Quinze Dias de Regresso é um romance de projeção autobiográfica, narrativa cuja protagonista é (a portuguesa) Olívia que se transmuda em Ximinha, nome com que fora batizada e que recupera nessa primeira viagem de 15 dias a São Tomé — personagem que, tal como a autora, viveu cerca de 40 anos sem saber que tinha raízes em São Tomé: a sua própria mãe! Olívia/Ximinha, cujas lembranças de infância ficaram adormecidas nas camadas subterrâneas da sua dolorosa invisibilidade da sua existência enquanto Olívia —, e nem é despiciendo o facto de se tratar de uma narração em primeira pessoa… Olinda Beja publicaria depois coletâneas de contos, sem esse perfil diaspórico, mas sobre temas diversos do quotidiano das ilhas: Pingos de Chuva (2000) e A Ilha de Izunari (2003), Pé-de-Perfume (2004), Histórias da Gravana (2011), Chá do Príncipe (2017) além do romance A Pedra de Villa Nova e as histórias de A Casa do Pastor (2011) que não são de temática são-tomense e de literatura infantojuvenil.

Embora a poesia continue a ser um género privilegiado, em termos de produção literária são-tomense, a prosa de ficção já não é incipiente, longe de uma qualquer “recessão literária”, como uma vez a caracterizei (Mata, 2010: 91). Pode dizer-se que essa prática tem vindo a participar na construção de um imaginário a partir da literatura — mesmo porque «toda a ficção literária (e, em sentido mais lato, toda a obra de arte), não só é história, como não poderia deixar de o ser» (Saramago, 1999: 5).

NOTAS

1 O artigo continua uma reflexão que vem do ensaio “A prosa de ficção são-tomense: a presença obsidiante do colonial”, incluída em Mata (2010). Em 2019, passou a integrar a obra Heranças pós-coloniais nas literaturas de língua portuguesa, organizado por Margarida Calafate Ribeiro e Phillip Rothwell, pela Edições Afrontamento.

2 António Lobo de Almada Negreiros, pai do poeta-pintor José de Almada Negreiros, usou nos seus escritos os seguintes outros nomes: A. L. de Almada Negreiros, A. N., João Alegre, Jean Allègre, José Colono, António Luzitano. Foi, por exemplo, como João Alegre que o autor publicou o longo poema satírico “Senhor Pão!” (1897). Antes de Equatoriaes publicara em Lisboa, antes de partir para São Tomé, em 1891, Lyra Occidental (1888).

3 Estas últimas narrativas foram motivadas pela viagem do presidente português, o marechal António Óscar de Fragoso Carmona, a São Tomé e a Luanda em 1939.

4 Não é propósito desta reflexão discutir questões sobre a terminologia que deve ser usada neste contexto: literatura, narrativa, relação — em que a estudiosa romena Carmen Radulet discute não apenas o «documento denotativo histórico» (Cristóvão, 1999) como também o género, a função predominante e a temática dos textos. Para o efeito, ver Radulet (1991).

5 Instituição no sentido em que a literatura forma um sistema «que depende de instâncias de legitimação que asseguram à instituição literária estabilidade e notoriedade (as academias, as arcádias, as uniões ou associações de escritores; os prémios literários, o círculo da crítica, ou seja, as notícias, as recensões, os jornais; o sistema de ensino, isto é, os planos curriculares, os programas)» (Mata, 2014: 296).

6 Por seu turno, para Manuel Ferreira, a literatura colonial «nada tem a ver com a literatura das Descobertas e da Expansão; nem tãopouco com a literatura de guerra, e, só em certos casos, com aquilo que designámos por literatura de motivação africana» (1989: 258).

7 Sum Marky, “Angelina”, in Amândio César, Contos Portugueses do Ultramar, Porto, Portucalense Editora, 1.º vol., 1969.

8 Alves Preto, “Um homem igual a tantos”, Mensagem, ano II, n.º 2 (fevereiro de 1959), Lisboa; “Aconteceu no morro”, Mensagem, ano II, n.º 5–6, 1960, Lisboa. Estes contos foram recentemente reproduzidos em Mata e Silva (2018).

9 Sacramento Neto é autor de: Tonga Sofia (1981), Milongo (1985), Peneta (1989), A Rainha (1992), O Testamento de Cristina (1995), Vovó Marquinha (1998), A Codé (2000), Alma Gémea (2001), Camarada Paulino (2002), A Passionária (2003), O Mediatário (2004), A Noiva (2004), João Menino (2006), A Diva (2006), Vale Carmo (2007), A Grande Opressão (2008), Remissão (2009), Sipaio Chefe (2011) e Emma (2012).

10 Este conto foi primeiramente publicado no 2.º tomo da Antologia Crítica da série O Conto na Lusofonia 2 (coordenado por Maria Isabel Rocheta e Margarida Braga Neves, Lisboa: CLEPUL/FLUL, 2012, 99–114). Foi depois inserido na coletânea Preconceito & Outros Contos, Lisboa: Edições Colibri, 2014.

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[i] Professora de Literaturas, Artes e Culturas (LAC) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, investigadora do Centro de Estudos Comparatistas (CEComp/FLUL) e diretora do Doutoramento em Português Língua Estrangeira/Língua Segunda. É doutora em Letras pela Universidade de Lisboa e pós-doutora em Estudos Pós-coloniais (Postcolonial Studies, Identity, Ethnicity, and Globalization) pela Universidade de Califórnia, Berkeley. Atua, no ensino e na investigação, principalmente na área dos estudos pós-coloniais, e interessa-se pelos seguintes temas: literaturas e culturas africanas, relações estéticas entre literaturas em português, literatura-mundo, estudos de memória, produção literária de autoria afrodescendente em Portugal e comunicação intercultural. Professora visitante de muitas universidades estrangeiras, é igualmente membro do Conselho Editorial e Científico de muitas revistas de especialidade, nacionais e estrangeiras.

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