Vovó Marquinha, de Sacramento Neto: uma narrativa de memórias[1]

Inocência Mata[i]

                                                                               (...) na ideologia do nosso tempo, a referência obsessional ao “concreto” (...) está sempre armada como uma máquina  de guerra contra o sentido, como se, por exclusão de direito, o que vive não pudesse significar – e reciprocamente.
(Roland Barthes)

 

É consensual, quase unânime, a ideia de que ao escritor não compete representar o mundo, mas fazê-lo significar. Aristóteles, na sua Poética, dizia que

Não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta (...) em que diz um, as coisas que  sucederam, e outro as que poderiam suceder. (Aristóteles, cap. IX).

Por isso, cabe aqui, em primeiro lugar, dizer desta narrativa, Vovó Marquinha, que ela não é sobre a família de Dona Maria Alves, nome para que remete logo a Vovó Marquinha, nem sobre pessoas reais que fazem parte da “comunidade clânica” dessa senhora que muitos conhecem e com a qual conviveram. A natureza da literatura é ficcional e, se assim não o fosse, o escritor (poeta, romancista, novelista ou dramaturgo) escreveria ensaios, faria pesquisa histórica ou sociológica, pugnaria pela verdade e não pela verossimilhança. Quando uma obra de ficção se constrói com fiapos de factos, o leitor pode ser impelido a querer a verdade, perdendo a perspectiva ficcional e da imaginação, que é o que mais deve interessar em arte. No entanto – e resgato a epígrafe com que abro esta reflexão -, há que ter em conta que “(...) na ideologia do nosso tempo, a referência obsessional ao “concreto” (naquilo que se pede retoricamente às ciências humanas, à literatura, aos comportamentos) está sempre armada como uma máquina de guerra contra o sentido, como se, por exclusão de direito, o que vive não pudesse significar – e reciprocamente” (BARTHES, 1988: 163).

Do mesmo modo, também como leitora não pretendo confrontar a minha leitura com as ideias (concretas) do escritor (personagem empírica) – e neste momento sou apenas uma leitora, uma leitora-crítica, é certo, mas não mais do que uma leitora. Não seria saudável, seria temerário até, porque não seria um comentário textual, e nem valorizaria o livro como obra de arte, de ficção em primeiro lugar, para depois ser testemunho, o que esta novela também é.

Detenha-se, pois, no texto:

Esta é uma narrativa que oscila entre o memorialismo e a ficcionalidade, ou melhor, entre a memória e a ficção autobiográfica, com uma derivação para a saga de uma família. Antes de explicar esta oscilação (ou o que eu considero ser uma oscilação), falemos da novela: é a história da família de Vovó Marquinha durante três gerações. Através desta história, percorre-se a História do país, os processos da segunda colonização, em flash-back– numa retrospectiva que se reporta também ao período da primeira colonização, da sociedade escravocrata, dos séculos XVI-XVII-XVIII, como acontece nos capítulos iniciais (nas páginas 1-3 e 25-26, respectivamente) pontualmente e outras sequências da narrativa; a sobrevivência da elite dos filhos da terra (referida como “famílias-bem”, p. 23, uma designação assaz polémica...); dessa elite espoliada pelos novos colonos da monocultura do café e do cacau, dos seus esquemas de expropriação das terras dos naturais, as motivações socioeconómicas do massacre de Batepá de 1953, as sugestões de um posicionamento nacionalista, a viragem que resultou dos ventos da independência, as aspirações quanto à construção de uma sociedade “ideal, homogénea e equilibrada” (p. 127) e as expectativas que se pressentiam frustradas no novo regime político instaurado no país. O final da novela é o início de um novo ciclo sobre o qual às expectativas  são muito elevadas, mas numa escrita com um “passo de presunção”, em que o narrador omnisciente, que funciona também como autor textual, faz coincidir a sua visão judicativa sobre o novo regime com a visão geral (o que não deixa de ser inverossímil no contexto do enredo e temerário em sentido “além–textual”):

Sem sofrer espera, a construção, nas Ilhas, de uma nova sociedade logo arrancou mas, infelizmente, sob inspiração destrutiva do socialismo marxista, o repulsivo violador dos direitos humanos. Comícios que se sucederam com regularidade, não visaram, como era de esperar, auscultar o pensar e o sentir de toa a população, mas limitaram-se a impor decretos despóticos. O malogro revelou-se, desde o início, tremendamente trágico!! (Neto: 1999, 133).


Mais: a reconstrução do solar da Quinta d’Alegria remete, simbolicamente, para a reconstrução do país, porque, em toda a narrativa, o solar concentra em si a semântica do espaço insular, tanto a nível de composição étnica como sociocultural. Com efeito, a cena inaugural é a da Quinta d’Alegria em que vivia Dona Maria Alves, a Vovó Marquinha e a sua serva privada, Má Canjá, num casarão senhorial (o que vale dizer, no contexto, colonial), e que, não obstante a sua precária situação financeira, conserva o estatuto de Senhora a quem outras personagens prestam a mais absoluta lealdade: Mona, Sum Mé Piã, sua amiga San Tété, e seus filhos Adelina e o próprio Plácido (cujo roubo do andim, o dendém, fora perdoado, tornando-se o ladrão em trabalhador assalariado), as irmãs Noémia e Hermínia (que se tornará sua nora) e outros habitantes da Trindade.

A influência do solar expande-se da Trindade, a Obô Izaquente e a Quinta das Dores e à vila da Madalena. Este local, a vila da Madalena, funciona como lugar simbólico de espoliação da elite dos filhos da terra, porque foi aí, numa festa em homenagem à padroeira Santa Maria Madalena de Unguento, que o marido de San Tété, então Senhora Dona, fora apanhado nas malhas do poder colonial, condenado ao degredo em Angola, por causa do qual perde tudo, ficando a família numa situação de extrema pobreza (Neto: p. 16). O espaço que a Quinta d’Alegria metonimicamente representa é uma síntese étnica e socioeconômica das ilhas: moradores, forros, contratados e ex-contratados mesclam-se nesse quotidiano feito de pequenos conflitos e alegrias. A própria Vovó Marquinha realiza essa síntese, cuja referência deixa entrever, no entanto, uma visão muito preconceituosa do estético. Dela diz o neto-narrador:

[Ela tinha] o nariz afilado e ligeiramente adunco, que acusava a sua ascendência judaica.
(...) Apesar da pele escura, a verdade era que Marquinha descendia das crianças judias e dos mestiços influentes a que tinham dado origem. (Neto: 1999, 9).


Portanto, o solar é apresentado segundo uma visão cosmorâmica a partir do núcleo familiar da Quinta d’Alegria, o que faz desse lugar um símbolo do espaço insular. E essa minha leitura é reforçada por pequenas unidades de sentidos (lexias) que amplificam o funcionamento metafórico desse núcleo familiar. Como, por exemplo:

Foi logo nas primeiras horas da madrugada que a sereia do vapor que transportava Joaquim soou. Fez ouvir um ronco apocalíptico, que assombrou e alvoroçou todos os habitantes da ilha. (Neto: 41. Meu sublinhado).


O sublinhado é meu e pretende desvelar a força expansionista dos eventos referentes a esse núcleo familiar que se erige, pela força simbólica do seu percurso, a uma representação colectivizante.

O autor recorre a estratégias de memorialismo, entrelaçando, por um lado, facto e ficção, mas colando-se muito ao real histórico, e, por outro, uma escrita memorialista, autobiográfica e confessional, ficando os seus limites diluídos. Mesmo porque esta novela apresenta dois momentos bem distintos.

Falemos, pois, da construção narrativa de Vovó Marquinha.

Esta sexta novela de Sacramento Neto inaugura uma nova fala narrativa na sua bibliografia[1] e na são-tomense: o registo autobiográfico – melhor, talvez mais o registo biográfico. Trata-se de uma narrativa em dezanove segmentos (capítulos) em que se notam nitidamente dois momentos, sendo o primeiro (os doze primeiros capítulos) o do registo narrativo que actualiza a história de Joaquim, o tio do narrador-personagem, filho varão de Vovó Marquinha, em quem ela e a família concentram os sonhos de reabilitação e afirmação familiar e da elite através de um curso superior como qual todos esperam reconhecer-se. Desfeito o sonho (porque Joaquim regressa sem qualquer curso e tuberculoso, acabando por falecer), a história abre-se a um outro momento, em que o sonho de Vovó Marquinha se concentra, doravante, no neto, cuja vocação para a vida religiosa se verifica no primeiro segmento do segundo momento, isto é, no capítulo treze:

A par das novidades amargas, emergiam também, de vez em quando, na nossa fazenda, algumas de sabor agradável. A minha vocação para padre foi uma delas. (Neto: 102).


Estamos, assim, perante uma narrativa que se apresenta como uma (mini) saga familiar, com três figuras nucleares, das quais uma, Vovó Marquinha, faz a ligação entre duas gerações, a do filho e a do neto. Estas duas figuras principais disputam a cena principal, porque uma continua a função que a outra não cumpriu, passando de figura satélite, para figura principal, num segundo momento. O narrador, agora autodiegético, continua a contar um percurso de vida, com projectos e expectativas, em que são ficcionados fragmentos da História mais recente do país. Mas, agora, o registo deixa de ser de uma vida vivenciada, de fiapos de um quotidiano alimentado feito de trabalhos e alegrias, mas de informações menos colectivizantes e mais individualizantes. E, como registo autobiográfico, é um texto perpassado pelo memorialismo, cujas marcas se podem ver no tom confessional, sobretudo na segunda parte da novela, e na subjectividade (que se vê no discurso em primeira pessoa) – embora se possa pensar que esse confessionalismo possa ser ficcional: nunca é demais repetir que a literatura não tem de ser verdadeira, tem é de ser verossímil!

Deflagrada a confissão, a narrativa flui, sem rupturas, entre os planos de subjectividade (do “eu”) e da objectividade (do “não eu”), fazendo com que o texto comece a ganhar identidade cronística (e “historiográfica”). Com efeito, se a partir do quarto capítulo a voz narrante se percebe como a de um narrador participante difuso mas omnisciente, a partir do final do décimo segundo segmento essa voz já vai anunciando como que outro centro da narrativa:

Quando nos foi comunicada a resolução que nos fazia mudar para a roça, reagimos com uma efusiva alegria. Preferimos a liberdade da vida rural ao comedido viver citadino. Doidos de contentamento, os três irmãos, fomos entregues, por tempo ilimitado, à responsabilidade da nossa avó Marquinha.
Extraordinariamente maternal, a vovó Marquinha revelou-se-nos a mais carinhosa avó do mundo. Em sua companhia, na Quinta, preenchendo o lugar deixado vago pelo tio Joaquim, frequentávamos a escola primária da vila da Madalena, a uns três quilómetros distante de Obô Izaquente. (Neto: 96-97)


E, a partir daqui a narrativa fica focalizada no menino, Horácio. Isto é: toda a história vai desenvolver-se através dos olhos de Horácio, menino e adulto: a fermentação nacionalista, a repressão colonial, a vida no exílio, o regresso à Ilha Verde, a expulsão. Mas grande parte da História das ilhas, o narrador apresenta-a segundo uma visão “de fora”, porque a informação lhe chega por via epistolar.

De substituto do tio Joaquim, a personagem Horácio vai-se assumindo como a voz da memória de uma família cujo percurso se confunde com a História das Ilhas.

Porque a novela corre bastante colada ao real, numa obsessão do verdadeiro, o que pode levantar questões sobre a veracidade das figuras reais e dos acontecimentos e situações recebidos como factuais (e já não como ficcionais). Porém, também pode “prejudicar” a recepção da obra como ficção, que é o que deve ser e parecer em primeiro lugar apesar de ser um mergulho na História de São Tomé e Príncipe segundo uma determinada perspectiva, é verdade, mas talvez tão válida quanto outra qualquer. E se, como diz o poeta romântico alemão Novalis[2], em poesia, vale dizer em ficção, o caos deve transparecer sob o manto cerrado da ordem, então este livro cumpriu, pelo menos um propósito: servir de contraponto a outras perspectivas sobre a História, o que certamente contribuirá para ampliar a realidade porque estimulará a discussão sobre o conhecimento da História de São Tomé e Príncipe.

NOTAS

1 Este texto, é, basicamente, a apresentação na sessão de apresentação do livro, no dia 28 de Maio de 1999, no Auditório do Centro do Colégio de D. Maria Pia da Casa Pia de Lisboa. Em 2010 passou a integrar a obra Polifonias insulares: cultura e literatura de São Tomé e Príncipe.

2 A bibliografia de Sacramento Neto consta dos seguintes títulos: Tonga Sofia (1981), Milongo (1985), Peneta (1989), A Rainha (1992), O Testamento de Cristina (1995), A Codé (2000), Alma Gémea (2002), Camarada Paulino (2002), A Passionária (2003), O Mediatário (2004), A Noiva (2004), João Menino, A Diva (2006), Vale Carmo (2007), Irmão de Leite (2008), A Grande Opressão (2008), Remissão (2009).

3 A.A.VV. A Poesia, Lisboa: Editorial Inquérito, 1991, p.40.

Referências

A.A.VV. A Poesia, Lisboa: Editorial Inquérito, 1991.

ARISTÓTELES, Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 2ª ed., 1990.

BARTHES. Roland. O rumor da língua (1984). São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

NETO, Sacramento. Vovó Marquinha. Cruz Quebrada: Edição de autor. Col. Ficção Africana/6,1999.


 [i] Professora de Literaturas, Artes e Culturas (LAC) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, investigadora do Centro de Estudos Comparatistas (CEComp/FLUL) e diretora do Doutoramento em Português Língua Estrangeira/Língua Segunda. É doutora em Letras pela Universidade de Lisboa e pós-doutora em Estudos Pós-coloniais (Postcolonial Studies, Identity, Ethnicity, and Globalization) pela Universidade de Califórnia, Berkeley. Atua, no ensino e na investigação, principalmente na área dos estudos pós-coloniais, e interessa-se pelos seguintes temas: literaturas e culturas africanas, relações estéticas entre literaturas em português, literatura-mundo, estudos de memória, produção literária de autoria afrodescendente em Portugal e comunicação intercultural. Professora visitante de muitas universidades estrangeiras, é igualmente membro do Conselho Editorial e Científico de muitas revistas de especialidade, nacionais e estrangeiras.

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