A poesia de Conceição Lima: o sentido da História das ruminações afectivas  [1]

Inocência Mata[i]

As palavras do poema constituem uma espécie de exorcismo do demônio.
(Massaud Moisés)

Autora de dois livros de poesia recentemente publicados – O Útero da Casa (2004) e A Dolorosa Raiz do Micondó (2006) – Conceição Lima era já um nome conhecido na literatura são-tomense, pela muita poesia dispersa em antologias, jornais e revistas, de especialidade e generalistas. Por isso, pode dizer-se que a publicação, em 2004, do seu primeiro livro resultou da urgência em reunir alguma poesia inédita. Neste primeiro livro são recuperados poemas já publicados, alguns dos quais transitando por mãos de amigos (muitos deles nas mãos da autora do presente texto), que entretanto foram modificados para integrar o livro em questão, O Útero da Casa. No entanto, grande parte deste livro compõe-se de poemas inéditos, conforme já indicado no prefácio. E, com este livro, Maria da Conceição Deus Lima, poetisa-jornalista natural de Santana, ilha de São Tomé, inscreveu o seu nome como uma das vozes mais originais da poesia africana de língua portuguesa, lugar confirmado com o seu segundo livro, A Dolorosa Raiz do Micondó, em que a poetisa retorna à história, à geografia e à mitologia política, não apenas do país, como no primeiro livro, mas de África, instaurando, a par do culto de uma identidade panafricana, uma pesquisa às raízes ancestrais da insula equatoriana, na contramão dos defensores da rarefacção identitária, neste período pós-colonial dominado pela dinâmica canibalizante da globalização.

Talvez por ser o primeiro, O Útero da Casa parece cumprir uma função primeira: a de reorganizar a afectividade da autora e a sua relação com o passado. Eis porque não tenho dúvidas em afirmar que os vinte e oito poemas de O útero da casa - que constituirão “objeto” desta incursão analítica - são “fustigados” por um demônio, o da memória, que tem de ser exorcizado[2]. Com eles, a autora parece querer apaziguar-se com a sua memória política, cultural e afectiva. Como se, no dealbar de um certo percurso histórico e pessoal, o tempo funcionasse como estímulo de uma série de circunstâncias que os poemas tornam explícitas.

É que parece existir em O Útero da Casa uma dinâmica temporal em dois movimentos: o passado e o presente em actividade rememorativa. Dinâmica que se projecta no futuro, em nostalgia em relação a um tempo por vezes não vivido no passado, porém que o sujeito quer recuperar, discorrendo, neste balanço, pelos trilhos de uma linguagem testamentária (é aos filhos que a poetisa se dirige), no final dessa viagem:

Quando de mim emigrar
Tudo o que sou
E o que não tendo sido, fui

Quando eu já não for
(...)
Quando a madrugada vier
(...)
Quando o mar quedar suspenso
(...)
Quando à casa regressar
(...)

                                   (“Poema”)


Pode ler-se esta poesia como um “acerto de contas” do sujeito consigo próprio, uma mineração de memórias, por vezes magoadas, pelo menos à distância, prenhes de um travo amargo, como que a fazer a catarse do tempo de ilusão (pelas opções pessoais) e de utopia que foi a crença em todas as transformações. É como se, no acto de escrever, o “eu poético” percorresse um roteiro catártico, no fim do qual o sujeito constituiria uma “Residência” e nela reencontrasse tanto os seus ancestrais (a avó, Sam Nôvi, e o pai) como os seus filhos – afinal, a certeza da continuidade, metaforizada no fluxo das “águas eternas”. Vejamos ainda o poema intitulado “Poema”:

Da trouxa dos dias guardarei ainda
O murmúrio das preces e a vigília
A obstinada memória das águas eternas.

Vejo, por isso, na organização desta antologia – que é da responsabilidade da autora -, uma lógica que corrobora a afirmação do crítico brasileiro Massaud Moisés que, em A Criação Literária (1967), resume a consensualidade que existe quando ao acto da criação literária e a uma das funções da literatura, aqui na perspectiva do “criador”:

O discurso poético resulta de uma purgação do escritor, uma vez que este projeta no texto os seus “demônios interiores”: ao vazar em palavras o conteúdo de sua imaginação, o criador de arte livra-se do “peso” incômodo dos subterrâneos psíquicos. (Moisés, 1989: 144).


Nesse processo de vazamento rememorativo, a poesia resulta ora não contida, pungente e corrosiva não raro, feita de linguagem de transbordante ludismo retórico, ora sussurrante e em “voz de câmara”, nas palavras da própria autora[1]. Nesse descompasso, que resulta do estado de puro enfurecimento e perplexidade face aos acontecimentos do país o equilíbrio entre o sobredito e o entredito é, por vezes, desigual, acabando, de certa maneira, por desorientar a imaginação crítica. A significação tece-se de muito subentendidos que se reportam à História, como neste poema “A herança”, que, sem parcimónia, transcreverei na íntegra:

Sei que buscas ainda
o secreto fulgor dos dias
anunciados.
Nada do que te recusam
devora em ti
a memória dos passos calcinados.
É tua casa este exílio
este assombro esta ira.
Tuas as horas dissipadas
o hostil presságio
a herança saqueada.
Quase nada.
Mas quando direito e lúgubre
marchas ao longo da Baía
um clamor antigo
um rumor de promessa
atormenta a Cidade.
A mesma praia te aguarda
com seu ventre de fruta e de carícia
seu silêncio de espanto e de carência.
Começarás de novo, insone
com mãos de húmus e basalto
como quem reescreve uma longa profecia.

Sabendo que o poema é dedicado “à Pepé e ao Rufino”, dois grandes amigos da poetisa, a imaginação crítica convoca algum laivo de cumplicidade política e ideológica de tempos passados, naqueles em que buscavam “o secreto fulgor dos dias anunciados”, que resultaria em “herança saqueada”, o que, afinal, já estaria nos sinais do “hostil presságio”. Por isso, hoje, é preciso começar de novo, “como quem reescreve uma longa profecia”. Tal previsibilidade do desencanto, cujos sinais não foram entendidos, também se retoma em “Sabemos agora”:

Sabemos agora que a Praça é minúscula
A extensão da nossa espera
Nunca coube em tais limites

Afinal, as duas cadências deste percurso poético de Conceição Lima – a intimista e a histórico-social -, trilham um sentido mais ideológico, em que o sujeito “reage” a pressões externas, provenientes da crua visão do estado do país e do modus operandi dos governantes, como em “Roça”:

Perguntam os mortos:

          Porque brotam raízes dos nossos pés?
          Porque teimam em sangrar 
          Em nossas unhas
          As pétalas dos cacaueiros?

          Que reino foi esse que plantámos?

Este poema de doloroso balanço da História representa um dos muitos que actualiza este tema da roça, um dos lugares mais insistentes na poesia de Conceição Lima e que continua no livro seguinte, A Dolorosa Raiz do Micondó. Na verdade, quase se pode dizer que este é um dos seus demónios, a denúncia de uma comunidade que tendo lutado pela sua libertação, acaba por reduzir à condição de apátrida parte dos seus membros:

Kalua

            Aos meus irmãos, os netos de Sam Nôvi,
           que saberão porque lhes dedico este poema

Teu nome tão breve e tão outro
Sem nenhum adorno
Tua voz tão prestes, tão pouca Budo-Budo
Tua saia de riscado, de pano soldado
Tua ração de úchua, teu peixe salgado
Teu jeito de dizer parana em vez de banana

Tuas mãos delgadas, meninas
Tão mãos, tão servas, multiplicando as horas
Teu canto de além-mar e de ilha
Tua estatura anciã na saudade detida

E Magaída, tua filha
que nunca a Moçambique foi e diz quixibá

Mas também subsiste, a par desse olhar de apetência epopeica, outra cadência mais intimista, em que se mesclam vozes de felicidade que intentam reverter a apetência para a nostalgia regressiva, e em que perpassam paisagens visando neutralizar a nostalgia do tempo de ilusão:

Aqui projectei a minha casa:
alta, perpétua, de pedra e claridade.
(...)
Sobre os escombros da cidade morta
projectei a minha casa
recortada contra o mar.
Aqui
Sonho ainda o pilar –
uma rectidão de torre, de altar.
Ouço murmúrios de barcos
na varanda azul.
E reinvento em cada rosto fio
a fio
as linhas inacabadas do projecto.

Pela rememoração ou reinvenção de lugares felizes são convocados valores que se pretendem perenes e condizentes com o bem-estar societário. Nesse movimento, mais dinâmico nos primeiros poemas da colectânea, imagens líricas da realidade transformam-se em corrosivas e antilíricas, pois o sujeito, que parecia celebrar esse tempo, não se acomoda à desilusão: é o que se pode ler no poema “1975”, cujo título aponta, a priori, para a celebração da independência[1], uma ideia que é enfatizada pela dedicatória, “à geração da Jota”: JMLSTP, “braço jovem” do MLSTP, partido da independência e do regime monopartidário, organização juvenil a que a autora pertenceu. Porém, o poema começa pela negação de uma mudança real:

E quando te perguntarem
responderás que aqui nada aconteceu
senão na euforia do poema.

O sujeito enunciador continua essa negação de que desresponsabiliza a “Juventude”,

                       Diz que éramos jovens éramos sábios
                       E que em nós as palavras ressoavam
                       como barcos desmedidos
                       Diz que éramos inocentes, invencíveis
                       e adormecíamos sem remorsos sem presságios


E termina num tom de perfeita disforia:

                       Oh, sim! Éramos jovens, terríveis
                       mas aqui – nunca o esqueças – tudo aconteceu
                       nos mastros do poema.


- a querer significar que a festejada independência aconteceu apenas a nível desiderativo (o poema como expressão de uma utopia), a nível simbólico (a bandeira hasteada no mastro), e não a nível histórico, pois “nada aconteceu”. E, porque nada aconteceu,

                       
                       Na raiz da praça
                       sob o mastro
                       ossos visíveis, severos, palpitam.
                       Pássaros em pânico derrubam trombetas
                       recuam em silêncio as estátuas
                       para paisagens longínquas.
                       Os mortos que morreram sem perguntas
                       regressam devagar de olhos abertos
                       indagando por suas asas crucificadas.


Linguagem corrosiva a compor uma visão da praça onde se expõem ossos que palpitam, pássaros em pânico, estátuas em silêncio, mortos insepultos e perguntas incómodas... Daí a necessidade de convocar outros símbolos da resistência, mesmo se de outra resistência, a de séculos remotos, protagonizada por ícones como Amador, para, através deles, se proceder à “segunda revolta”, a fim de mudar o status quo actual – que a independência não logrou alterar:

                        Segunda revolta de Amador

                       De novo as nuvens
                       cobrirão o pico
                       e os homens marcharão
                       sobre a planície.

                       De novo imprevistas
                       subirão as marés
                       as folhas mortas
                       e os passos perdidos.


Por isso, também uma “Proposta”:


                      Apaguem os canaviais, os cacauzais, os cafezais
                      Rasurem as roças e a usura de seus inventores
                      Extirpem a paisagem da verde dor de sua íris
                      E eu vos darei uma narrativa obliterada
                      Uma esparsa nomenclatura sedenta de heróis

A par desse movimento de afectos, particularmente a partir do poema “Em Santana”, em que o elemento dinamizador do sentido é a vivência, a autora potencia os lugares não corroídos pelos atropelos do processo histórico, fragmentos que resistiram e vêm resistindo e pelos quais o “eu lírico” se vai alimentando e rumando na contramão do agravamento da nostalgia que tende a subjugá-lo: “Em Santana, noite e dia/ A praia é um corpo erguido que se amotina” (“Em Santana”). Esta poesia alimenta-se, assim, do contraponto entre a destruição do sonho, a exposição de mágoas até então caladas pelos preceitos da oportunidade, a recuperação de fiapos de lembranças felizes do tempo de euforia e da memória de uma vivência feita não apenas de afectos mas de acção formativa. Faz-se a reavaliação do passado, de que resulta a consciência de que aquele tempo, afinal, já continha “presságios hostis”. Daí que a poesia de Conceição Lima, de extracção memorialista e de contaminação histórica, intente (ou resulte em), a re-significação do passado urdido com nostalgia. Por ela se convocam heróis da resistência (como Amador), figuras lendárias (como Daimonde Jones), emblemáticas da cultura (como Protásio Pina) e figuras dos seus afectos (os avós, os pais, os irmãos, os filhos e os amigos, cujos nomes estão disseminados tanto nas dedicatórias como nos poemas), para preencher os vazios deixados pela incomodidade face a um tempo afinal prenhe de dores pessoais e mágoas socio-políticas omitidas do discurso, em tempo de desarmonias fracturantes até então não desveladas em outras vozes poéticas destas ilhas do Equador – com a devida excepção de Aíto Bonfim, um dos afectos da poetisa, convocado em “Vila Maria número 6”[1].           

Não se pense, porém, que a poesia de Conceição Lima transgride a “tradição literária”, aquela que emerge do discurso da são-tomensidade (literária). Escrevendo em contexto pós-colonial, Conceição Lima resgata e, criticamente, revitaliza o discurso da dignificação do homem são-tomense, denunciando a precariedade social e reafirmando a sua identidade “afro-insular”. Tomando o (ex-)contratado como o paradigma do ilhéu em situação precária, a sua coreografia poética realiza também a encenação da diferença, entre a cadência catártica e a rítmica afectiva de vivências. Pode dizer-se que, desde “Proposta”, em que se propõe uma outra narrativa (da nação, entenda-se), o sujeito enunciador quer resgatar segmentos e tempos omissos dessa narrativa, como Daimonde Jones e Kalua (ex-contratados moçambicanos) e seus descendentes, os tongas (Magaída) – que representam todos aqueles que consumiram a vida nas roças de São Tomé e Príncipe e sempre se mantiveram marginais à sociedade colonial. Hoje, porém, reclamam a sua pertença que pelo conhecimento da “ilha profunda”, no caso de Daimonde Jones,

Não reside em Santa Margarida nem em Porto Alegre
nem na Aldeia Murça nem em Água Izé
O coração da cidade o acolhe e o repele

quer pela nativização reproduzida: “E Magaída, tua filha/ que nunca a Moçambique foi e diz quixibá (“Kalua”).

Essa celebração da outridade são-tomense atinge o seu momento apostrófico em “Manifesto imaginado de um serviçal”. De novo, o contratado como figura emblemática da marginalidade social e do desenraizamento cultural, tal como em “Romance de Sinhá Carlota”, de Francisco José Tenreiro (Ilha do Nome Santo, 1942) ou “Avó Mariana” (1963), de Alda Espírito Santo. No entanto, a inovação de Conceição Lima reside no facto de os “irmãos” são-tomenses, a quem se dirige o serviçal terem de partilhar responsabilidades nesse processo de marginalização: “Trazei-me os silêncios todos que percorri/ Mostrai-me os caminhos que não trilhei mas construí/ Celebrai-me anónimo na praça que não verei mas antevi”, diz o serviçal, denunciando a sua recusa ao silêncio. Reivindica o seu direito ao chão nacional: a voz do sujeito poético funde-se com a da “personagem” do drama histórico. Trata-se, na verdade, de um poema dramático em que o enunciador interpela directamente aqueles que são responsáveis pelo seu destino de apátrida, proclamando a sua pertença ao chão são-tomense:

Chão inconquistado, chama-me teu que sobre minha fronte se
esvai a lua esburacada na sanzala. Não mais regressarei ao Sul.
Morador interdito, ficarei nas tuas entranhas. Aqui, onde tudo
dei e me perdi. Morro sem respirar o hálito de uma outra cidade
que adubei.
(...)
Pelo mar viemos com febre. De longe viemos com sede.
Chegámos de muito longe sem casa.
Dai-me a beber agora a marga infusão do caule do aloé, quero
esgotar o cálice do nosso calvário.
(...)
Ilhas! Clamai-me vosso que na morte
não há desterro e eu morro. Coroai-me hoje
de raízes de sândalo e ndombó
Sou filho da terra.

Nesta interpelação directa, a poesia de Conceição Lima dialoga não apenas com a de Alda Espírito Santo, mas ainda com a de Francisco José Tenreiro ou de Manuela Margarido, em que a presença do serviçal ou do contratado, quando acontecia, sempre foi silenciosa. Poemas como “Serviçais”, de Manuela Margarido, “Romance de Sam Márinha”, “Romance de Nhá Carlota”, de Francisco José Tenreiro, ou “Avó Mariana”, de Alda Espírito Santo, diferem nesse direito restituído ao contratado como pertença à nação.

Essa afirmação lapidar de pertença funciona como um canto à harmonização entre segmentos que se cruzaram nas ilhas. Em “Os rios da tribo”, há o elogio da mestiçagem e o resgate de segmentos a que foi sonegado o estatuto de cidadania no rio multicultural da são-tomensidade: no poema reverberam nomes de todas as proveniências, nomes que funcionam como metonímias do corpo nacional – forro, minuiê, “inglês preto”, angolar, tongas de Cabo Verde, de Angola, de Moçambique -, enquanto o leito da nação se faz da negociação participativa desses outros. Esse cruzamento – fragmentos de África e da Europa – não pode, porém, nivelar diferenças ou rasurar a dimensão da outridade. Já se sabe que a escrita literária é, em si, fundadora de mitos que se transformam em realidade, com seu quadro de referência, códigos e valores axiológicos. Por isso, a fronteira entre o ficcional (literário) e o histórico é ténue e tende a esbater-se de encontro ao domínio da probabilidade ou da possibilidade de um outro passado de ocorrências, outras verdades e uma inflexão no sentido da história – o que significa uma nova perspectiva do passado e uma nova prospectiva do futuro. Assim, tal como dístico final de “Corpo moreno” (Coração em África, 1967), de Francisco José Tenreiro, resume a “afroinsularidade” são-tomense – “És tu minha Ilha e minha África/ Forte e desdenhosa dos que te falam à volta” – também em “Afroinsularidade”, o dístico inicial resume outra visão da História das ilhas: “Deixaram nas ilhas um legado/ de híbridas palavras e tétricas plantações”. Porém, enquanto a celebração das origens mestiças, em Franciso José Tenreiro, é eufórica, em Conceição Lima é vista como “ferramentas do império” e, em tom elegíaco, o segmento negro-africano é erigido a força motriz no processo de construção societária:

Nas naus trouxeram
bússolas quinquilharias sementes
planta experimentais amarguras atrozes
um padrão de pedra pálido como o trigo
e outras cargas sem sonhos nem raízes
porque toda a ilha era um porto e uma estrada
sem regresso
todas as mãos eram negras forquilhas e enxadas

Não existe, diferentemente do que acontece na poesia de Franciso José Tenreiro, sobretudo no emblemático poema “Ilha de nome santo” – reeditado vinte anos depois em “Corpo moreno” –, uma celebração eufórica do encontro Europa/África, mas apenas a constatação desse encontro, que também foi cultural, a que se seguiu, por via das estratégias de resistência, o reencontro das componentes diversificadas e sintetizadas pelo tempo (e o modo), insular e que o sujeito “percepciona” de forma tão intimista:

Às vezes penso em suas lívidas ossadas
seus cabelos podres na orla do mar
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira. 
             (“Afroinsularidade”)


Este diálogo na contramão com Franciso José Tenreiro é evidente (e de forma pungente e enfática em A Dolorosa Raiz do Micondó), pela denúncia do olhar homogeneizante do nacional e pela exposição de outros segmentos que fazem parte da nação, mas que tanto o discurso colonial (literário e historiográfico) quanto o discurso nacionalista (literário e político) mantiveram omitidos[1]. Nesta narrativa, o sujeito que é comportamentalmente lírico, consegue encontrar um equilíbrio entre a realidade histórica e a visão subjectiva desse real, construindo o seu saber a partir dessa visão e sobrepondo o sentido de justiça e de racionalidade histórica às emoções e afectividades construídas pela “cultura social” e pela “ideologia cultural” prevalecentes. Mesmo tratando-se de uma visão pessoalizada de um tempo histórico que expressa, ao mesmo tempo, a perspectiva desse tempo, esta poesia é, e não apenas neste campo, um grito contra a “ordem” pós-colonial, ao pôr em contraste o ideal e o real. Pode dizer-se, por isso, que a poesia de Conceição Lima, como a de Aíto Bonfim, no que diz respeito à internalização do olhar sobre as relações de poder e seu modus operandi, tem vindo a registar os diferentes olhares sobre o tempo pós-colonial: no primeiro caso, o reagenciamento identitário, trançando cartografias diferentes, consoante o lugar de onde se olha o país, numa altura da sua história em que, de novo por razões socio-económicas, o contacto com o Continente se vem presentificando.

A significação desta poesia faz-se, portanto, por via do interseccionamento do plano objectivo, que integra a memória da História, e do plano subjectivo, que movimenta a temporalidade de dores e alegrias pessoais, expandindo as suas amizades e reoxigenando os seus sonhos e laços familiares (leiam-se os poemas “Regaço de upa” e “Residência”). Ao mesmo tempo que minera perplexidades e insatisfações ideológicas, também exorciza as mágoas pessoais, aquelas que avieram, sobretudo, de perdas viscerais (como a perda da avó e do pai), para encontrar em outros pontos desse percurso de vida uma plena e serena harmonia, como em “Vila Maria número 6”: é aí, na casa número 6 de Vila Maria, que o “estar” da poetisa se torna “ser”, sendo tudo neste momento mágico, homem e natureza se (re)conciliando para gerar a harmonia cósmica... Então é momento de recuperação das “águas eternas” da maternidade, numa atitude testamentária – “Quando de mim emigrar/ Tudo o que sou/ E o que não tendo sido, fui” – actualizada em preces e vigília que, por via de uma “memória obstinada”, permitirá ao sujeito poético o regresso ao útero – da mátria e da casa, isto é, à sua identidade cultural e afectivo-familiar. O (macro) poema que é esta colectânea retorna, circularmente, ao seu início – à “Matria” e a “A casa”, os dois primeiros poemas: este continuando a busca encetada no primeiro e expandindo-a dos espaços da ilha (como Mesquita e Riboque) ao Mundo que é projectado como “plano, redondo/ sem trancas nos caminhos”...

Filigranicamente, a significação global dos vinte e oito poemas tece-se do equilíbrio entre memória e suas figuras relacionais, reiterando a ideia de que a poesia, sendo expressão do “eu”, não é apenas o reflexo da intimidade do poeta, por vezes através da apetência confessional do “eu lírico”; é, também, operação demiúrgica que visa o alcance da condição humana a partir de uma vivência, num jogo de espelhos em que se projectam e se identificam outros partícipes desses lugares. E isso vê-se nos constantes desdobramentos do “eu do poeta”, projectados nas dedicatórias: Pepé e Rufino; geração da Jota; os irmãos, netos de Sam Nôvi; Cency Mata; Ungulani Ba Ka Khosa; Protásio Pina; Alda Espírito Santo; as avós Domingas e Nôvi; a mãe e o pai e, finalmente, os filhos, Nelo e Tuka... Porém, não se trata, note-se, de desdobramento do “eu poético” (ou “eu lírico”) que funciona então como objecto. É que a relação entre as duas instâncias “somente pode estabelecer-se antes do poema”, segundo Massaud Moisés (1989: 140)[2].

Ruminações de afectos? Sim, porque poesia de mineração rememorativa de afectos e do passado, memórias afectivas de um passado que o sujeito poético quer revertido num futuro diferente, como em “Residência” e em “Poema”. Nessa ruminação se projecta o “sentido da história” e se opera a deslegitimação da mitologia literária do nacionalismo, construída não apenas para afirmação comunitária, mas ainda funcionando como “escrita de compensação”, através da qual se actualizou a crítica do sistema colonial, em período em que as liberdades cívicas e de pensamento estavam cerceadas. O efeito desse processo de contestação é, por isso, “um desmoronar generalizado de sentido”, aqui entendido, recorrendo a Eduardo Prado Coelho[3], como “sentido da história, sentido da comunidade, sentido dos povos e das nações, sentido da existência, seja ela qual for” (1990:4).

Disse atrás que certo viés do tema da roça, o do lugar dos contratos no relato da nação são-tomense, era um dos demónios da poetisa. É aqui que se actualiza o sentido da história da cidadã-poetisa: na demanda desestabilizadora de lugares ideológicos cativos da “cultura social” forra, pelo que tanto recorre ao histórico (à vida de contratados que fazem parte da paisagem urbana são-tomense), como reinventa, a partir desses sinais identificadores, universos que poderiam ser reais (a fala dos contratados), reconstituindo, no eixo do tempo, através da imaginação, experiências vividas de indivíduos e de colectividades, tal como no romance. Talvez por essa apetência para romancear – que Hayden White[4] designaria como narrativizar -, a poesia são-tomense, particularmente a de Conceição Lima, cumpre também a lacuna do ofício de historiar – ou narrar, na terminologia whitiana (1992:1 e ss) – numa sociedade em que não existe uma regular e pertinente actividade no âmbito das Ciências Sociais e Humanas, nem estruturas (académicas e de investigação) que promovam a (auto-)reflexão. Se, antes, o discurso da história se fazia seguindo um modelo cujo recorte narrativo captava as aventuras e desventuras dos grandes homens (e aqueles ocupando lugar hegemónico), hoje, a história moderna deixou de se preocupar com o facto enquanto acontecimento[5], para se preocupar com a significação simbólica dos eventos:

No discurso histórico da nossa civilização, o processo de significação visa sempre “preencher” o sentido da História: o historiador é aquele que reúne menos os fatos do que significantes e os relata, quer dizer, organiza-os com a finalidade de estabelecer um sentido positivo e de preencher o vazio da série pura. (Barthes, 1988: 154-155)[6]


Neste contexto, a poesia de Conceição Lima pode ler-se como uma modalidade do discurso da história: pela poesia se pretende dar sentido ao caos societário e às injustezas sociais.

Por outro lado, a obra poética de Conceição Lima torna-se discurso dissidente que desaloja do lugar da doxa falas culturais, complicando o fluxo temporal pelo facto de já não dirigir o “olhar apenas para uma linhagem majestosa, para evocações de herança e tradição” (Soja, 1993: 32)[7]. Nesse sentido, essa fala literária acaba por desorganizar o sistema de ideais prevalecente, de sentido excludente, totalizante e autoritário do nacionalismo literário, que mais não fez do que fixar a hegemonia de certa cultura das ilhas. Afinal, parece que, cumprindo as exigências da epistemologia pós-colonial, a escritora trabalha no rumo de um novo pensamento sobre o país, sobretudo tendo em conta as suas escritas posteriores, como A Dolorosa Raiz do Micondó – doloroso livro de resistência, concentrada no micondó, árvore totémica e mítica (e não apenas em São Tomé e Príncipe), que representa a capacidade africana de resistência, de persistência, de vivificação – e No País de Akendengué[8]. Nesses livros, a poesia resgata o discurso do “relato de nação” através do qual a poetisa intenta a recuperação das raízes matriciais da são-tomensidade. E isto numa altura em que, porventura contaminados pelo élan luso-tropicalista que grassa pelo “mundo lusófono”, que propõe a rasura do passado colonial e seus corolários de infâmia, em termos de efeitos na construção do discurso da identidade, também no caso são-tomense. Eis porque, em A Dolorosa Raiz do Micondó, a sua poesia refaz o entrançado da histórica capacidade de resistência do são-tomense contra a dissolução e a liquidação do seu perfil identitário e redireciona a sua força voluntariosa para libertar as luminiscências da (sua) História, num discurso de identidade liricamente épico.

Nem é despicienda esta opção poética, neste momento em que começa a chegar a São Tomé e Príncipe uma heterogénea massa humana, da África, da Europa e da América. Conhecendo a poetisa e o seu inquieto espírito de reflexão constante sobre o país – e, hoje, mais do que nunca, o país exige de seus filhos uma atenção particular-, não me coíbo em afirmar que a escrita poética de Conceição Lima é também resultado da sua reflexão sobre este tempo. Mais: pela escrita, Conceição Lima intervém no debate sobre a identidade que se vem processando em São Tomé e Príncipe.

E, no entanto, a poetisa tem consciência da irrevogável marcha do Tempo, embora acredite na possibilidade da sua recuperação – é como se Conceição Lima quisesse dizer, como Nicolás Guillén, outro ilhéu:

Aprendi, ensinaram-me os que passam
Que sempre passam, passarão os dias
Ainda que pareça às vezes que não passam.
(“Passam os dias”)[9]


Passam, sim, e deixam consequências, corrobora a poetisa, que quer “decifrar do sonho/ o começo e a consequência” e “rasgar sobre o pranto/ o grito da imanência” (“Ilha”). Na dinâmica do tempo que passa, o sujeito reafirma a sua pertença a um espaço-tempo original, onde estão ancorados os sinais da sua identidade. Identidade que a autora quer abrangente e que, por esta via, quer resgatar aqueles traços que ficam submersos sob o peso das ideologias. O que explica que os poemas de O Útero da Casa sejam poemas muito líricos, apesar da sua intensa carga épica, isto é, poemas em que a poetisa, percorrendo vários lugares da sua memória histórica e política, de tempos de vivência eufórica, encontra alento na afectividade, que quer regenerativa do seu ser e da sua são-tomensidade, expressa aqui e acolá com uma certa amargura, afinal, pela utopia não realizada.

Notas

1 Publicado na revista VEREDAS (Porto Alegre), vol. 7, Dezembro de 2006. Em 2010, passou a integrar a obra da autora, Polifonias insulares: cultura e literatura de São Tomé e Príncipe.

2 Massaud Moisés, A Criação Literária –Poesia, São Paulo: Cultrix, 11ª edição revista, 1989, p. 142.

3 E-mail trocado com a autora, em 17 de Julho de 2003, aquando da escrita de “Apresentação” de O Útero da Casa.

4 No dia 12 de Julho de 1975 foi proclamada a independência de São Tomé e Príncipe, após os Acordos de Argel, em 21 de Dezembro de 1974, entre o Governo Português e o Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe.

5 Aíto Bonfim é poeta, romancista e dramaturgo são-tomense e autor de A Berlinização ou Partilha de África (teatro, 1987), Poemas (1992), O Suicídio Cultural (romance, 1992, reeditado em 2003), O Golpe – uma Autópsia (teatro, 1996) e Aspiração (poesia, 2002).

6 Inocência Mata, “Travessias do olhar: a descolonização da palavra na poesia são-tomense”. Revista Camoniana, 3ª. série, vol. 18, Bauru, São Paulo: 2005, pp. 285-304.

7 E é interessante notar que, nos originais destes poemas, aqueles a que, privilegiadamente a autora deste texto teve acesso e sobre os quais trabalhou para escrever a “Apresentação” dos poemas de O Útero da Casa, as figuras em desdobramento vêm indicadas antes dos títulos - lugar não “tradicional” 

das dedicatórias, que comumente aparecem depois dos títulos -, o que, caso a execução gráfica tivesse mantido esse lugar, reforçaria a ideia de uma fusão identificadora entre as instâncias (o poeta e o seu afecto), como se a lembrança desses afectos fosse a força motriz da escrita daquele momento.

8 Eduardo Prado Coelho, “A utopia num mundo imperfeito”. Jornal do Brasil, “Idéias/Ensaios”. 19 de Agosto de 1990, pp. 4-7.

9 Hayden White, The Context of the Form. Narrative Discourse and Historical Representation, Baltimore/London: The Johns Hopkins University Press, 1992.

10 Recorro a François Furet para fazer a distinção entre as duas noções: o acontecimento é o facto histórico revestido de singularidade, “aquele ponto de tempo ímpar em que se passa qualquer coisa que não é redutível àquilo que houve antes nem ao que virá depois”. Mas, de per se, o acontecimento não é inteligível como tal: depende da sua função na narrativa, “em relação à significação externa e global do tempo que tem por função medir”. Quer dizer, o acontecimento “extrai a sua significação da sua posição no texto da narrativa, ou seja, do tempo” (A Oficina da História, Lisboa: Editora Gradiva, s/d: 82-83).

11 Roland Barthes, O Rumor da Língua, São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

12 Edward Soja, Geografias Pós-Modernas: Reafirmação do Espaço na Teoria Social Crítica, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

13 Pierre Akendengué: poeta músico gabonês que a escritora conheceu pessoalmente numa das suas viagens a Libreville (Gabão), em 2003.

14 Nicolás Guillén, Antologia Poética. Selecção, tradução e notas de Albano Martins, Porto: Campo das Letras, 2002.

Referências

BARTHES, Roland, O Rumor da Língua, São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

COELHO, Eduardo Prado, “A utopia num mundo imperfeito”, Jornal do Brasil, “Idéias/Ensaios”, 19 de Agosto de 1990, pp.4-7.

FURET, François, A Oficina da História, Lisboa: Editora Gradiva, s/d.

GUILLÉN, Nicolás, Antologia Poética. Selecção, tradução e notas de Albano Martins, Porto: Campo das Letras, 2002.

LIMA, Conceição, O Útero da Casa, Lisboa: Editorial Caminho, 2004.

LIMA, Conceição, A Dolorosa Raiz do Micondó, Lisboa: Editorial Caminho, 2006.

LIMA, Conceição, O país de Akendenguê. Lisboa: Editorial Caminho, 2011.

MATA, Inocência, “Travessias do olhar: a descolonização da palavra na poesia são-tomense”. Revista Camoniana, 3ª. série, vol. 18, Bauru, São Paulo: 2005, pp. 285-304.

MOISÉS, Massaud, A Criação LiteráriaPoesia, São Paulo: Cultrix, 11ª. edição revista, 1989.

SOJA, Edward, Geografias Pós-Modernas: Reafirmação do Espaço na Teoria Social Crítica, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

WHITE, Hayden, The Context of the Form. Narrative Discourse and Historical Representation, Baltimore/London: The Johns Hopkins University Press, 1992.


[i] Professora de Literaturas, Artes e Culturas (LAC) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, investigadora do Centro de Estudos Comparatistas (CEComp/FLUL) e diretora do Doutoramento em Português Língua Estrangeira/Língua Segunda. É doutora em Letras pela Universidade de Lisboa e pós-doutora em Estudos Pós-coloniais (Postcolonial Studies, Identity, Ethnicity, and Globalization) pela Universidade de Califórnia, Berkeley. Atua, no ensino e na investigação, principalmente na área dos estudos pós-coloniais, e interessa-se pelos seguintes temas: literaturas e culturas africanas, relações estéticas entre literaturas em português, literatura-mundo, estudos de memória, produção literária de autoria afrodescendente em Portugal e comunicação intercultural. Professora visitante de muitas universidades estrangeiras, é igualmente membro do Conselho Editorial e Científico de muitas revistas de especialidade, nacionais e estrangeiras.

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