Viver e morrer no Riboque, de São Tomé
Rosa do Riboque e outros contos de Albertino Bragança[1]

Inocência Mata[i]

Em 1985 Albertino Homem dos Santos Sequeira Bragança, natural de   São Tomé, onde nasceu em 1944, surpreende o pacato ambiente  literário são-tomense com Rosa do Riboque e outros contos, publicados na rudimentar edição dos cadernos  "Cadernos Gravana Nova"/2  (uma colecção que não teve continuidade).

Quatro contos compõem o primeiro livro de Albertino Bragança: “Rosa do Riboque", "Reencontro", "Solidariedade" e "Solidão", que tematizam o quotidiano da  população africana urbanizada (de que o bairro do Riboque, nos arredores da cidade de São Tomé é o exemplo da sua marginalidade). População que, à excepção de certa obra de Sum Marky, está  ausente na prosa de ficção colonial são-tomense.

Assim, quando há treze anos estes quatro contos foram publicados em São Tomé e  Príncipe, Albertino Bragança inscrevia o seu nome numa nova fase da prosa de ficção são-tomense, que despontava timidamente (e tímida continua). Nova, porque a ficção são-tomense o que representava era, quase exclusivamente, o mundo da roça, estruturado numa descrição paisagística e fechado numa visão contemplativa e etnografista, quando a havia, do modus vivendi do contratado ou,  raramente, do são-tomense, mas sem nunca o penetrar culturalmente. A cor local, a vegetação exuberante, a maravilha animal - geralmente ornitológica -, o folclore, a sensualidade da mulher, enfim, o exótico, por um lado, e o espírito missionário dos colonos, por outro, enformavam, grosso modo, o universo da ficção colonial são-tomense até meados da década de 70 (grosso modo porque há a realçar o caso de Sum Marky, um escritor marcado por uma intervalaridade literária, como já foi visto, do ponto de vista de uma literatura nacional).

Rosa do Riboque e outros contos, juntamente com mais cinco ou seis obras, traziam então para a ficção narrativa outros espaços, outros temas, outras gentes, representando-os num quotidiano de afectividade, de emaranhado de sentimentos humanos, de esperança e frustrações, de alegrias e tristezas, de problemas e intrigas. É nesse contexto que o livro de Albertino Bragança tem um papel pioneiro na ficção são-tomense, ainda incipiente e escassa; mas os contos resgatam também o mundo rural e da roça, sob uma visão de dentro, assim como as complexas relações socioeconómicas que relevam da estruturação sociocultural e mundividência forras: ó seus valores morais e éticos, seus usos e costumes suas crenças e religião. Com uma escrita próxima do etnografismo literário, Albertino Bragança eleva também ao estatuto de língua literária os falares são-tomenses - o português falado em São Tomé e o crioulo forro.

Mas de que falam os contos?

Falam da força sensual e anímica de uma "condenada da terra",  Rosa Adriana, melhor, Rosa do Riboque; falam da cadeia de solidariedade entre os seus amigos, todos no limiar da vida, como Beto Conqui,  Bino Opé Clabla, Mé Lechi, Chico Monteiro, Lédi Pouca Roupa, Joaninha Bóca Tunhá, Betina Flóli Canido, Quedêquê, Georgina... todos juntos nas alegrias e contra a repressão colonial; falam das divergências entre pai e filha, perdida de amores por um homem de muitas mulheres - que os há, muitos, em São Tomé e Principe -, ensaiando, julgo que timidamente, nesse conto "Reencontro", uma incursão à problemática da poligamia, retomada num outro conto "Solidão", sobre as desventuras de um polígamo, mas aí também com uma reflexão filosófica sobre a condição humana. Por seu turno, o conto "Solidariedade", mais parece uma homenagem à medicina tradicional e a essa grande figura que foi o Sum Mé Xinhô e em que o autor se apresenta mais moralista, não conseguindo fugir da explicitação do dever moral e cívico de dar sangue e de respeitar a vida humana acima de todas as divergências pessoais.

Estes quatro contos, reeditados em 1997 pela Editorial Caminho, em Lisboa, homenageiam figuras típicas que povoam a paisagem do quotidiano urbano e rural são-tomense e que já fazem parte de certo imaginário social. Nessa ambiência de saberes e sabores são-tomenses desfilam homens e mulheres comuns, figuras tomadas de personalidades reais e outras facilmente identificáveis pela correspondência: os membros: Coimbra Nova, os trabalhadores do Monte Grande, Mécè Stlôfi, o Sr. Claudino (figura conhecida pelos seus bailes de fim-de-semana), as conhecidíssimas Quedéquê, Betina Flôli Canido, Joaninha Bóca Tunhá... Outrossim, o que, em última instância, Albertino Bragança consegue nestes contos é a valorização de uma cultura social urbana, que sempre foi marginalizada - e tê-lo-á sido duplamente na sociedade colonial. E fá-lo através de um olhar nostálgico fixado nas memórias da sua despreocupada meninice, para homenagear aquela gente anónima que o autor, segundo as suas próprias palavras, invejava[2], porque vivia em perfeita liberdade de espírito e de acção quotidiana. O  Riboque surge, assim, como espaço privilegiado nesse registo de vivências, gratificantes e tristes (estas a fazerem lembrar, pela intriga, A vida verdadeira de Domingos Xavier, de Luandino Vieira), não apenas pela deferência do título do livro, dado por um conto, "Rosa do Riboque", mas também pelo epíteto da personagem principal que toma como seu apelido o nome do bairro, instituindo, assim, uma relação mítica (original) com o espaço (que passa a funcionar como microcosmos do país), e ainda pela atenta caracterização psicológica das personagens (o que não acontece em outros contos da colectânea), pela expansão espacial e cénica (não típica num conto), pela opção da sintaxe narrativa que se vê na grande analepse que começa logo no II capítulo (a narrativa começa com um funeral, a que se segue um flash-back, tal como no conto "José Matias", de Eça de Queirós) e, finalmente, na diversidade do foco narrativo (a história é narrada por um narrador omnisciente que varia sempre de perspectiva, não privilegiando uma só personagem). Mas Albertino Bragança afasta-se do espaço urbano e, num olhar migratório pela azáfama da colheita do cacau, pelo corte de lenha, pelas farras do fundão, pelas brincadeiras dos garotos, traz à cena os luchans, pequenas localidades rurais de Ocá Longo, Almeirim ou Maguida Malé nos contos "Reencontro", "Solidariedade" e "Solidão".

São registos de formas fragmentárias da expressão popular a vários níveis do código social e moral e do repósito folclórico e legendário: o fundão, o danço-congo, a tchilóli, a puíta, as canções, os provérbios e as sóias. Um aspecto interessante dessa fragmentária expressão popular é a disseminação de fórmulas do código gnómico que contém a filosofia e a sabedoria populares: Albertino Bragança, conhecedor desse corpus da oratura são-tomense, usa-o amiúde, pulverizando o texto de fragmentos de provérbios e máximas para caracterizar personagens e situações: "Punda galu cá bilá vé, ê cá mudá cantá, ô", diz Mé Djingo ao amigo Mento Muala, para tentar convencê-lo a mudar a sua conduta de solteirão convicto.

O que Albertino Bragança traz à ficção são-tomense é um novo mundo, não já do microcosmos da roça, espaço privilegiado da ficção colonial. Se existe, pois, uma constante nos contos de Albertino Bragança é a representação das complexas relações humanas dos marginalizados e dos seus hábitos decorrentes de uma mundividência comunitária, que revela os seus códigos e valores morais e éticos, seus usos e costumes. Mas também as complexas relações socioeconómicas e políticas da sociedade colonial, mas sem uma intenção veementemente combativa, como na escrita nacionalista de Alves Preto, corroborando, pela atitude, a ideia de que a linguagem é social não pelo que diz, mas pelo modo como diz.

NOTAS

1 Texto adaptado da apresentação do livro, durante a cerimônia de lançamento na RDP-África, no dia 21 de novembro de 1997. Em 1998 passou a integrar a obra Diálogo com as ilhas: sobre cultura e literatura de São Tomé e Príncipe.

2 Fundação Calouste Gulbenkian, durante o congresso sobre as “Novas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa” (10-14 de novembro de 1997).


[i] Professora de Literaturas, Artes e Culturas (LAC) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, investigadora do Centro de Estudos Comparatistas (CEComp/FLUL) e diretora do Doutoramento em Português Língua Estrangeira/Língua Segunda. É doutora em Letras pela Universidade de Lisboa e pós-doutora em Estudos Pós-coloniais (Postcolonial Studies, Identity, Ethnicity, and Globalization) pela Universidade de Califórnia, Berkeley. Atua, no ensino e na investigação, principalmente na área dos estudos pós-coloniais, e interessa-se pelos seguintes temas: literaturas e culturas africanas, relações estéticas entre literaturas em português, literatura-mundo, estudos de memória, produção literária de autoria afrodescendente em Portugal e comunicação intercultural. Professora visitante de muitas universidades estrangeiras, é igualmente membro do Conselho Editorial e Científico de muitas revistas de especialidade, nacionais e estrangeiras.

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