Manuela Margarido: uma poetisa lírica entre o cânone e a margem

Inocência Mata*

Era necessário pôr o homem de pé – não

era só o homem africano.

(Manuela Margarido)

No dia 08 de março de 2004, um grupo de cidadãos são-tomenses entendeu que a data do Dia Internacional da Mulher seria uma ocasião simbólica para homenagear Manuela Margarido, mulher são-tomense de que se conhece a vertente cívica e poética, sobretudo poesia engagée, aquela que constitui parte do corpus fundacional do sistema literário são-tomense. Coube-me, nessa sessão1, fazer a apresentação da mulher-poetisa e tal “tarefa” deu-me particular prazer, por se tratar de uma mulher nascida na ilha do Príncipe – ilha que constitui a minha mátria, pois é a terra da minha avó materna, de quem herdei o nome, mas certamente não a sageza...

Nascida na ilha do Príncipe (em 1925), Maria Manuela da Conceição Carvalho Margarido cresceu entre as ilhas (de onde saiu muito pequena) e Portugal, onde se fixou definitivamente para continuar os estudos secundários. Em Paris, onde viveu durante vinte anos, foi responsável pela Biblioteca da Sorbonne, tendo aí também estudado Ciências Religiosas, Sociologia, Etnologia e Cinema. Hoje residente em Lisboa, foi, nos anos 80, embaixadora de São Tomé e Príncipe junto de organizações internacionais (como a UNESCO e a FAO) e de países da então CE – Comunidade Europeia e, de regresso a Portugal, há mais de uma década, foi assessora do então presidente Mário Soares. Autora, até 2007, de um único livro de poesia, Alto como o Silêncio2, publicado em 1957, Manuela Margarido tem também poesia dispersa nos anos 60 e 70, para além de artigos sobre a literatura são-tomense, nomeadamente sobre Caetano da Costa Alegre e Francisco José Tenreiro, dois outros nomes fundacionais da literatura são-tomense.

Se já em 1942 o livro Ilha de Nome Santo, de Francisco José Tenreiro, anunciava um sistema literário – de que faria “prova”3 a antologia Poetas de S. Tomé e Príncipe, prefaciada pelo português Alfredo Margarido, então marido da poetisa, e publicada em 1963 pela Casa dos Estudantes do Império -, poetas houve que inscreveriam sua escrita num projeto claramente nacionalista, poetas que Manuel Ferreira incluiu no “núcleo dos que vieram depois” (1988: 447). Poetas como Manuela Margarido, Alda Espírito Santo, Tomás Medeiros e, apesar de mais velho, Marcelo da Veiga vincularam a sua poesia a uma ideologia estética que tanto intentava a construção de uma identidade cultural, a erigir-se nacional, como realizava um discurso de combate social, anticolonial, denunciador da exploração colonial, da precariedade socioeconômica, devido ao sistema da roça (e da monocultura do cacau e do café), do regime do contrato e do drama dos contratados desenraizados e obrigados a ficar numa terra em que se sentiriam (duplamente) marginais4. É nessa poesia, a do “poetas da Casa dos Estudantes do Império”, que se pode reconhecer como o corpus fundador da são-tomensidade (ou santomensidade) literária, que é consensual localizar a poesia de Manuela Margarido: uma poesia comprometida com o ideário de luta anticolonial e de crítica -social, mas que, simultaneamente, revela a dimensão particularizante da insula africana, através da evocação a sua fauna, da flora, da infância e dos usos e costumes; uma poesia em que a mátria se sobrepõe, por vezes, à pátria, como nesses poemas “Memória da ilha do Príncipe” ou “Socopé”. Oiçamos este último poema:

Socopé

Os verdes longos da minha ilha

são agora a sombra do ocá,

névoa da vida, nos dorsos dobrados sob a carga

(copra, café ou cacau – tanto faz).

Ouço os passos no ritmo

calculado do Socopé,

os pés-raízes-da terra

enquanto a voz do coro

insiste na sua queixa

(queixa ou protesto – tanto faz).

Monótona se arrasta

até explodir

na alta ânsia de liberdade.

No entanto, ainda que se considere, com Alfredo Margarido que essa evocação da figura materna não podia deixar de ser complementar à “evocação da grande matriz protectora, que se consubstancia no corpo negro e magnífico da África” (1994: 272), também é verdade que se trata, mesmo nessa celebração da Mãe-África, por via da mãe do sujeito poético, de uma retórica muito mais intimista do que aquela dos outros construtores da são-tomensidade literária, seus contemporâneos: comparem-na, por exemplo, com a retórica verberativa de Tomás Medeiros em “Meu Canto Europa” ou em “Poema” ou com o discurso apostrófico de Alda Espírito Santo em “Trindade” ou em “Onde estão os homens caçados nesse vento de loucura?”. E mesmo que os poemas publicados em 1963 sejam mais programáticos do que os de 1957 – pois se tratava de uma antologia poética da Casa dos Estudantes do Império, cuja intenção era, a priori, não apenas estética -, a poesia de Manuela Margarido que faz parte dessa antologia de 1963 era muito intimista na sua intenção combativa, ao fazer do poema lugar de direta expressão dos seus sentimentos (de solidariedade e indignação) e pensamento (a crença na libertação) – mesmo quando denunciava as formas do trabalho forçado nas roças do Príncipe como no poema “Roça”, ou a fratura identitária dos contratados angolanos e cabo-verdianos, como nessoutro poema “Serviçais” – de que transcreverei a última estrofe:

(...)

Trazem na pele tatuada

a hierarquia das relíquias

alimentando-se de um sangue

desprezado

que elege os magistrados

da morte.

Amanhã os clamores da festa

acordarão as longas avenidas

de braços viris

e a terra do Sul

será de novo funda e fresca

e será de novo sabe

a terra seca de Cabo Verde,

Livre enfim os homens

e a terra dos homens.

Porém, estes versos curtos, de ritmo sincopado a sugerir efeito marcial, remetem também, pela convocação do contexto ideológico, para mudanças a nível histórico. A poesia, em Manuela Margarido, não é, pois, “arte solitária”, para a qual os objetos do mundo exterior são, apenas, o impulso que gera sentimentos, emoções e reflexões. É essa tensão entre o mundo interior e exterior na sua poesia que faz da natureza lugar de reconstrução espiritual e identitária, como no poema “Paisagem”, em que a poetisa recorre à contemplação da natureza para nela fazer diluir o peso da realidade, quase na contramão do convencionalismo estético da época. Assim, depois de referir a beleza do entardecer (que acentua o reluzir da pele do negro), a explosão de cor e sons dos papagaios, o brilho multicolor das palmeiras, dos coqueiros e das ostras, o poema termina com a voz serena que se detém na mansidão da sua angústia, pelo fato de o mundo dos homens ser tão diferente do da natureza:

Paisagem

No céu perpassa a angústia austera

da revolta

com suas garras suas ânsias suas certezas.

E uma figura de linhas agrestes

se apodera do tempo e da palavra.

A natureza adquire, mesmo na poesia contestaria de Manuela Margarido, uma contaminação de pendência romântica – como se nela, a natureza, a poetisa procurasse compensação para as imperfeições da sociedade. Há nessa poesia uma apetência para a libertação da memória, de forma evasiva, confundindo-se esse gesto com a função ideológica da escrita libertária, como neste poema de rememoração de um tempo passado, ou que é representado como passado, de nostálgica inconsciência:

Memória da ilha do Príncipe

Mãe, tu pegavas charroco

nas águas das ribeiras

a caminho da praia.

Teus cabelos eram lemba-lembas

agora distantes e saudosas,

mas teu rosto escuro

desce sobre mim.

teu rosto, liliácea

irrompendo entre o cacau,

perfumando com a sua sombra

o instante em que te descubro

no fundo das bocas graves.

tua mão cor-de-laranja

oscila no céu de zinco

e fixa a saudade

com uns grandes olhos taciturnos.

 

(No sonho do Pico as mangas percorrem a órbita lenta

das orações dos ocás e todas as feiticeiras desertam

a caminho do mal, entre a doçura das palmas).

 

Na varanda de marapião

os veios da madeira guardam

a marca dos teus pés leves

e lentos e suave e próximos.

E ambas nos lançamentos

nas grandes flores de ébano

que crescem na água cálida

das vozes clarividentes

enchendo a nossa África

com sua mágica profecia.

Inconsciência de um tempo de “descuidada meninice”, cuja rememoração ajuda a suportar o peso do presente e a driblá-lo, inscrevendo-o como força conservadora de identidade individual e, através dessa força – quase vital para que, como Manuela Margarido, viva “exilado” culturalmente -, refazer a possibilidade de harmonia, pois que, “na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstituir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho” (Bosi, 1999: 55). Daí que se possa dizer, desta poesia de Manuela Margarido, que, se “a poesia lírica opera com as vivências facilmente consciencializáveis”, a possibilidade de “chegar à consciência nem sempre depende das vivências em si, mas do poeta que as possui” (Moisés, 1989: 234).

Numa altura, portanto, em que o leitmotiv poético se construía com signos de resistência revolucionária, o sujeito da poesia de Manuela Margarido enceta uma observação a partir de uma fratura no tempo e no espaço, ao harmonizar a visão pessoal da realidade exterior e a sua afetividade com a busca na natureza de elementos para a fundamentação da sensibilidade, primeiro subjetiva e, só depois, nacional, ao mesmo tempo que enceta uma intenção identitária pela expressão de uma vivência cultural. Sendo Manuela Margarido um dos nomes construtores da são-tomensidade literária, é também autora de uma poesia lírica muito marcada pela intimidade de uma afetividade cultural.

É essa vertente da poesia de Manuela Margarido que é sempre relegada para um lugar secundário da sua produção poética. Vista sobretudo como poetisa da são-tomensidade (literária), por imperativos de ordem nacionalista, a poesia do seu primeiro livro, Alto como o Silêncio, não tem despertado nos estudiosos das literaturas africanas e, particularmente, da literatura são-tomense – mea culpa! – atenção suficiente, pela dimensão interiorizante da sua escrita. Razão pela qual e interessante perseguir essa vertente da sua escrita poética, que é mais universalizante do que nacionalizante – não querendo, com isso, significar que ambas as dimensões se excluam ... Não se trata, portanto, de subvalorizar a dimensão contestatária da poesia de Manuela Margarido. O que pretendo é, tão-somente, como bem equaciona Constância Lima Duarte, numa reflexão sobre “História Literária das Mulheres: um caso a pensar”, “elucidar os problemas estéticos, questionar os cânones estabelecedores das hierarquias de qualidade, para que se proceda ao reexame dos princípios e métodos que têm formado nossos juízos” (1994: 114). Na verdade, torna-se imperioso, conhecendo poemas anteriores de Manuela Margarido, como os de Alto como o Silêncio, proceder a uma revisão crítica dos códigos literários e ideológicos em que se insere a obra desta poetisa são-tomense e compreender anão inclusão de muitos dos seus poemas nas inúmeras antologias que se foram organizando ao longo dos tempos.

Alto como o Silêncio, que reúne vinte e três poemas não intitulados e não datados, foi publicado dentro da coleção neo-realista “Cancioneiro Geral”, de Lisboa, tal como antes, em 1942, Francisco José Tenreiro havia publicado Ilha do Nome Santo na série editorial neo-realista “Novo Cancioneiro” (1941 – 1944). Na verdade, trata-se do vigésimo volume da coleção. No entanto, diferentemente do livro do poeta de “Coração em África”, este não é um livro programático, no sentido em que a sua estética não indicia evidente preocupação sociocultural, pela qual o indivíduo é tomado como parte de um todo, não desvinculado da dinâmica social; nem tampouco este livro de Manuela Margarido se revela seminal – tal como o foi Ilha de Nome Santo, essoutro livro do seu compatriota que foi seminal da poética tenreiriana, do questionamento do seu autor, como cidadão, intelectual, investigador e poeta, e do sistema literário nacional, no sentido em que historiadores da literatura brasileira, como António Candido e José Aderaldo Castello, utilizam a distinção conceptual entre sistema nacional e manifestações literárias5.

Diferentemente, porém, Alto como o Silêncio, escrito quando a poetisa tinha 32 anos, revela-se, isso sim, como um livro de silêncios contidos, de interiorização, de contemplação: é poesia lírica na sua mais intensa pungência – poesia que canta o amor, a solidão, o abandono, que tece considerações sobre a condição humana, inquietações sentidas como indivíduo, enquanto denuncia um desesperado desejo de evasão interior. Talvez seja por isso que a própria autora diga na entrevista já citada a Michel Laban, que, apesar de, já naquela altura (1957), ter “poemas africanos”, não quis publicá-los, tendo preferido, em vez disso, publicar “poemas europeus”, isto é, “que não tinham referência alguma sobre África” (Laban, 2002: 125), interrogando-se ainda, na mesma entrevista, sobre a sua nacionalidade literária:

Interrogo-me muitas vezes se sou uma escritora portuguesa ou africana. Acho que sou africana, porque os problemas do meu país e de todo o continente africano me interessam enormemente, mas também não sou indiferente ao que se passa em Portugal. Vivi lá muitos anos, passei grande parte da minha infância e a minha juventude em colégios portugueses e religiosos. De maneira que mesma me interrogo: “O que é que eu sou?” (Laban, 2002: 119)

Seja como for, pela sua ambivalência identitária – ou, dada a própria característica do “gênero lírico”, pela ambiguidade da expressão ou por opção intelectual, a verdade é que, nos anos 50, já o movimento do neo-realismo, de que a poesia nacionalista africana é tributária, iniciava o tal movimento pendular que caracteriza os sistemas literários, “ao ritmo do qual a poesia portuguesa se vem renovando em cada nova década”, na expressão de Nuno Júdice (que, aliás, retoma Theodor Adorno, nas suas reflexões).

É que, apesar de se tratar de uma série editorial de neo-realismo, note-se que já nessa altura – finais dos anos 50 – o programa ideológico-estético daquele movimento convergia para outras formas de pensar o Mundo – como, por exemplo, o existencialismo. Na verdade, a poesia de Manuela Margarido, particularmente a de Alto como o Silêncio (mas não apenas), revela uma preocupação com o “ser das coisas”, com o “ser para si”, e intenta a descrição dos dados da sua existência – e isso, como já disse, a propósito da poesia do angolano Ernesto Lara Filho, numa altura em que “a literatura africana se construía pela coletivização dos sentimentos – dores, amarguras, revolta, esperança e aspirações – que a voz do poeta, o porta-voz do povo, assumia: quando a certeza e a esperança constituíam a matriz da escrita performativa (aquela que age dizendo: isto é, que ao dizer estava a fazer).” (Mata, 1997:215). Leia-se, pois:

I

Penetras secretamente

na realização aerodinâmica

dum mundo transparente

onde desembocam as cores

dos rostos amargos,

verdadeiramente necessários.

 

Coroado de espinhas,

és um ouriço circulando no ventre da noite,

procurando

a solução embaladora

na chuva de espelhos noturnos.

 

E com ritmos férreos

és o sentido íntimo de enlaçar a tarde,

estendendo os músculos das recordações de infância

através da poeira que cresce nos jornais do dia,

ilustrando os milhares de problemas

das viagens dialogadas

(Alto como o Silêncio)

Pode-se dizer-se, por isso, que a poesia de Manuela Margarido, mesmo sendo de extração sócio-histórica, é mais lírica do que épica, se considerarmos a insistência na pessoalização dos sentimentos, funcionando os seus poemas como verbalização imediata das inquietações que atormentam a alma da poetisa. Aliás, na observação da realidade, a poetisa privilegia a imaginação e a sensibilidade: a sua poesia fala do social por via do sentimento da saudade da mãe, da nostalgia da terra natal, dos tempos da infância, das cores e natureza da sua ilha natal; porém dores que verbaliza em direção à proporção coletiva, que a inteligência – o terceiro pilar da criação poética, juntamente com a imaginação e a sensibilidade – atualiza. Atente-se no poema “Na beira do mar”:

Na beira do mar, nas águas,

estão acesas a esperança

o movimento

a revolta

do homem social do homem integral

(...)

A terra é nossa,

guarda a marca dos nossos pés,

está empapada pelo nosso suor:

eis que avistamos a hora rubra do amanhecer

quando os papagaios se lançam no espaço

desfraldando uma bandeira ardente

e no céu cru da ilha a palavra justiça

ondula

Trata-se de uma poesia em que o enunciador parece vazar todas as suas angústias, um sentimento de abandono e desejo de evasão da realidade, enfim, “as agudas lâminas do tédio” (XVI). Essas lâminas, quando muito afiadas, levam a um modo elegíaco (poemas IV, XV, XIX: “Cai a mortalha / de brisas amarelas”) e a uma semântica de perda e solidão, reveladora de um espírito melancólico que, não obstante, apela à mudança. É que, mesmo num mundo de obstáculos, como neste poema XXI –

No dia em que te foste embora,

longos navios de silêncio

encheram a casa,

tão grande, tão vasta!

Todos os gatos da vizinhança

comiam cogumelos

E varriam as cascatas dos cemitérios

com agudas lâminas de tédio.

No cais das horas

fiquei a esperar-te:

grande pedra de saudade

de olhos hirtos.

Paira sobre mim a presença

de uma mão pálida

e sempre uma ave parte:

nunca sei para onde.

- ou no poema XXII, há o restauro de uma vitalidade que se encontra algures no “ser das coisas”:

Lúcida mergulho na água

fria água da memória.

Só o vento, só o vento

me acompanha.

Não sei até que ponto se pode ver nessa viragem estética de Manuela Margarido – portanto, da poética de Alto como o Silêncio (1957) para os poemas então inéditos da antologia da Casa dos Estudantes do Império, Poetas de S. Tomé e Príncipe (1963) – a “necessidade imperiosa” da poetisa, à semelhança do que acontece amiúde com os poetas negros ocidentalizados, “de se readaptar ao seu meio ambiente e, ainda, à necessidade complementar de evidenciar a sua presença no mundo, não apenas como indivíduo, mas acima de tudo como elemento de grupo social”, como refere Alfredo Margarido, no seminal prefácio à antologia de 1963 (1994: 273): as imagens então utilizadas são decorrentes de uma vivência europeia – nos elementos de construção metafórica como o Outono, o Inverno (mesmo quando evoca a “ilha”) – e outros tópicos, próprios de uma poesia iminentemente de interrogação existencialista, e sinais técnico-formais como o verso livre, a inefabilidade dos topoi recorrentes, a vaguidade, a tensão interior no relacionamento com o Mundo...

Paira sobre mim a presença

de uma mão partida

e sempre uma ave parte

nunca sei para onde

(XVI)

Porém, o que é relevante é que a poesia engagée de Manuela Margarido (aquela de 1963) mantém as estratégias já ensaiadas em poesia anterior, que denuncia uma onda afetiva, uma espontânea expressão de sentimentos, quando observa o mundo – mesmo num poema de interlocução apostrófica, como em “Vós que ocupais a nossa terra”

É preciso não perder

de vista as crianças que brincam:

a cobra preta passeia fardada

à porta das nossas casas.

(...)

Nós nos conhecemos e sabemos,

tomamos chá do gabão,

arrancamos a casca do cajueiro.

E vós, apenas desbotadas

máscaras do homem,

apenas esvaziados fantasmas do homem?

Vós que ocupais a nossa terra?

Manuela Margarido, autora de produção muito escassa, e verdade, é um caso interessante na literatura africana de língua portuguesa pelo género, numa altura em que às mulheres competia o embelezamento do bouquet, e pelo equilíbrio entre uma enunciação lírica, do indivíduo que não quer deixar de ser livre (como se fosse uma condenação: não disse Sartre que o homem está condenado a ser livre?) e que quer vazar no verbo a sua experiência do real, e do indivíduo que, por outro lado, não pode deixar de ignorar a existência: o sistema colonial e os seus meandros, a ilha e os seus seres e coisas – enfim, como ela própria diria, anos mais tarde, na entrevista de Laban que tenho vindo a citar, pondo “o homem como centro de tudo, e não pôr as diferenças entre um homem europeu e um homem africano” (Laban, 2003: 130). Daí um breve regresso, depois de 1963, a uma temática mais ontológica, à religiosidade dos “Dois poemas quase religiosos”, publicados na revista Colóquio de 1977 (transcritos no final deste texto). Afinal, a poetisa continua, nestes poemas, a trilhar novas formas de conhecimento, desinstalando os limites de sua estabilidade vivencial (Grünewald, 2000: 124), insatisfeita com o universo (fechado?) da sua linguagem anterior e ficando – ainda José Lingo Grünewald – “em estado de graça para incorporar vivencialmente o absurdo e conhecer o absoluto, o seu absoluto” (ibidem). Um absoluto que é manifesto nos seus anos de silêncio e de deslocamento...

Dois poemas quase religiosos

 

Nas minhas ilhas

nada escapa à contabilidade dos espíritos

na claridade do dia como na opacidade das noites

espíritos e homens estão ligados

com a força das lianas.

 

Dêvé é pagar o que os espíritos pedem

com suas vozes silenciosas

insistentes

quando na noite despertam as vegetações

mais tensas e mais opulentas

cheias de gestos de palavras de desejos

 

Se os espíritos pedem comida e tabaco

com seus movimentos oscilantes

é para manter viva esta comunicação

necessária entre os que já partiram

e os que vão chegar,

mensageiros do além:

quando a criança nasce

traz na palma da mão o tangen

roteiro mais do que destino

 

********

  1. Instalada na encruzilhada

a boneca aberta na madeira do ocá

cria a reversibilidade do tempo

permite o regresso dos que partiram

tão hesitantes que devem voltar

para nos dizer nas lentas horas nocturnas

os segredos mais ousados

os mais eternos

possivelmente os mais dramáticos

quando o homem está colocado

na margem dos rios

perante a alvura cintilante

do ocosso.

 

  1. Tanta doçura

pela vassoura de sete ramos de andala

e penas de galinha!

 

As sete bandeiras triangulares

desenham a crespura vegetal do mundo:

se os amigos abatem amorosamente o chicote

sobre o teu corpo

é para o abrirem à confidência eterna

dos que nos acompanham do outro lado

da vida e da morte.

Notas

Publicado em SCRIPTA-Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e do Centro de Estudos Luso-Afro-Brasileiro da PUC-Minas, vol 8, n.º 15, 2º sem., 2004. Em 2010, passou a integrar a obra Polifonias insulares: cultura e literatura de São Tomé e Príncipe.

2 Sessão de Homenagem à poetisa e embaixadora Maria Manuela Margarido, no dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, na “Associação 25 de Abril” em Lisboa.

3 Na entrevista concedida a Michel Laban, em janeiro de 1985, em Paris, Manuela Margarido afirmou que estava a acabar um romance (Laban, 2002: 127). Porém, desde 1977, ano da publicação de “Dois poemas quase religiosos”, Manuela Margarido não publicou mais nada. A sua obra foi reunida em Alto como o Silêncio & Outros Poemas (2007).

4 Ver Inocência Mata, “Antologias literárias de São Tomé e Príncipe e o seu papel na afirmação da são-tomensidade literária”, in Diálogo com as Ilhas (sobre Cultura e Literatura de São Tomé e Príncipe). Lisboa: Edições Colibri, 1998, pp. 61-65.

5 Atualmente, em 2004, cerca de cinco décadas depois, este problema adquiriu proporções alarmantes, com o Governo de Cabo Verde a assumir a liderança do processo de ajuda aos ex-contratados cabo-verdianos e seus descendentes que ficaram guetizados, além de totalmente espoliados, nas roças de São Tomé e Príncipe. Porém, embora não se fale disso, nas mesmas situações de total espoliação (e nas mesmas roças), encontram-se também ex-contratados moçambicanos e angolanos e os próprios naturais das ilhas, que têm 52% da sua população a viver abaixo do limiar da pobreza.

6 “(...) convém principiar distinguindo manifestações literárias, de literatura propriamente dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes numa fase. Estes denominadores são, além das características internas, (língua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece, sob este ângulo como sistema simbólico, por meio do qual as verdades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade”. António Candido, Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos. 1º volume, Belo Horizonte: Ed. Itatiaia: São Paulo: Ed da USP. 5ª ed. 1975, pp. 23-34.

Referências

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BOSI, Ecléa, Memória e Sociedade. Lembranças de Velhos, São Paulo: Companhia das Letras, 7ª edição, 1999.

DUARTE, Constância Lima, “História Literária das mulheres: um caso a pensar”. Constância Lima Duarte (Org.), Mulher e Literatura no RN. Natal-RN, CCHLA-NEPAM, Col. Humanas Letras, 1994, pp. 106-114.

FERREIRA, Manuel, No reino de Caliban II (Angola e S. Tomé e Príncipe), Lisboa: Plátano Editora, 2ª edição, 1988 [1976].

GRÜNEWALD, José Lino, O Grau Zero do Escreviver, São Paulo: Editora perspectiva, 2002.

JÚDICE, Nuno. Apud João Barrento, “Um quarto de século de poesia portuguesa”. Revista Semear, nº 4, Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses, PUC-Rio (1998). http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/4Sem_19.html

LABAN, Michel, S. Tomé e Príncipe: Encontro com Escritores, Porto: Fundação Engenheiro António Almeida, 2002.

MARGARIDO, Alfredo, “Prefácio” a Poetas de S. Tomé e Príncipe (Lisboa, Casa dos Estudantes do Império, (1963), Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império (1951-1963): Angola – S. Tomé e Príncipe, I volume, Lisboa: Edição ACEI, 1994.

MARGARIDO, Maria Manuela, Alto como o Silêncio, Lisboa: Publicações Europa-América, 1957.

MARGARIDO, Maria Manuela, “Dois poemas quase religiosos”. Colóquio, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1977 (pp. 58-59).

MATA, Inocência, “Ernesto Lara Filho e o Romantismo brasileiro”. Scripta – Literatura. Revista do programa de Pós-Graduação em Letras e do Centro de Estudos Luso-Afro-Brasileiro da PUC (BH), vol. 1, n.º 1, 2º sem. De 1997. Republicado em Inocência Mata, Literatura Angolana – Silêncios e Falas de uma Voz Inquieta, Luanda, Kilombelombe, 2001.

MOISÉS, Massaud, A Criação Literária – Poesia, São Paulo: Editora Cultrix, 11ª ed., 1989.

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*Inocência Mata é Professora de Literaturas, Artes e Culturas (LAC) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, investigadora do Centro de Estudos Comparatistas (CEComp/FLUL) e diretora do Doutoramento em Português Língua Estrangeira/Língua Segunda. É doutora em Letras pela Universidade de Lisboa e pós-doutora em Estudos Pós-coloniais (Postcolonial Studies, Identity, Ethnicity, and Globalization) pela Universidade de Califórnia, Berkeley. Atua, no ensino e na investigação, principalmente na área dos estudos pós-coloniais, e interessa-se pelos seguintes temas: literaturas e culturas africanas, relações estéticas entre literaturas em português, literatura-mundo, estudos de memória, produção literária de autoria afrodescendente em Portugal e comunicação intercultural. Professora visitante de muitas universidades estrangeiras, é igualmente membro do Conselho Editorial e Científico de muitas revistas de especialidade, nacionais e estrangeiras.