Uma voz de imbondeiro no silêncio da gravana: a representação da mulher na poesia de Alda Espírito Santo e Conceição Lima
Érica Antunes Pereira
Gosto de pensar no sentido da palavra “conversante” quando leio os poemas de Alda Espírito Santo e Conceição Lima: a primeira, nascida em 1926, lutou de modo ativo em prol da independência de São Tomé e Príncipe e lançou à terra semente que mais tarde seria regada pela segunda, trinta e cinco anos mais jovem, já em seu livro de estréia. Assim, ainda que oriundas de gerações distintas e sendo resguardadas as características estéticas de suas produções, observo certa correspondência temática na poesia de ambas: os poemas “conversam” entre si e instauram uma idéia de dinamicidade que o sufixo “ante” – de “conversante” – traduz com muita eficácia.
Um dos temas caros às autoras é o silêncio, bem como o seu rompimento, dando passagem a um canto que denuncia uma situação e reivindica que, de alguma forma, ela seja modificada. Levando em conta que minha pesquisa de doutorado focaliza representação da mulher e a formação da identidade feminina na poesia angolana, moçambicana e são-tomense, procurarei, nesta apresentação, analisar de que modo ela, a mulher, portadora de uma voz marcada pelo cotidiano, consegue se inscrever no espaço social e até transformá-lo. Para tanto, escolhi os poemas “Às mulheres da minha terra”, de Alda Espírito Santo (1978, p. 81-85), e “Gravana”, de Conceição Lima (p. 50-51), os quais passo agora a invocar.
Em primeiro lugar, ouçamos o poema de Alda Espírito Santo:
Irmãs, do meu torrão pequeno
Que passais pela estrada do meu país de África
É para vós, irmãs, a minha alma toda inteira
– Há em mim uma lacuna amarga –
Eu queria falar convosco no nosso crioulo cantante
Queria levar até vós, a mensagem das nossas vidas
Na língua maternal, bebida com o leite dos nossos primeiros dias
Mas irmãs, vou buscar um idioma emprestado
Para mostrar-vos a nossa terra
O nosso grande continente,
Duma ponta a outra
Queria descer convosco às nossas praias
Onde arrastais as gibas da beira-mar
Sentar-me, na esteira das nossas casas,
Contar convosco os dez mil réis
Do caroço vendido
Na loja mais próxima,
Do vinho de palma
Regateado pelos caminhos,
Do andim vendido à pinha,
Às primeiras horas do dia.
Queria também
Conversar com as lavadeiras dos nossos rios
Sobre a roupa de cada dia
Sobre a saúde dos nossos filhos
Roídos pela febre
Calcorreando léguas a caminho da escola.
Irmã, a nossa conversa é longa.
É longa a nossa conversa.
Através destes séculos
De servidão e miséria...
É longa a estrada do nosso penar.
Nossos pés descalços
Estão cansados de tanta labuta...
O dinheiro não chega
Para vencer a nossa fome
Dos nossos filhos
Sem trabalho
Engolindo a banana sem peixe
De muitos dias de penúria.
Não vamos mais fazer “nozados” longos
Nem lançar ao mar
Nas festas de Santos sem nome
A saúde das nossas belas crianças,
A esperança da nossa terra.
Uma conversa longa, irmãs.
Vamos juntar as nossas mãos
Calosas de partir caroço
Sujas de banana
“Fermentada” no “macucu”
Na nossa cozinha
De “vá plegá”...
A nossa terra é linda, amigas
E nós queremos
Que ela seja grande...
Ao longo dos tempos!...
Mas é preciso, irmãs
Conquistar as ilhas inteiras
De lés a lés.
Amigas, as nossas mãos juntas,
As nossas mãos negras
Prendendo os nossos sonhos estéreis
Varrendo com fúria
Com a fúria das nossas “palayês”
Das nossas feiras,
As coisas más da nossa vida.
Mas é preciso conversar
Ao longo dos caminhos.
Tu e eu minha irmã.
É preciso entender o nosso falar
Juntas de mãos dadas,
Vamos fazer a nossa festa...!
A festa descerá
Ao longo de todas as vilas
Agitará as palmeiras mais gigantes
E terá uma força grande
Pois estaremos juntas irmãs.
Da nossa terra
Mas é preciso conhecer
A razão das nossas secretas angústias.
Procurar vencer Irmãs
A fúria do rio
Em dias de tornado
Saber a razão
Encontrar a razão de tudo...
“Os nossos filhos
O nosso filho morreu
Roído pela febre”...
Muitos pequeninos
Morrem todos os dias
Vencidos pela febre
Vencidos pela vida...
......................................................
Não gritaremos mais
Os nossos cânticos dolorosos
Prenhes de eterna resignação...
Outro canto se elevará Irmãs,
Por cima das nossas cabeças.
Vamos procurar a razão.
A hora das nossas razões vencidas
Se avizinha.
A hora da nossa conversa
Vai ser longa.
De roda do caroço
De roda das cartas
Escritas por outrem,
Porque a fome é grande
E nós não sabemos ler.
Não sabemos ler, irmãs
Mas vamos vencer o medo.
Vamos vencer nosso medo
De sermos sós na terra imensa.
Jamais estaremos solitárias...
Porque a nossa força há-de crescer.
E então conquistaremos
para nós
para os filhos gerados no nosso ventre,
Nas nossas horas de Angústia
– Para nós –
A nossa bela terra
No dia que se avizinha
Saindo das nossas bocas,
Uma palavra bela
Bela e silenciosa
A palavra mais Bela
Ciciada no nosso crioulo,
A palavra se nome
Entoada no silêncio
Num coro gigante
Correndo ao longo das nossas cascatas,
Das cachoeiras mais distantes,
O canto do silêncio, Irmãs
Há-de soar
Quando chegar a Gravana.
E por hoje, Irmãs
Aguardemos a gravana
Ao longo das nossas conversas
No serão das nossas casas
sem nome. (SANTO, 1978)
Já o título do poema – “às mulheres da minha terra” – traz algumas informações importantes: tomada em primeira pessoa, a palavra será dirigida “às mulheres” que, por sua vez, pertencem a um local específico – “a minha [do sujeito poético] terra” –, sinalizando para a identidade nacional feminina que provavelmente restará comprovada no decorrer dos versos. A crase contida no título retira qualquer caráter descritivo e abre caminho para a interlocução, inaugurada com o vocativo logo no primeiro verso. Somando-se a isso o fato de a estrutura do poema ser composta de versos livres e cujo conteúdo semelha, de fato, uma “conversa”, não é difícil constatar que estamos diante de um poema em prosa.
Ao tratar as mulheres por “irmãs”, o sujeito poético se põe em pé de igualdade, o que é acentuado pela vontade de falar com elas em “crioulo cantante”, levando-lhes a “mensagem das vidas/ Na língua maternal”, ainda que seja obrigado a “buscar um idioma emprestado” para mostrar-lhes a terra e, por conta disso, sentir sobre si uma “lacuna amarga”. Mais: neste caso, se o idioma é emprestado, não é difícil constatar que estamos diante de um sujeito poético que se posiciona a partir do ponto de vista do colonizado.
Na seqüência, o sujeito poético realça o desejo de manter uma ligação próxima com as mulheres de sua terra, seja durante o caminho para a praia, a feitura da quitanda ou em conversas cotidianas “sobre a roupa de cada dia/ Sobre a saúde dos nossos filhos/ Roídos pela febre/ Calcurreando léguas a caminho da escola”.
É nesse ponto que se abre a segunda estrofe e o sujeito poético, baseado em imagens também do dia-a-dia anuncia a necessidade de uma “conversa longa”, já (d)enunciando os problemas enfrentados pela mulher na sociedade são-tomense: “O dinheiro não chega/ Para vencer a nossa fome/ Dos nossos filhos/ sem trabalho/ Engolindo a banana sem peixe/ De muitos dias de penúria.”
Desta forma, instaura-se, no poema, um clima de mudança: o sujeito poético instiga as mulheres a se unirem – o que faz também se valendo de imagens da faina diária, como o ato de partir o caroço, ou mesmo graças ao uso reiterado do pronome possessivo na primeira pessoa do plural – para lutar pela própria terra, uma “terra [que] é linda’. Em outras palavras, há a inclusão de todas essas mulheres à causa por que milita o sujeito poético, quando este diz: “E nós queremos que ela [a terra] seja grande.../ Ao longo dos tempos!...” e, por isso, “é preciso, Irmãs/ Conquistar as Ilhas inteiras/ De lés a lés.”, numa evidente referência à luta pela libertação nacional, posto São Tomé e Príncipe ser, na época, uma colônia portuguesa. É assim que o sujeito poético passa a se valer de várias metáforas da união, como a das “mãos juntas” e, mais ainda, o “falar/ Juntas de mãos dadas” e “Juntas na vida”, rompendo o silêncio em relação à colônia e marcando o início do processo pela busca da identidade nacional. Mas não é só: essas imagens indicam também o rompimento do silêncio feminino, de modo que as mulheres, tidas até então como seres duplamente colonizados, passam a reivindicar seu espaço social e político para, um dia, “fazer[em] a nossa [sua] festa...!”, uma festa que “descerá/ Ao longo de todas as vilas/ Agitará as palmeiras mais gigantes/ e terá uma força grande”.
Ainda nessa senda, o sujeito poético, ao invocar a “fúria do rio”, alerta as mulheres sobre a necessidade de persistência, paciência e, sobretudo, de força, muita força para enfrentar as adversidades que surgirem e não gritarem “mais/ os nossos cânticos dolorosos/ Prenhes de eterna resignação...”. Assim, para que o êxito seja alcançado, são necessários união e compromisso entre as mulheres; estas, uma vez capazes de gerar, devem também ser hábeis para regar a vida por meio de um canto/ conversa que se eleva em busca da “razão”. Tais elementos conduzem a uma antilogia, pois conforme “Uma palavra bela/ Bela e silenciosa/ A palavra mais bela/ Ciciada no nosso crioulo” é “Entoada no silêncio/ num coro gigante”, traduzindo “O canto do silêncio” que “Há-de soar/ Quando chegar a Gravana.”1, verifica-se toda uma carga contestatória, levando em conta que “silenciar é dizer por outra via – já que o silêncio potencia o que ali luz, presente, pelo fulgor mesmo de sua ausência.” (HOLANDA, 1992, p.17)
Esse mesmo percurso do silêncio à voz é encontrado no poema “conversante” intitulado “Gravana” (2004, p. 50-51), escrito por Conceição Lima e dedicado a Alda Espírito Santo. Ouçamos:
Na nossa terra, amiga, há um tempo
de silêncio e caules ressequidos
Chega com metacarpos definhados
quando na úbua desfalece a trepadeira
Entra com o bafo poeirento
rarefeitas as unhas, candrezados os ramos
e ulula de mansinho nos bananais
como um melancólico aviso
É um tempo de folhas sem orvalho e mem-lôfi
de pagauês doridos, carentes de leite
de soturna claridade ao pôr do sol
A fria brisa nos diz que esse tempo virá
E cobertas de pó
ficarão as hastes do pilincano
imoladas ao hálito da terra
Será triste o rio e seu nome
na lonjura do vági
mortas estarão as casas e suas janelas
morto o suim-suim e seu canto
morto o macucú e a ubaga velha
A pele de pitangueiras e salambás beberá
das frutas torrenciais a lembrança
porque o luchan estará morto
amiga
Mas sobre a pedra e o fogo
tua voz de imbondeiro crescerá do barro
para resgatar a praça em nova festa
para ressuscitar o povo e sua gesta. (LIMA, 2004)
Valendo-se, entre outros, de elementos típicos da fauna e da flora são-tomense, o sujeito poético confirma que o projeto de busca pela identidade nacional semeado em “Às mulheres da minha terra” já está germinando, ou seja, há uma resposta positiva ao chamamento das mulheres, que se posicionam social e politicamente. Tanto isso é crível que o vocativo empregado logo no primeiro verso de “Gravana” é “amiga” e indicia, de plano, uma interlocução com o sujeito poético do poema de Alda Espírito Santo.
O tempo verbal empregado em “Gravana” oscila entre o presente e o futuro, o que também confirma a idéia do comprometimento feminino desde a invocação havida em “Às mulheres da minha terra”. Melhor explicando, quando o sujeito poético afirma que “há um tempo/ de silêncio e caules ressequidos, está ratificando o que foi, há muitos anos, previsto; no entanto, o adjunto adnominal conduz a um determinado período que até pode se alastrar um pouco, mas continua marcado pela finitude e pela possibilidade de uma situação ser revertida.
As imagens, ao longo de todo o poema, são caracterizadas pela rudeza e pela seca: são “caules ressequidos”, “metacarpos definhados”, “bafo poeirento”, “candrezados os ramos”, “folhas sem orvalho” e pó nas “hastes do pilincano”, tudo levando a crer na impossibilidade de germinação da semente, ainda que este tenha sido plantada com extremo empenho, como no caso de “Ás mulheres da minha terra”. Essa idéia é ainda reforçada por outra série de imagens condutoras de desolamento, como o silêncio, o desfalecimento da trepadeira, a rarefação das unhas, a “soturna claridade ao pôr do sol”, a “fria brisa”, o “triste rio”, etambém pela anáfora presente na sétima estrofe: “mortas estarão as casas e suas janelas/ morto o suim-suim e seu canto/ morto o macucú e a ubaga velha”. Assim é que, na oitava estrofe, o sujeito poético fecha esse ciclo e afirma que, com tamanha carga de sentimentos/ acontecimentos negativos, “o luchan estará morto”, só dele restando a lembrança, a memória.
Mas não é isso o que acontece na verdade, pois o vocativo, indicador da conversa entre os sujeitos poéticos dos pois poemas, aliado a uma conjunção adversativa que dá início à última estrofe, constitui a estratégia empregada para o resgate da esperança; assim, “sobre a pedra e o fogo/ tua voz de imbondeiro crescerá do barro/ para resgatar a praça em nova festa/ para ressuscitar o povo e sua gesta.”. Logo, a pedra e o fogo, que tanto podem significar o dado quanto o construído, parecem se ligar à tradição e, a partir do barro moldado sobre tais elementos, germina uma “voz de imbondeiro”; tal qual a árvore, esta é longeva, sagrada e simboliza a força e a tranqüilidade de uma praça/ país que, agora sim, como ansiava o poema de Alda Espírito Santo, é revivificada – daí a “festa” – e, porque ciente de sua identidade, é também hábil para escrever a sua própria história.
Como pode ser visto, atravessar o período da gravana é como – com a licença da cabo-verdiana Fátima Bettencourt – “semear em pó”, numa terra que, apesar de regada a suor ou lágrima, ainda assim é capaz de germinar a semente, transformá-la numa pequena muda e, mais tarde, num ancestral imbondeiro que representa não só as vozes de Alda Espírito Santo e Conceição Lima, mas de todas as mulheres são-tomenses.
Notas
Originalmente publicado na Revista Crioula, n. 4, novembro de 2008.
2 No glossário de É nosso o solo sagrado, obra de Alda Espírito Santo, a gravana é definida como “estação fresca”; no entanto, creio ter havido um equívoco, de modo que me parece correta a explicação constante da obra A dolorosa raiz do micondó, de Conceição Lima, que prevê a gravana como sinônimo de “estação seca”.
Referências
HOLANDA, Lourival. Sob o signo do silêncio: Vidas secas e O estrangeiro. São Paulo: EDUSP, 1992, p.17
LABAN, Michel. São Tomé e Príncipe – encontro com escritores. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2002, p.75.
LIMA, Conceição. O útero da casa. Lisboa: Editorial Caminho, 2004, p. 50-51.
SANTO, Alda Espírito. É nosso o solo sagrado da terra. Lisboa: Ulmeiro, 1978, p. 81-85.
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* Érica Antunes Pereira possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá(1998), graduação em Letras pela Universidade Paranaense(2003), especialização em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Paranaense(2001), especialização em Literatura Brasileira pela Universidade do Paraná Faculdade de Ciências e Letras de Campo Mourão(2002), especialização em Curso de Preparação à Magistratura pela Escola da Magistratura do Paraná(1999), mestrado em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Estadual de Londrina(2005), doutorado em Letras (Est.Comp. de Liter. de Língua Portuguesa) pela Universidade de São Paulo(2010), pós-doutorado pela Universidade de São Paulo(2013) e pós-doutorado pela Universidade de Aveiro(2012). Atualmente é Elaboração de itens da Pearson Education do Brasil e Consultoria da Pearson Education do Brasil. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..