Cheirinho de neném

O quarto não seria só dela, a mãe e o pai também não. Teria mais uma festa de aniversário, mais uma escova de dentes no banheiro, mais um copinho perto do filtro.

Estava tão feliz que queria aprender a música de ninar que seu pai cantava pra ela:

“A lua girou, girou, traçou no céu um

Compasso... Eu bem queria fazer um

Travesseiro dos seus braços.”

[...]

Um cheirinho de alecrim do campo, cheirinho de chuva na terra, cheirinho de açúcar caramelado. Ai, que cheirinho de neném!

(Cheirinho de neném, s/n)

Minha mãe é negra sim

Desde o dia em que a professora de Artes disse a ele que pintasse sua mãe de amarelo, que ficava mais bonito, Eno ficou entristecido. Uma tristeza fininha que doía e doía, e ele sem saber falar por quê. [...]

Amuado pelos cantos, Eno pensava no sentido de tudo. E não encontrava respostas. Ele era preto, seu pai e sua mãe também. Por que não podia pintar sua mãe de preto? Já ficava chateado com os apelidos que alguns meninos lhe davam, tudo coisa ou bicho. Mas a professora dizer a ele que pintasse a mãe de amarelo? Era demais! [...]

Eno foi direto procurar no dicionário o significado da palavra preto. Lá não viu muita coisa boa, achou de novo tudo muito esquisito. [...]

Vovô Damião já estava sentado no banquinho, na frente da casa, com seu chapéu no colo e guarda-chuva do lado. O vô logo viu a tristeza do menino-neto. “Que banzo é esse, menino?” Eno já sabia que banzo era uma tristeza de preto, vinha do tempo da escravidão, a saudade da terra, o medo da solidão em outros mares... Eno não suportava mais tanto silêncio e resolveu contar ao avô o motivo da agonia. [...]

Eno ouvia, fazia perguntas. Vô Damião disse do orgulho que tinha de sua família, que lutava para viver com dignidade. E disse uma coisa a Eno, de que ele nunca mais esqueceu: “A boniteza deste mundo está nas diferenças, diferenças de tudo quanto é jeito: de pessoas, de cores de gente e flores, de tamanhos, de línguas e costumes, de sotaques, de jeitos de ficar alegre ou triste”. Eno era motivo de alegria para sua família, era um presente divino para todos. Não podia ficar triste para sempre.

Naquela sexta-feira, Dia do Pai, dia de força e energia, resolveu voltar para a escola e enfrentar a professora. No dia anterior, ele tinha ficado até tarde caprichando em seu desenho, desenho de mãe negra, como era a sua. [...]

A professora, no corredor, recebeu o desenho feito com orgulho e dignidade: “Professora, meu desenho de mãe, não pintei de amarelo, pintei de preto em negro como é a minha mãe, como é jabuticaba, o ébano, a beleza da noite escura. Pintei com a cor de mim mesmo”.

A professora olhou espantada, mas percebeu a seriedade da situação. E Eno completou: “Qualquer dia desses meu vô vem aqui dar aula, pra todos aprenderem sobre a nossa história”.

(Minha mãe é negra sim, p. 6-25)

 

O tempo passou ainda mais (êta tempo que voa, né?). A avó de Betina foi se encontrar com os ancestrais e Betina tornou-se uma mulher adulta e com energia contagiante. Mas, além de crescer, a nossa Betina-menina-trançadeira virou Betina-mulher-cabeleireira. Ela montou um salão de beleza que cuidava, trançava e penteava todos os tipos de cabelos e de todo tipo de gente. Mas o seu salão tinha algo especial: era um dos poucos na cidade que sabia pentear e trançar com muito charme e beleza os cabelos crespos.

O salão ficava cheinho de gente e Betina precisou empregar muitas pessoas para ajudá-la no trabalho. Afinal, era tanta gente que ela sozinha não conseguia cuidar de tudo. No dia a dia do salão, Betina corria pra lá, corria pra cá, trançava, penteava, atendia ao telefone, conversava com todo mundo, sempre alegre e com as bochechas sorridentes, como era desde criança. O salão foi se tornando um lugar muito legal de se ir e de conviver e, aos poucos, Betina ficou conhecida por muita gente, dentro e fora da sua cidade e imagina... até fora do país.

Quem passava pelo salão da Betina saía de lá com os cabelos bem tratados, com penteados diferentes, tranças criativas e cheios de energia boa! Parecia mágica!

Betina pensava: “Se minha avó estivesse aqui, ela ia ficar orgulhosa!”, e os seus olhos derramavam lembranças.

(Betina, p. 18)

 Entremeio sem babado

Kizzy perguntava muito. “Perguntadeira” como ninguém. Chegava a encher a paciência da mãe, do pai, do irmão, da avó e da tia. [...]

Menina-menininha com o cabelo de cada dia de um jeito: com birotes enfeitados, com gominha coloridas, de trancinhas com borboletinhas, de rabo-de-cavalo, de tranças e solto com baião-de-dois. [...]

E foi logo entrando no meio da conversa dos outros.

Era conversa de nome: quem escolheu o nome de quem, os significados dos nomes das pessoas. E quis saber o que significava Kizzy, seu nome.

Descobriu que seu nome tinha um significado bonito, “aquela que fica, que não vai embora”. E também que esse nome era de origem africana, mesma origem de toda a família.

(Entremeio sem babado, s/n)

– Ai! Ui! Vó! – reclamava a menina.

–Que é isso, Betina? Estou penteando com tanto cuidado! Seguro cada montinho de cabelo bem perto da raiz e ainda uso um pente de madeira com dentes grossos. Então, deixa de manha! – ralhou a avó.

– Eu sei, vó! Mas, mesmo assim, dói! Ainda bem que, depois do penteado pronto, eu me sinto bem! – disse a menina, com cara de levada.

– Oh, minha querida! Apesar de saber que não tem jeito de evitar uns puxõezinhos a vovó penteia o seu cabelo com muito carinho – a avó falava devagarzinho... devargazinho... parecia música.

O dia de fazer penteado novo era especial. A avó tirava as tranças ou o coque antigos, lavava o cabelo da neta, passava creme para desembaraçar, desembaraçava, lavava de novo e secava com a toalha. Nessa última etapa, o cabelo já não tinha mais creme. Uma dica: o segredo para um bom trançado é deixar o cabelo bem limpinho e sem creme. Evita caspa e facilita o manusear dos fios.

Depois de todas essas etapas, avó sentava-se em um banquinho, colocava uma almofada para Betina sentar-se no chão, jogava uma toalha sobre os ombros da menina, dividia o cabelo em mechas e ia desembaraçando, penteando e trançando uma a uma, com uma rapidez incrível.

Enquanto trançava, avó e neta conversavam, cantavam e contavam histórias. Era tanta falação, tanta gargalhada que o tempo voava! E, no final, o resultado era um conjunto de tranças tão artisticamente realizadas que mais parecia uma renda.

(Betina, p. 6)