Césaire, o haitiano Depestre e as literaturas nacionais negras1

 

Maria Nazareth Soares Fonseca*

 

Um dos momentos significativos da reflexão sobre as condições de produção de uma literatura nacional negra foi, sem dúvida, a realização do Congresso de Escritores e Artistas Negros, acontecido em Paris, em setembro de 1956. A importância desse Congresso está ressaltada em depoimento do intelectual angolano Mário Pinto de Andrade, de Angola, quando alude a fatos que, direta e indiretamente, estão relacionados ao referido Congresso. A longa entrevista feita por Michel Laban com Andrade, de março de 1984 a junho de 1987, ilumina pontos importantes para a compreensão do pensamento político do teórico angolano e para o entendimento de questões ligadas ao pensamento negritudinista, na França e em Portugal. Um dos fatos discutidos na entrevista diz respeito à querela entre Aimé Césaire e René Depestre, que se tornou pública principalmente por causa do poema “Réponse à Depestre, poète haïtien (éléments d’un art poétique)”, publicado no número 1-2 da revista Présence Africaine, de abril-julho de 1955, com o título “Lettre brésilienne”.

Esse poema, “verdadeiramente um poema sangrento, de ruptura”, como acentua Andrade na entrevista, é retomado pelo escritor angolano quando este comenta fatos que explicam tanto a feitura do texto quanto a defesa de uma poética comprometida com a história dos negros haitianos, os negros marrons, que conseguiram edificar a primeira nação negra das Américas. Uma leitura do poema que deixa de lado os dados importantes recuperados por Andrade provavelmente não acentuaria as nuances de uma questão que, caracterizando-se como literária, é intensamente política, pois diz respeito à defesa de uma poética negra tal como a entendiam os criadores da Negritude. É, portanto, a partir da reflexão que se produzia em Paris a partir dos anos 1930, e que recebeu um novo impulso com a criação da revista Présence Africaine, que se deve procurar compreender os versos do poema. Nesse sentido é importante o testemunho de Andrade sobre os antecedentes do Congresso porque esclarece, por exemplo, questões relacionadas à definição de uma literatura nacional negra, pensada por ele como inerente à fase pós-colonialista, mas já delineada no poema de Césaire como comprometida com as lutas dos negros em busca de sua expressão legítima. O depoimento de Andrade estabelece estrita relação entre o que é dito no poema de Césaire e questões relacionadas à defesa de uma expressão própria das culturas negras. Andrade mostra-se bastante lúcido, ao acentuar em sua análise do poema esses aspectos políticos.

O poema de Aimé Césaire foi escrito como resposta à intenção de René Depestre de apoiar uma proposta de Louis Aragon, publicada em Les Lettres Françaises, sobre o retorno da poesia às regras tradicionais da versificação e ao soneto. Deve-se ressaltar que a proposta de Aragon se referia à poesia francesa e não teria tido, talvez, grande repercussão, se a ela não tivesse aderido René Depestre, que, sendo haitiano e negro, expunha publicamente um desacordo com a Negritude que defendia a exploração dos ritmos próprios de uma África mítica e a rejeição aos modelos de construção poética legitimados pelas culturas europeias. É, portanto, a partir desse contexto cultural que o poema de Césaire, de que Mário Pinto de Andrade foi certamente um dos primeiros leitores, deve ser analisado, procurando acentuar as referências feitas por ele a movimentos, como a marronagem, que procuravam reverter a situação instalada pelo colonialismo e pelos modelos de expressão legitimados por ele (Fonseca, 1993, p. 49).

Andrade retoma, na entrevista que concede a Michel Laban, algumas passagens desse célebre poema, em que se registram elementos de uma “poética negra”. A leitura pertinente do teórico angolano destaca partes que dizem respeito a uma luta que se desenvolvia também nas colônias portuguesas na África, em busca da definição dos significantes da diferença negra, e que, como acentua Pires Laranjeira, “fizeram correr rios de tinta” (1995, p. 86). O poema de Césaire resgata os movimentos de resistência à assimilação cultural, como o que se desenvolveu nas Antilhas e particularmente no Haiti, em torno de Boukmann, líder de uma revolta de escravos ocorrida no Haiti no século XVIII.

Os versos iniciais do poema nos fazem lembrar outros do Cahier d’un retour au pays natal, também de Aimé Césaire, publicado em primeira edição em 1947 pela Editora Bordas, em Paris. O verso desse poema “Ao bout du petit matin”, repetido em várias estrofes do Cahier, procura repudiar as imagens paradisíacas que escondem a miséria e a pobreza do seu país e do seu povo ecoa nos versos iniciais do poema “Lettre brésilienne”:

C’est une nuit de Seine
et moi je me souviens comme ivre
du chant dément de Boukmann accouchant ton pays
aux forceps de l’orage (CÉSAIRE, p. 109).

Essa estrofe introdutória retoma os movimentos da resistência negra que, na história do Haiti, definem a luta dos escravos contra a opressão escravagista. O poema desloca essas lutas para o contexto de enunciação de “Lettre brésilienne”, permitindo que a referência à independência do Haiti consagre a coragem dos negros escravos que a fizeram. Estrategicamente, a retomada dessas lutas fortalece a intenção de Césaire de conclamar René Depestre a assumir a força e a tradição de seus ancestrais:

marronons-les Depestre marronons-les
comme jadis nous marronions nos maîtres à fouet (CÉSAIRE, p. 110).

De algum modo já se anunciam nesses versos citados os elementos de uma poética que, insistindo na busca de uma expressão livre, não se intimida, metaforicamente falando, com o chicote nas mãos do feitor. Por outro lado, é interessante observar a maneira como o poeta se apropria, no poema, de estereótipos construídos pelo discurso escravagista, para desconstruí-los:

Depestre j’accuse les mauvaises manières de notre sang
est-ce notre faute
si la bourrasque se leve
et nous désapprend tout soudain de compter sur nos doigts
de faire trois tours de saluer (CÉSAIRE, p. 110).

No poema, além do tom altamente irreverente com que o poeta se apropria de imagens depreciativas sobre o negro, percebe-se uma deliberada insurreição às regras da versificação tradicional. A falta de pontuação e um ritmo mais livre quebram a sisudez e funcionam como marcos de uma atitude contestatória à poesia bem-comportada proposta por Aragon. Com esses recursos de construção poética, Césaire conclama Depestre à insubordinação, à transgressão: “rions buvons e marronons” (p. 110). É particularmente com relação à fetichização da cor pele e do tipo de sangue, vistos como marca indelével da inferioridade do negro, que Césaire se se insurge, reforçando intenções marcadamente irônicas. Se é por causa do “sangue ruim” que os negros são incapazes de reter as normas aprendidas, esse sangue é, na verdade, “um vaudou puissant”, uma energia criadora de atitudes rebeldes e indomáveis.

Andrade destaca ainda, no poema de Césaire, os versos que aludem à difícil relação entre poesia e revolução e, embora à época o poeta martiniquense ainda pertencesse aos quadros do Partido Comunista Francês, fica registrada, no poema, sua censura ao controle da arte.

Mas há ainda, no poema, outras referências que nos permitem aludir a um movimento que, almejando produzir trajetórias mais abrangentes para a Negritude, insistem em destacar como semelhantes espaços demarcados pela escravidão, nas Américas, e na África. Entende-se que o fato de o poeta de estar em Paris não o impede de estar psicologicamente envolvido com as lutas dos negros marrons, intenção que desloca as referências espaciais e poéticas para assumir as questões políticas do momento. Andrade chama a atenção, nesse sentido, para a importância desse poema na compreensão do vasto cenário de lutas a que ele se refere:

É preciso ler todo o poema e fazer uma análise semântica para ver tudo o que ele veicula como revolta de um poeta que afirma a sua negritude e que aconselha o outro a renunciar, imediatamente, ao perigoso caminho da domesticação da poesia e do ritmo (ANDRADE, 1997, p. 128).

Pode-se dizer que muitas das ideias defendidas por Césaire eram também as de Mário Pinto de Andrade, principalmente as que se referem à denúncia do sistema de opressão imposto ao homem negro e à sua cultura. Algumas dessas ideias ficam evidentes no seu poema “A canção de Salabu”, publicado na Antologia da poesia negra de expressão portuguesa, organizada por ele e publicada em 1958, alude ao drama do negro submetido às leis severas do sistema colonialista, situação vista como condizente com uma ordem desumana que era preciso denunciar e expurgar. A voz que lamenta, no poema de Andrade, o tipo de vida e a sina dos “deserdados da terra” alude ao drama dos inominados, daqueles que foram transformados em “utensílios de trabalho”, como bem acentua René Depestre, referindo-se à mão de obra escravizada utilizada à exaustão no sistema escravocrata nas sociedades modernas (Depestre, 1980).

Na entrevista dada a Michel Laban, Mário de Andrade destaca a importância do pensamento de Aimé Césaire e também da literatura produzida por ele, a poesia dos poetas norte-americanos, principalmente Langston Hughes, na conscientização da situação do negro explorado como força de trabalho. Em “A literatura negra e os seus problemas”, publicado na revista Mensagem, em 1951, o teórico angolano já expressava a sua recusa à literatura colonial e identificava duas espécies de literatura negra: a escrita e a oral. Caracterizava essa literatura pela forma como denunciava as injustiças cometidas contra o homem negro e contra sua cultura. Ao mesmo tempo, chamava a atenção para a “presença do Homem Negro no mundo de todos os homens” (Andrade, 1951, p. 11). De certa forma, o teórico sempre defendeu uma literatura comprometida com o contexto de opressão vivenciada tanto pelos africanos diante do sistema colonialista como pelos negros espalhados pelo mundo, no enfrentamento da hostil rejeição à cor de sua pele. Como bem salienta Pires Laranjeira (1995), Andrade assume, portanto, a Negritude como consciência dos problemas enfrentados pelos negros e, aproximando-se das ideias de Frantz Fanon, defende que uma identidade negro-africana que só pode se construir a partir da independência dos povos oprimidos.

É certo que o grupo de Mário Pinto de Andrade, em Lisboa, se empenhava na defesa de uma literatura de feição libertária que, de algum modo, se definia pelo contexto em que viviam os africanos de língua portuguesa. Não resta dúvida, no entanto, que Aimé Césaire, principalmente o Césaire do Discours sur le colonialisme (1955), texto prefaciado pelo próprio Andrade na edição portuguesa traduzida pela poeta moçambicana Noémia de Souza, era a o criador da grande palavra contra o colonialismo e a grande força na defesa de uma expressão literária que estivesse atrelada à luta contra a opressão. É nesse sentido que o texto de Césaire proferido no Congresso dos Escritores e Artistas Negros é reconhecido por Andrade como demonstração da lucidez muito própria aos pronunciamentos do escritor da Martinica. É interessante interrogar, todavia, por quais vieses o pensamento césairiano se identificava com os ideais defendidos por Andrade e pelo grupo de ativistas e escritores que, como ele, defendiam, na África e em Portugal, a luta pela liberdade dos povos dominados pelo colonialismo. Certamente que o pensamento de Césaire estava mais ajustado à defesa do direito à liberdade para o homem negro, preso ainda, como nas Antilhas, aos valores da civilização europeia. É certo também que Andrade e a maioria dos membros dos movimentos de que ele participou defendiam uma identidade negra, ainda que nem sempre essa identidade estivesse colada à cor da pele (Andrade, 1998, p. 83).

O aprendizado necessário à conscientização da situação vivida nas colônias portuguesas na África e à revisão crítica da história da colonização escrita por europeus, sem nenhuma vivência no continente africano, era, certamente, a meta a ser conquistada. A reflexão sobre a situação africana se fazia com o apelo à literatura que esteve sempre presente na formação dos quadros militantes. E essa literatura vinha dos Estados Unidos, Langston Hughes era o grande nome, do Brasil, com Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, de Cuba, com Nicolás Guillén, e com Aimé Césaire, particularmente. Conhecer a África, pensar em suas culturas passava pelo entendimento de questões propostas por diferentes visões que desmontavam um saber legitimado pela opressão. É nesse quadro que a literatura se inseria como mediação para a compreensão das culturas africanas. É o próprio Andrade quem salienta a presença forte da literatura na formação de uma consciência de combate à dominação colonialista, a qual se inseria em um objetivo maior que era o de conhecer, mais profundamente, o continente de onde provinham. De certa forma, resgatava-se o ambiente de discussões teóricas e de leitura literária que nos é descrito por Aimé Césaire e por René Depestre em suas biografias. Andrade chama o grupo de intelectuais a que se filiou em Portugal de “Geração de Cabral”, pois girava em torno da figura de Amilcar Cabral, o líder das lutas pela libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Desse grupo faziam parte, além de Amilcar Cabral e do próprio Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Humberto Machado, Noémia de Souza, Alda do Espírito Santo e Francisco José Tenreiro (Andrade, 1997, p. 69). Mas havia outros grupos – é o próprio teórico que nos informa – como o da CEI, a Casa dos Estudantes do Império, que editava a revista Mensagem, responsável pela publicação dos textos teóricos e literários da maioria dos intelectuais e ativistas negros da África portuguesa. Andrade também ressalta a criação do Centro de Estudos Africanos, que tinha como principal objetivo produzir a autoconscientização da cultura africana. É também no cumprimento desse objetivo que a literatura aparece como meio auxiliar para o entendimento das diferentes culturas africanas. Tinha-se, portanto, como intenção do Centro de Estudos Africanos produzir uma reflexão de certo modo libertadora que, nas próprias palavras de Andrade, define os seus propósitos: fazia-nos pensar nos nossos problemas e depois abria perspectivas políticas. Não era pura reflexão sobre as situações africanas do passado, mas mergulhava-nos diretamente no real, o real em movimento (Andrade, 1997, p. 74).

É nesse contexto de fermentação de ideias que aparece o Caderno de poesia negra de expressão portuguesa (1953), claramente influenciado pelo Cahier d’un retour au pays natal, de Aimé Césaire, inclusive na apropriação da palavra “caderno”. É interessante notar, portanto, a presença das vozes negras que se faziam ouvir, na França e nos Estados Unidos, ecoando nos textos produzidos pelos membros do Centro de Estudos Africanos, como bem o demonstra Andrade em vários momentos de sua reflexão.

Desde 1953, a defesa da Negritude podia ser percebida em seus textos não apenas como impulso à conquista da liberdade dos colonizados, mas também como a possibilidade de se pensar na união de todos os negros do mundo. Por isso a poética da Negritude é fortemente marcada pelas questões sociais, o que não significa que não estivesse atenta às questões da linguagem. Havia um interesse muito grande em se conhecerem as línguas orais africanas e as expressões culturais mais integradas com a expressão do povo. Nesse sentido é importante ressaltar o que Pires Laranjeira diz a respeito da visão de Mário Pinto de Andrade sobre a importância do aprendizado das línguas africanas como compromisso dos movimentos que buscavam a extinção do colonialismo:

A necessidade de conhecer a tradição da melhor forma leva Mário [Pinto] de Andrade ao estudo da temática linguística africana, mas verificando que o desenvolvimento progressivo das línguas africanas através da escola só seria possível com a independência política (PIRES LARANJEIRA, 1995, p. 117).

É também Pires Laranjeira quem chama a atenção para o fato de Andrade ter sido o único teórico da Negritude de língua portuguesa a escrever sobre a questão das línguas africanas. Cita alguns dos textos produzidos pelo teórico angolano, como “Da posição do kimbundo nas línguas de Angola”, publicado em 1950 na revista Mensagem, de Luanda, e “Esquema do problema linguístico negro-africano”, publicado na revista Vértice, de Coimbra, em 1953. De certo modo, a questão da palavra transgressora, tão presente nos esboços de poéticas de resistência defendidas pelos negritudinistas francófonos, encontrava, no esforço de Andrade, a defesa da ideia de que uma literatura de feição nacional naturalmente teria de assumir as expressões da tradição.

É, pois, nesse sentido que a questão havida entre Aimé Césaire e René Depestre, em 1955, merece ser retomada. É preciso considerá-la não apenas detonadora da reflexão produzida durante o Congresso de Escritores e Artistas Negros de que tratamos no início deste texto, mas também como possibilidade de maior entendimento das diferentes visões da Negritude que, naquele momento, apontava diferentes caminhos a serem percorridos pelos negros no mundo moderno. Os fatos recuperados por Andrade nos permitem melhor compreender como as ideias defendidas pela intelectualidade negra, em vários pontos da Europa e dos Estados Unidos, integram-se às discussões produzidas em Portugal e na África de língua portuguesa. É importante, portanto, acompanhar as considerações de Andrade sobre os fatos que antecederam o Congresso de 1959 para reavaliar, como mais propriedade, o poema de Césaire, percebendo-o no âmbito de uma questão política, a da defesa de uma literatura negra com forma de expressão distanciada das literaturas europeias.

É interessante atentar para as imagens de Brasil que estão preasentes no poema de Césaire e que certamente se alicerçam no conhecimento de textos como o Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, e em uma literatura de feição regionalista que fazia chegar à Europa pedaços de Brasil com elementos oriundos da cultura africana. Refiro-me particularmente à obra de Jorge Amado e à de José Lins do Rego, lidas por grande número de escritores africanos de língua portuguesa.

No poema, as imagens de Brasil são construídas pela evocação da Bahia (“à tous les saints/ à tous les diables”) e do Rio de Janeiro (“bate/ batuque/ à ceux des favellas”). Lembremos que René Depestre, à época, estava exilado no Brasil, cuja presença cultural africana Césaire ressalta no poema. De certo modo, o movimento construído por seu texto marroniza o Brasil, pois o faz integrar-se à mesma trajetória de Boukmann e Dessalines.

Ao saudar o poeta haitiano em sua nova morada, Césaire o faz, então, por referências a espaços e situações que, no Brasil, remetem à cultura negro-africana. Césaire saúda Depestre com a expressão de ritmos africanos, vistos, metaforicamente, como resistência aos esquemas da versificação tradicional. A construção dos versos, na última estrofe, mostra bem essa intenção. As imagens do Brasil figuram, no poema, como próprias de um espaço em que a luta dos negros haitianos se transmudou em ritmos que permitem a sua inserção na “la forêt natale” (p. 109).

É pertinente que se façam outras recuperações como as que Andrade nos propicia com as suas memórias. Os fatos retomados pelo teórico angolano nos remetem a outro poema, este de autoria de René Depestre, publicado mais de vinte anos depois da célebre querela em que o poeta haitiano se envolveu com a intenção de, apoiando Louis Aragon, defender o seu ponto de vista sobre a escrita do texto poético. É certo que, como nos informa Andrade, Depestre declarara estar expressando o seu “individualismo formal”, atitude esta que não evitou a ira de Césaire (Andrade, 1997, p. 126).

O poema “Une machine Singer”, que integra o livro Poète à Cuba, publicado na França, em 1976, é dedicado a Mário Pinto de Andrade. O poema expressa, de algum modo, a retomada de fatos da infância de Depestre em Jacmel, no Haiti, e a vivência da religião popular do seu país, o vodu. O poema salienta uma forma de percepção de mundo que se ajusta ao maravilhoso, tão presente em outros textos do escritor hairtiano.

Nesse poema, a máquina de costura Singer, transmudada poeticamente em deus-lar, combate a fome e a miséria típicas do Terceiro Mundo. O grande movimento que se mostra no poema é o que ressalta as metamorfoses e os deslocamentos próprios do universo da oralidade, no qual os limites entre o humano, o vegetal e o animal perdem a rigidez. Ao recuperar, pelo poema, imagens significativas dos espaços culturais a que pertencem os dois escritores, Haiti, de Depestre, Angola, de Maráio Pinto de Andrade, Depestre homenageia seu companheiro de lutas pela liberdade do homem e pela defesa de uma expressão poética mais próxima da visão mágica das culturas africanas. Explor feições dessas culturas em que se efetiva a imbricação da oralidade com modos de escrita mais atentos à voz e aos gestos que nela se anunciam. A máquina-deus-lar, que escamoteia a sede e a fome (versos 7 e 8) e luta contra as tormentas, diz bem das formas mágicas utilizadas por essas culturas como maneira de suportar a dura realidade cotidiana.

Pode-se notar que o poema desenvolve uma visão já bastante distanciada da que o escritor haitiano defendia na carta de apoio a Aragon, publicada em 16 de junho de 1955. Mais de vinte anos depois, em “La machine Singer”, Depestre se deixa mergulhar em sua cultura e faz da máquina de costura a “fera que enfrenta com suas garras as adversidades” de um lar negro acossado pela pobreza típica dos espaços colonizados. Mas é desse mesmo mundo aviltado pela miséria e pela fome que o poeta retira as imagens fortes com que enaltece, ainda que de forma indireta, a posição de Andrade, defensor imbatível da tomada de consciência de questões das culturas negras na África e nos espaços onde se fortaleceu a luta anticolonial. Por isso, no poema, as imagens tomadas ao maravilhoso próprio às culturas de herança africana compõem um quadro em que a força da natureza é a energia que pode recompor um mundo dilacerado pela miséria e resgatar-lhe a identidade.

É interessante observar que Depestre retoma, a partir do imaginário próprio de culturas orais, cenas vividas na sua infância. Nelas, a mãe costureira é certamente uma referência importante e as práticas religiosas do vodu se insinuam nas transmutações que fazem da máquina de costura e de móveis da casa “pièges fantastiques” (verso 7). As metamorfoses que se mostram na máquina-fera que doma tigres e encanta serpentes assinalam processos típicos de culturas híbridas, espaços de encontro de significantes culturais advindos de horizontes diversos. É nessa confluência que a marca Singer perde sua força de identificação com um utensílio e com hábitos europeus para se integrar ao novo espaço, à cultura “créole”, transmudada em deus que exorciza a fome, a miséria, as doenças, integrando-se às forças da natureza (versos 1 a 12).

Ressalte-se, por isso, nesse poema construído distante já dos embates calorosos da Paris da fase do enfrentamento das questões da Negritude, uma feição típica de muitos textos do escritor haitiano em que se nota uma expressão mais desarmada, desvestida do tom virulento com que o poeta sempre enfrentou as opressões, a censura, a violência. Transparece uma expressão mais próxima da cultura do seu país e, por extensão, do animismo animista cultivado pelas sociedades ágrafas, com um forte apelo às forças da natureza.

O poema “La machine Singer”, dedicado a Andrade, é sobretudo a expressão da zoopoética haitiana, tal como a define Maximilien Laroche (1998), em que seres fabulosos, geralmente em forma de animais, conseguem transmudar os acontecimentos. Inserida nesse processo, a máquina Singer, também tigre de dentes afiados, faz-se referência aos processos interculturais que caracterizam as culturas “créoles”, nas quais as metamorfoses inscrevem-se no processo dinâmico de uma ação em curso. Assim, o poema de Depestre, dedicado a Mário Pinto de Andrade, acentua facetas de movimentos de que os dois escritores participaram em defesa de suas convicções, assumindo feições próprias de culturas que têm uma ligação forte com a natureza.

Não é demais voltar a enfatizar a grande importância da entrevista de Mário Pinto de Andrade dada a Michel Laban. Ela nos propicia retomar fases decisivas dos movimentos que, na Europa e na África, esclarecem pontos importantes da trajetória política e intelectual do teórico angolano. Além disso, oferece elementos para melhor compreensão do que se passava em Paris, em Lisboa e na África nos anos que antecedem as guerras pró-independência, na África. Causa certa estranheza que a querela havida entre Césaire e Depestre não seja mencionada por Lilyan Kesteloot nem por Daniel Delas, biógrafos de Aimé Césaire, nem por Claude Couffon, que se ocupou da biografia de René Depestre. Entretanto, sua importância é fundamental para compreender o quadro teórico da formação das literaturas nacionais africanas.

Por outro lado, a entrevista de Andrade alude a indagações que tse fazem ainda hoje sobre a configuração da literatura produzida por grupos minoritários, pensada enquanto expressão de diferentes visões de mundo, que fogem ao endosso de cânones e de expressões artísticas das antigas metrópoles.

Lettre brésilienne”

(Réponse à Depestre, poete haïtien, qui à la suite d’Aragon avait prôné le retour aux formes classiques de la poésie française, sonnet etc.)

C’est une nuit de Seine
et moi je me souviens comme ivre
du chant dément de Boukmann1 accouchant ton pays
aux forceps de l’orage.

Depestre2

Vaillant cavalier du tam-tam est-il vrai que tu doutes de la forêt natale
de nos voix rauques de nos coeurs qui nous remontent amers
de nos yeux de rhum rouges de nos nuits incendiées
se peut-il que les pluies de l’exil
aient détendu la peau de tambour de ta voix

Laisse-là Depestre laisse-là la gueuserie solennelle d’un air mendié laisse-leur

Le ronron à l’eau fade dégoulinant
le long des marches roses
et pour les grognements des maîtres d’école assez

marronnons-les3 Depestre marronnons-les
comme jadis nous marronnions nos maîtres à fouet

Depestre j’accuse les mauvaises manières de notre sang
est-ce notre faute
si la bourrasque se lève
et nous désapprend tout soudain de compter sur nos doigts
de faire trois tours de saluer

Ou bien encore cela revient au même
le sang est une chose qui va vient et revient
et le nôtre je suppose nous revient après s’être attardé
à quelque macumba. Qu’y faire? En vérité le sang est un vaudou puissant

C’est vrai ils arrondissent cette saison des sonnets
pour nous à le faire cela me rappellerait par trop
le jus sucré que bavent là-bas les distilleries des mornes
quand les lents boeufs maigres font leur rond au zonzon
des moustiques

Ouiche! Depestre le poème n’est pas un moulin à
passer de la canne à sucre ça non
ei si les rimes sont mouches sur les mares
sans rimes toute une saison loin des mares
moi te faisant raison rions buvons ei marronnons

Gentil coeur avec au cou le collier de commandement de la lune
avec autour du bras le rouleau bien lové du lasso du soleil
la poitrine tatouée comme par une des blessures de la nuit
aussi je me souviens

au fait est-ce que Dessalines mignonnait à Vertières et pour le reste
que le poème tourne bien ou mal sur l’huile de ses gonds
fous-t’en Depestre fous-t’en laisse dire Aragon

Camarade Depestre
C’est un problème assurément três grave
des rapports de la poésie et de la Révolution
le fond conditionne la forme
et si l’on s’avisait aussi du détour dialectique
par quoi la forme prenant sa revanche
comme un figuier maudit étouffe le poème
mais non
je ne me charge pas du rapport
j’aime mieux regarder le printemps.

Justement c’est la Révolution
et les formes qui s’attardent à nos oreilles bourdonnant
ce sont mangeant le neuf qui lève mangeant les pousses
de gras hannetons hannetonnant le printemps.

Depestre
de la Seine je t’envoie au Brésil mon salut à toi à Bahia à tous les saints
à tous les diables
Cabritos cantagallo Botafogo
bate
batuque
à ceux des favellas

Depestre
bombaïa bombaïa
crois-m’en comme jadis bats-nous le bon tam-tam
éclaboussant leur nuit rance
d’un rut sommaire d’astres moudangs.

 

La machine Singer”4

A Mário [Pinto] de Andrade

Une machine Singer dans un foyer nègre
arabe, indien, malais, chinois, annamite
ou dans n’importe quelle maison
sans boussole du tiers monde
c’était le dieu lare qui raccommodait
les mauvais jours de notre enfance.
Sous nos toits son aiguille tendait
des pièges fantastiques à la faim.
Son aiguille défiait la soif.
La machine Singer domptait des tigres.
La machine Singer charmait des serpents.
Elle bravait paludismes et cyclones
et cousait des feuilles à notre nudité.
La machine Singer ne tombait pas du ciel.
Elle avait quelque part un père,
une mère, des tantes, des oncles,
et avant même d’avoir des dents pour mordre
elle savait se frayer un chemin de lionne.
La machine Singer n’était pas toujours
une machine à coudre attelée jour et nuit
a la tendresse d’une fée sous-développée.
Parfois c’était une bête féroce
qui se cabrait avec des griffes

et qui écumait de rage
et inondait la maison de fumée
et la maison restait sans rythme ni mesure
la maison ne tournait plus autour du soleil
et les meubles prenaient la fuite
et les tables surtout les tables
qui se sentaient très seules
au milleu du désert de notre faim
retournaient à leur enfance de la forêt
et ces jours-là nous savions que Singer
est un mot tombé d’un dictionnaire de proie
qui nous attendait parfois derrière les portes une hache à la main
!

 

Notas

1. Publicado originalmente em Sibila: Revista de poesia e crítica literária, ano 22, 17 jan. 2010.

2. Boukmann: Como já referido no texto, escravo que comandou uma revolta no Haiti no século XVIII.

3. Neste trabalho utilizou-se a versão do poema transcrita por Lilyan Kesteloot e B. Kotchy no texto “Aimé Césaire; l’homme et oeuvre”, Présence Africaine, Paris, 1973, pp. 109-111.

4. Marroner: Diz-se da ação dos negros escravizados que fugiram das plantações e que se embrenharam nas matas.

5. O poema de René Depestre analisado neste trabalho está em Claude Couffon, René Depestre. Paris: Éditions Seghers, 1986, pp. 159-160.

Referências

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PIRES LARANJEIRA, José Luís. A negritude africana de língua portuguesa. Lisboa: Afrontamento, 1995.

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* Maria Nazareth Soares Fonseca é Doutora em Literatura Comparada pela UFMG, estágio na Université de La Sorbonne Nouvelle, Paris (1982/1983 e 1992). Professora Aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas, período 1995-2018. Autora dos livros: Brasil afro-brasileiro (2000); Poéticas afro-brasileiras (2003); Literaturas africanas de língua portuguesa: percursos da memória e outros trânsitos (2008); Mia Couto: espaços ficcionais (2008); Literaturas africanas de língua portu-guesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015). Coorganizadora da coletânea Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Volume 4. (2011). Coordena, desde 2010, o Grupo de Estudos Estéticas Diaspóricas (GEED) que congrega pesquisadores de vários estados do Brasil e de várias cidades de Minas Gerais. A partir de 2021, coordena a seção literÁfricas, no literafro (UFMG)que tem como objetivo transformar-se em um canal de acervo, multiplicação e socialização de artigos críticos, resenhas, entrevistas e textos literários de escritores(as) africanos(as) e afrodiaspóricos(as).

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