A África na diáspora: figurações do trânsito
e cartografias de gênero em narrativas contemporâneas

 

 

Sandra Regina Goulart Almeida*

 

Partindo das novas configurações diaspóricas da contemporaneidade (nos termos teorizados por Gayatri Spivak), analiso duas narrativas de escritoras africanas que abordam o movimento de trânsito entre a África e o país de destino. Ao privilegiar esse olhar sobre o espaço contemporâneo do deslocamento, as autoras escolhidas – Ama Ata Aidoo e Bushi Emecheta – questionam e interrogam os múltiplos espaços de afeto e afiliação e a representação da África no imaginário da diáspora, ao mesmo tempo em que refletem sobre questões de gênero e etnia. Proponho discutir como essas autoras teorizam este espaço transnacional complexo e ambivalente e sua relação com o lar na África por meio de uma poética do espaço e do trânsito igualmente multifacetada.

O lar e todos os termos a ele relacionados – morada, casa, pátria, terra natal – tornaram-se tropos relevante na contemporaneidade, desvelando, ao mesmo tempo e de forma ambígua, o conceito de fixidez e também o de múltiplos deslocamento. “Sou uma tartaruga, onde quer que eu vá, carrego o lar nas minhas costas”, escreve Gloria Anzaldúa, em seu célebre Borderlands/La Frontera. O lar é, como sugere Tony Bennett, frequentemente “um lugar de um retorno imaginado”, como a imagem idealizada do lar materno e da pátria, mas também a possibilidade de outros destinos ao fim de uma viagem ou movimento, como a busca incessante de “um lar longe de casa” (2005, p. 163). Para outros, como a crítica literária e escritora diaspórica Myriam Chancy, o lar se torna “paradoxalmente tanto o local de descoberta de si mesma quanto o ponto sem volta” (1997, p. xi). É, ao mesmo tempo, a negação da possibilidade de encontrar esse ideal quimérico, como comprova o conhecido dito popular, “não há melhor lugar do que o nosso lar”, ou como escreve bell hooks, “às vezes, o lar não está em lugar nenhum” (1990, p. 148), ou como comenta apropriadamente Caren Yamashita, em Circle K Cycles, “o lar era uma cópia de uma cópia de uma cópia de uma cópia, mais distante do que ela podia imaginar” (2001, p. 147). O lar é, portanto, inerentemente contraditório, um espaço de contestação, como argumenta Carol Boyce Davies (1994, p. 113), mas também um lócus de múltiplas possibilidades representativas, pois, como nos lembra o escritor Salman Rushdie, “o lar se tornou um conceito muito disperso, avariado, diverso em nossos trabalhos atuais” (1996, p. 93).

Rosemary George teoriza o conceito em termos de uma “política do lar”, pois “lares não são lugares neutros” e, por isso, “imaginar um lar é um ato tão político quanto imaginar uma nação” (1996, p. 6). A contínua referência a uma bagagem que deve ser transportada de um território a outro, ou de um lar originário para outro possível, é um tropo comum nos textos diaspóricos que remete à condição de deslocamento dos sujeitos migrantes em suas múltiplas experiências do trânsito e à necessidade de transplantar tanto as bagagens pessoais quanto o legado cultural que consigo carregam. Como observa George, o gênero imigrante, ou o que aqui denomino de narrativas da diáspora, é marcado “pelo uso excessivo da metáfora da bagagem, tanto espiritual quanto material” (1996, p. 8). A inevitável associação do movimento de trânsito com a bagagem cultural e material que acompanha os sujeitos surge em destaque nas narrativas aqui analisadas. Essa bagagem, porém, nem sempre encontra lugar na nova morada e deve, por vezes, ser deixada para trás. Em outros casos, tal bagagem acaba sendo substituída por outra mais leve ou então transplantada de volta ao país de onde partiu. Mais do que pensar o lar apenas do ponto de vista político, pode-se teorizar esse espaço figurativo através de uma poética do lar, como também argumentam Davies (1994), Susan Stanford Friedman (2004) e Diana Brydon (2008). Para Friedman, essa percepção do lar como uma imagem sempre postergada levaria a uma poética do deslocamento ao se reconhecer o lar como um “não lugar” ou “nenhures”, ou seja, como um espaço que, ao ser deixado para trás e se tornar algo sempre por devir, se materializa como a fonte do discurso e da escrita (2004, p. 192-205). Como aponta Davies, “a migração cria um desejo pelo lar, que por sua vez produz a reescrita do lar” (1994, p. 113). Assim, ao se teorizar sobre o lar na contemporaneidade é fundamental “teorizar a política e a poética” das articulações desse relevante conceito móvel, instável e itinerante que é também um tropo “retórico de considerável poder emocional”, como argumenta Brydon (2008, p. 3).

Ao mesmo tempo em que o lar aponta para o espaço doméstico, também indica o espaço público da política na pátria, na terra natal. A escritora da diáspora desestabiliza, então, como aponta Davies, tanto a narrativa uniforme e harmônica do lar quanto a da nação. Escrever o lar se torna ainda uma forma de articular as várias identidades em trânsito (Davies, 1994, p. 113-115). A relevância da categoria para os estudos da diáspora é inegável, especialmente quando se considera que o conceito de lar está irremediavelmente imbricado no feminino, como demonstram vários críticos (Cf. Bennett, Brydon, Friedman, George), revestido de um significado outro como um espaço conflituoso que se desloca entre a esfera privada e pública. Como destaca George, pode-se falar de uma “feminização do lar”, pois “a palavra ‘lar’ imediatamente conota a esfera privada da hierarquia patriarcal, da autoidentidade gendrada, do abrigo, do conforto, da nutrição e da proteção” (1996, p. 1, 23). O lar na diáspora, porém, assume conotações outras que vão além desse espaço de conforto e abrigo para designar os espaços de adesão emotiva que se tornam cada vez mais móveis nesse contexto, em um constante movimento de adiamento, reformulação e reconsideração. Ademais, o mesmo espaço geográfico do lar pode dar origem a um sentimento contraditório tanto de pertença e segurança quanto de deslocamento e terror, pois como ressalta Avtar Brah, “o desejo por um lar não é a mesma coisa que um desejo pela terra natal”. Assim, “nem todas as diásporas sustentam uma ideologia de ‘retorno’” (1998, p. 180). O retorno ao lar, Chancy observa, se complica pela lacuna entre “o sonho da repatriação para nossas ilhas e/ou nossas culturas e a concretização desse sonho” (1997, p. 165), ou poderíamos afirmar com Stuart Hall que é “impossível ‘voltar para casa’ de novo”, no sentido que o lar imaginado nunca será o mesmo depois da diáspora e do trânsito, pois uma cultura nunca se repete perfeitamente longe de casa (2004, p. 416).

É exatamente a ideologia de retorno como um tropo recorrente em duas obras de escritoras africanas – Aidoo e Emecheta – que me interessa analisar aqui. O conceito de nostalgia, como observa John Durham Peters, além de marcar a dor de rememorar uma terra perdida no espaço e no tempo, é mais um “agente cultural produtivo”, do que simplesmente o produto da perda de um referencial (1999, p. 30). A ênfase no lugar móvel do lar e na nostalgia por um retorno ao lar/pátria pode, assim, ter significados distintos para os muitos sujeitos e personagens das narrativas da diáspora.

Então não é nem aqui nem lá” (Aidoo, 1977, p. 5). Assim Ama Ata Aidoo inicia seu romance Our Sister Killjoy, de 1977, chamando a atenção justamente para a característica de entre-lugar das experiências dos sujeitos em trânsito. Geralmente descrito como uma narrativa semiautobiográfica e fortemente marcado pela literatura oral e pela performance, o romance questiona os movimentos da diáspora e o papel das mulheres nesse contexto, apresentando uma narrativa desestabilizadora e experimental que combina ficção, autobiografia, poesia, epístolas e drama. Dessa forma, a narrativa de Aidoo privilegia a ruptura linguística e narrativa e estabelece uma fratura textual por meio de uma narrativa fragmentada que, além de misturar várias formas literárias, elege a ironia e a paródia como marcadores de um discurso inquietante. A ação desestabilizadora de Aidoo é dupla: na poética do texto e na política de seu posicionamento em termos de questões raciais e de gênero. Nascida e residente em Gana, Aidoo, que já viveu nos Estados Unidos, foi uma das primeiras escritoras, na década de 70, a tratar os deslocamentos geopolíticos da contemporaneidade do ponto de vista da mulher. A narrativa de Aidoo se localiza em um momento histórico na literatura pós-colonial que apresenta um forte apego a um nacionalismo que faz do artefato literário um de seus principais objetos de luta, como Elleke Boehmer observa (2005, p. 214). A forma narrativa é claramente apropriada da tradição nacionalista da viagem de busca; no entanto, diferentemente do realismo típico dos romances nacionalistas de escritores masculinos da década de 60, o romance de Aidoo prima pela heterogeneidade de estilo e posições enunciativas. Enfoca principalmente uma metanarrativa mítica da viagem de exílio e do retorno de um sujeito feminino em busca de uma compreensão sobre seu lugar no mundo pós-colonial e de sua condição como mulher proveniente de um país africano em visita à metrópole. Como a voz narrativa observa em um dos poemas estrategicamente inserido no romance:

In Asia                                                Na Ásia
Europe                                               Europa
Anywhere:                                          Em qualquer lugar:

For                                                        Pois
Here under the sun,                             Aqui na Terra,
Being a woman                                    Ser uma mulher
Has not                                                 Não era
Is not                                                    Não é
Cannot                                                 Não pode
Never will be a                                     Nunca será uma
Child’s game                                        Brincadeira de criança
From knowledge gained since –          A partir do conhecimento adquirido –
So why wish a curse on your child      Porque então desejar uma maldição para sua filha
Desiring her to be female?                  Almejando que ela seja mulher?
Beside, my sister,                                Além disso, minha irmã,
The ranks of the wretched are            A classe dos condenados estão
Full,                                                     Cheias,
Are full. (1977, p. 51)                          Estão cheias

O poema remete à afirmação de Spivak (2010) de que, no contexto colonial e pós-colonial, as mulheres estão ainda relegadas a um espaço de exclusão. No entanto, o sofrimento da personagem central é dirigido primeiramente para a “perda coletiva” (1977, p. 67) e a luta contra o uso e abuso de seus irmãos africanos e a exploração europeia. O motif da viagem, como Boehmer enfatiza, fornece uma estrutura simbólica significativa em textos pós-coloniais, cujas narrativas de deslocamento geralmente são marcadas pelo evento culminante do retorno ao lar, um momento que aparece de diferentes formas, como uma celebração, por um lado, ou uma desilusão, por outro (2005, p. 190-191). O romance inicia com um poema cuja imagem permeia essa narrativa da viagem e do deslocamento – a da exclusão e da impotência. A voz narrativa, então, apresenta Sissie (frequentemente evocada como “nossa irmã” [our sister]), uma africana de Accra, Gana, que acaba de ser selecionada para um programa de estudos na Europa. Já no aeroporto que é o lugar do trânsito contemporâneo por natureza, um espaço liminar, um entre-lugar – ela tem sua primeira experiência de exclusão quando é forçada a perceber não apenas “as diferentes colorações dos humanos”, mas também como essas diferenças se tornam desculpas para a repressão e exclusão (1977, p. 13).

O sentimento de alienação e de desterritorialização permanece durante toda sua estada na Alemanha e sua rejeição ao país demonstra sua consciência da discriminação que sofre na pele e por causa dela. Sua ida para a Inglaterra não modifica sua percepção de que são todos simplesmente “recipientes das sobras dos dejetos imperiais” (p. 86). Na Inglaterra, Sissie percebe o quanto os sujeitos migrantes são explorados e se choca com a estarrecedora pobreza na qual estão imersos. Ela critica os chamados been-tos, isto é, aqueles que vão para a Grã-Bretanha para estudar e acabam voltando para a terra natal com a ilusão de que algo de muito valioso lhes foi dado, quando na verdade, ela descobre, a periferia não tem o que obter do centro, a não ser um tipo pior de escravidão (p. 88). A narradora observa ainda como os been-tos mantêm esse codilho e mentem, agindo como se a experiência do trânsito tivesse sido libertadora, sendo gratos pelas migalhas oferecidas e esquecendo rápido demais as agruras sofridas. Pior ainda é o que ela percebe como sendo a cegueira dessa própria multidão oprimida que assume o papel dos “informantes nativos”, sobre o qual nos fala Spivak (1999). No poema que se segue, a voz narrativa, evocando a perspectiva de Sissie, expressa de forma contundente o papel inquietante que assumem esses sujeitos nativos: “Por alguns trocados agora e um/ Diploma de Doutorado depois,/ Nos conte sobre/ Seu povo/ Sua história/ Sua mente/ (...) Entregando/ Não apenas eles mesmos, mas/ Todos nós” (p. 87-88). Nesse sentido, Aidoo claramente segue a tradição de Fanon com seu discurso crítico e nacionalista de denúncia. Acusa os europeus de “violarem/estuprarem a África” (“Opening/ África up for/ Rape”) (p.92), usando para expressar sua indignação e condição vitimizante essa antiga, mas persistente, metáfora que desvela uma equação entre a violação do corpo feminino e a exploração e destruição da terra colonizada.

Ao final, Sissie simbolicamente encerra suas experiências na diáspora com uma missiva, fazendo uso de uma linguagem nascida de sua vivência de desterritorialização e deslocamento. Escreve uma longa e reflexiva carta a um ente querido no qual descreve toda sua frustração e suas crenças sobre esse espaço da diáspora construído a partir das migrações da África para a Europa. Nesse sentido, o deslocamento geográfico a que foi submetida lhe dá a medida exata de suas limitações, mas também potencializa a estética do deslocamento. Agora Sissie pode escrever tanto sobre seus sentimentos sobre a terra natal, quanto sobre suas experiências de deslocamento, pois ela tem as palavras, a linguagem e o conhecimento que antes lhe faltavam. O retorno ao lar é inevitável para essa “irmã desmancha prazeres”, à qual o título alude (Our Sister Killjoy), que escolhe a pátria, o lar como espaço afetivo e lugar no qual poderá investir e lutar por melhores condições de vida e, principalmente, pela conscientização de seu povo. Ela acusa os irmãos e irmãs que, ao invés de cumprirem seus objetivos iniciais de estudarem e retornarem ao país natal para contribuir para sua construção, acabam seduzidos pela metrópole e se tornam sujeitos “sem pátria”, empobrecidos, destituídos e em contínua itinerância. Sissie critica precisamente a noção hoje difundida de que “onde quer que uma pessoal se sinta em casa, esse deve ser o seu lar” (p. 125). Ao invés de aceitar tal premissa, ela implora a esses homens e mulheres da diáspora africana pós-colonial: “volte para casa (...) volte para o nosso povo” (p. 126). Na epístola-testemunho está implícito que o ente querido não compartilha de sua ideologia do retorno e ela o recrimina por “querer ficar para sempre em lugares estrangeiros” e se tornar desterrado e aculturado (p. 117). E conclui falando justamente do seu lócus próprio de enunciação, do lugar da mulher forte que, apesar de ter sido supostamente educada nas “virtudes da mulher africana” (p. 117), sendo acusada da “falta de instintos femininos”, consegue ser consciente e crítica da situação de exploração que vivencia: “Não, meu querido: parece que muito da ternura e da submissão que você e todos seus irmãos esperam de mim e de todas as irmãs é aquilo que é realmente ocidental” (p. 117). Assim, Sissie reverte o esperado parâmetro das mudanças nas relações de gênero ocasionado pela diáspora. Para se sujeitar a viver no Ocidente, teria que se submeter aos tradicionais papéis de gênero dela esperados. Em sua terra, com o histórico de luta que compartilha com seus irmãos, acredita que pode articular sua voz e ter uma posição mais ativa e mais agenciadora. O espaço do lar é ainda o espaço no qual sua experiência gendrada pode ser melhor articulada em termos políticos.

Tendo ao fundo a voz inquiridora e articuladora de Sissie, o romance termina com a protagonista chegando de volta a seu país, concluindo que ela jamais enviaria a carta que redigiu no traslado de retorno, pois não havia mais necessidade. Uma vez escrita, ela havia cumprido sua missão reparadora, pois como lembra Nelly Richard “a escrita é o lugar onde este espasmo da revolta opera mais intensivamente” (2002, p. 139). A escrita aqui se torna, pois, o veículo de sua “revolta espasmódica”, bem como o ponto de encontro de Sissie e seu lar: “Abaixo estava seu lar com seu inevitável calor e, mesmo depois desses milhares de anos, suas incertezas” (p. 133), mas é o lar onde seu coração está, e também seu compromisso e dever para com seu povo. A escrita e a literatura que preconizam esse retorno ao lar e à nação idealizados podem ainda ser associadas ao que o também ganense Appiah descreve como sendo o nativismo dos escritores africanos, ou seja, a crença em uma topologia que reitera a visão sentimental de uma essência comunal africana em um contraponto binário a uma suposta universalidade europeia que apagaria os particularismos (1992, p. 56). Como Appiah, Hall (2003) relata o risco de se incorrer em um discurso nativista acrítico que reforça essencialismos identitários e a crença em uma subjetividade idealizada, una e estável. Se, por um lado, a narrativa de Aidoo, com sua ênfase na dicotomia “nós/eles”, corre o risco de reproduzir uma imagem estereotipada do trânsito e das relações transnacionais, por outro, o romance deve ser analisado em seu contexto histórico de uma narrativa ainda recente do período pós-colonial que, como aponta Boehmer (2005), necessita se afirmar não apenas como espaço literário, mas também como espaço articulador da nação e da resistência pós-colonial.

No entanto, nem sempre as narrativas da diáspora que enfocam os sujeitos femininos cultuam o retorno como uma opção de agenciamento. Em alguns casos a diáspora se torna um espaço no qual as relações de gênero assumem uma dimensão outra inviabilizando o retorno para as personagens femininas. Diferentemente das narrativas de retorno de Aidoo, Emecheta aborda no romance Kehinde (1994) uma outra ideologia do retorno, com a qual as personagens femininas não podem compactuar. Nascida na Nigéria, Emecheta se mudou para a Grã-Bretanha nos 60 para estudar, enfrentando uma realidade similar à da personagem Sissie. Em Kehinde a autora aborda, em especial, o ambíguo lugar ocupado pelas mulheres na diáspora. O romance narra a estória da protagonista, Kehinde, cujo nome dá título ao romance, e seu marido Albert. Ambos saíram da Nigéria para viver em Londres, onde nasceram seus filhos, Bimpe e Joshua. Já no primeiro capítulo a situação de conflito se estabelece quando Albert recebe uma carta da família instigando-o a retornar à terra natal. A reação de Kehinde é imediata, “alguma coisa agourenta torceu no estômago de Kehinde” (1994, p. 1). A situação do casal na diáspora, somos informados logo de início, é bem diferente daquela que se esperaria de um casal na Nigéria. Kehinde tem um trabalho estável em um banco e ganha mais do que seu marido. Instala-se assim um jogo das relações de gênero que procura equilibrar as tradições do país de origem e as novas perspectivas adquiridas no país de destino – ambos sabendo se tratar de uma mera performance. De fato, a voz narrativa destaca ao longo do relato as muitas diferenças nas relações de gênero nos contextos específicos dos dois países, desde a responsabilidade pela manutenção da família, até o relacionamento interpessoal e sexual do casal. Apesar de encenar com perfeição o papel do “pai de família Igbo em Londres”, Albert não se sente satisfeito com as restrições em sua atuação, como a voz narrativa perspectivada por sua visão nos informa: “Kehinde iria aprender quando retornasse para casa como ela deveria se comportar. (...) Como Kehinde sabia perfeitamente bem, por trás das aparências de ocidentalização, o homem tradicional Igbo estava vivo e forte, esperando por uma oportunidade para reivindicar seu direito inato” (p. 35). Tal observação, igualmente agourenta, funciona como um prenúncio da ação que se desenrola no romance.

Descobre-se, a seguir, que Albert, mesmo sem a aprovação de Kehinde, já havia decidido seu retorno para a Nigéria, fato complicado por sua gravidez inesperada. O retorno significa para Albert o reconhecimento da masculinidade que ele sente que perdeu na diáspora: “aqui não sou ninguém, apenas um gerente de loja”. Ele afirma querer “a vida comparativamente mais fácil dos homens” de sua terra, se sentir um chefe de família (p. 35). Nesse sentido, observa-se o que Boehmer denomina de a inevitável “feminização dos homens colonizados diante do império” – uma imagem recorrente nas narrativas pós-coloniais e da diáspora (2005, p. 216). No caso de Albert e Kehinde, o que chama a atenção é o deslocamento das questões de gênero no espaço ambíguo da diáspora. Há uma frequente oscilação, tanto para Albert quanto para Kehinde, com relação à percepção das várias questões que estão em jogo em seu relacionamento no país estrangeiro, cada um encenando um papel para o outro em um constante deslize e adiamento para lidarem com seus fantasmas. Tal enfretamento ocorre apenas longe da diáspora, na ideologia do retorno através da qual Albert resgata de uma vez por todas as tradições nas quais havia sido doutrinado e opta por aderir. Ao aborto de Kehinde se segue a concretização do sonho nostálgico de retorno ao lar de Albert, enquanto Kehinde aguarda em Londres até que ele se estabeleça e ela venda a casa.

A viagem mais uma vez marca a narrativa dessa personagem diaspórica em busca do lar perdido, uma viagem, como a de Sissie, também de autoconhecimento e reflexão sobre as condições das mulheres em diferentes espaços geopolíticos. Dois anos depois, o retorno de Kehinde é marcado pelo choque cultural que se segue ao descobrir que Albert havia desposado uma outra mulher, educada e sofisticada, que apesar de seu doutorado, ainda mantinha as tradições patriarcais e já havia dado a Albert um filho e esperava outro, “operando em conformidade com o sistema que perpetrava esse tipo de injustiça” contra as mulheres (p. 112). Apesar de ambos pertencerem a famílias polígamas, tanto Kehinde como Albert foram criados como católicos e antes recusavam a prática de poligamia de seus antepassados. O retorno de Albert restaura também as práticas sexistas que marcam as relações de gênero na Nigéria, com as quais Kehinde se recusa a compactuar e, assim, o retorno ao espaço do lar evoca também a restituição das tradicionais práticas patriarcais e estabelece definitivamente uma fratura entre eles – “o Albert que ela conhecia havia deixado de existir” (p. 87) e assim “não mais havia lugar para ela nesta família” (p. 91): “Aqui o mundo é dos homens. Não é surpresa que tantos querem voltar para casa, apesar do sucesso no exterior” (p. 94). Kehinde reconhece então que a Nigéria de seus sonhos não existia e que, ao invés de aproveitar sua condição de been-to e madame da casa, ela estava “ainda mais relegada às margens” (p. 97), como uma esposa sênior, mas sem emprego, dependendo de Albert financeiramente, sem espaço em seu novo lar.

Ao final, Kehinde consegue dinheiro emprestado e retorna para a Inglaterra e se surpreende ao ouvir a voz de seu “Taiwo”, o espírito de sua irmã gêmea rebelde, morta antes de seu nascimento: “lar, doce lar!” A imagem da irmã gêmea, Taiwo, que remonta à tradição oral iorubá que denomina o gêmeo que nasce primeiro, simboliza de certa forma o duplo que dá a Kehinde (o nome da segunda gêmea a nascer) a força que por vezes lhe falta para ser assertiva em suas escolhas. Kehinde acredita que é Taiwo que vai à frente abrindo o caminho para ela. Quando Kehinde responde: “Este não é o meu lar. A Nigéria é meu lar”, Taiwo responde: “Fazemos nossas próprias escolhas enquanto prosseguimos. (...) Essa é a sua. Não há nada do que se envergonhar” (p. 108). Por meio da suposta voz de seu Taiwo, Kehinde consegue chegar a resolução para a dualidade que encontra diante do paradoxo do lar, tornando-se finalmente unida a seu Taiwo. Em um ato simbólico, ela retira a placa de venda da casa e declara “esta casa é minha” (p. 108), evocando o famoso argumento do ensaio crítico Um teto todo seu, da escritora inglesa Virginia Woolf, publicado em 1929. É também seu duplo que a encoraja a estudar, a viver por si só, a se relacionar com um inquilino caribenho mais novo do que ela e, finalmente, a desafiar as atitudes machistas de seu filho. Para Kehinde, a viagem de retorno à terra natal torna-se um aprendizado em termos de relações de gênero, pois não apenas compreende as limitações do conceito lar, mas também aprende a clamar por seus direitos, a decidir sua própria vida e a transgredir os limites impostos pelos papéis de gênero demarcados socialmente.

Assim, Kehinde intervém na dinâmica do devir em trânsito e na comunidade na qual escolhe se inserir. Ao rejeitar o retorno ao lar e a narrativa que constrói as mulheres como portadoras da tradição, principalmente, no trânsito, conforme teoriza Sneja Gunew (2008, p. 9), privilegia o pessoal, o privado ao invés de optar pela ação política ou por uma atitude nacionalista e nativista como faz a protagonista de Aidoo, cuja decisão de retorno ao lar tem consequências profundas para sua vida privada. As posições de Kehinde ecoam o argumento de Anh Hua segundo a qual “algumas mulheres diaspóricas podem não se sentir nostálgicas porque seus lares eram locais de violência e patriarcados culturais, nacionalistas e transnacionalistas”. Nesse sentido, as mulheres na diáspora são menos prováveis de ter memórias nostálgicas sobre o lar pelas “dolorosas lembranças das atitudes, costumes e tradições patriarcais” na terra natal (2005, p. 195). Embora ainda polarizada, a concepção do lar na e da diáspora que Kehinde constrói, no entanto, longe de ser um lar idealizado, é, antes de tudo, um lar em potencial e em construção que dá a ela uma possibilidade de intervenção prática e de agenciamento, mudando as configurações de gênero às quais esteve durante tanto tempo atrelada e problematizando um padrão de comportamento que é complicado pelo trânsito.

A análise dos dois romances evidencia a heterogeneidade das diásporas contemporâneas e o movimento em direção a uma quebra de um modelo que pressuporia uma clara distinção entre a percepção do lar e a experiência da diáspora, ou entre a terra natal e o país anfitrião. Para muitas escritoras que abordam os trânsitos na contemporaneidade e para suas personagens, as questões de gênero efetuam uma desestabilização, uma rasura que marca a maneira como os movimentos da contemporaneidade são percebidos. Não há uma única narrativa da diáspora nem tampouco uma única experiência das mulheres na diáspora. O que se observa é justamente a possibilidade de diversos percursos e variadas percepções do lar na e da diáspora, ou seja, uma multiplicidade de espaços associados a uma possível concepção de lar. Os romances aqui analisados têm em comum o fato de enfatizarem um processo de agenciamento para esses sujeitos femininos no espaço transnacional de mobilidade de sujeitos das margens – quer seja pela ideologia do retorno ou pela opção pelo trânsito, ao invés de adotarem um discurso vitimizante ou marginalizante. As personagens abordadas falam de um lugar específico marcado pelas questões de gênero, mas também inevitavelmente respaldadas pelas questões raciais e étnicas. São, acima de tudo, diásporas racializadas e gendradas que são concebidas na esteira teórica de uma escrita do trânsito.

 

Nota

Originalmente publicado como capítulo do livro organizado por Maria Nazareth Soares Fonseca e Maria Zilda Ferreira Cury, intitulado África: dinâmicas culturais e literárias (Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2012). Pesquisa realizada com o apoio do CNPq e da FAPEMIG.

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* Sandra Regina Goulart Almeida é Professora titular de Estudos Literários da UFMG. É Mestre e Doutora pela Universidade da Carolina do Norte, EUA, com pós-doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Columbia. É pesquisadora do CNPq e da Fapemig e desenvolve pesquisa na área de estudos de gênero, estudos da diáspora, literaturas pós-coloniais e literatura comparada. É autora de Cartografias contemporâneas: espaço, corpo, escrita. Coeditou vários livros, entre eles Mobilidades culturais: agentes e processos, Migrações teóricas, interlocuções culturais: estudos comparados. Em 2022, foi reconduzida ao cargo de Reitora da Universidade Federal de Minas Gerais.

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