Sonhos, Sangue, Perplexidades, Esperança...
— um percurso pela poesia da Guiné-Bissau

 

Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco¹

 

À Odete, para quem “a palavra é superior à pólvora”

e, por isso, pode tornar-se suave e dizer a vida.

 

Os alicerces do sonho e a busca da liberdade

Estudiosos das literaturas africanas de língua portuguesa assinalam o início da literatura da Guiné-Bissau nas décadas de 1920 e 1930, quando surgiram os primeiros textos escritos cuja temática se ocupava da natureza guineense. Destacam, por exemplo, Poemas, de Carlos Semedo, poeta da Ilha de Bolama. Nessa fase, segundo Inocência Mata, a literatura apresentava, ainda, uma visão colonial, pois, apesar de a temática estar ligada à terra, «os textos, ideologicamente, efectuavam, na verdade, uma apologia do colonizador» (Mata, 1995: 359).

A fase nacional da literatura guineense começa a se delinear, timidamente, com António Baticã Ferreira, cujos poemas buscam a identificação com a terra natal, tratada ainda idilicamente. O autor figura em Poesia e ficção (1972) e em Poilão (1973), caderno de poesias de onze autores, publicado pelo Grupo Desportivo e Cultural do Banco Nacional Ultramarino. Baticã, por ter vivido fora da Guiné, passa em seus versos a angústia do exílio e canta a saudade da infância vivida na terra natal.

Podemos afirmar que, entre 1945 e 1977, a literatura produzida na Guiné-Bissau caracterizava-se por uma dicção guerrilheira e nacionalista, que combatia, criticamente, o colonialismo português, a miséria, a exploração. No quadro desse nacionalismo libertador, dois poetas se singularizaram no panorama literário bissau-guineense: Amílcar Cabral, cuja obra poética foi escrita entre os anos 1940 e 1950, e Vasco Cabral, cujos poemas iniciais datam de 1955.

Amílcar é, por vezes, arrolado também em antologias cabo-verdianas, pois, embora nascido na Guiné, era filho de cabo-verdiano e viveu grande parte da adolescência e juventude em Cabo Verde. Ele foi o grande mentor intelectual das lutas libertárias do PAIGC. Em A arma da teoria, defendeu a urgência da politização dos povos africanos oprimidos, ressaltando o imperativo da luta de libertação nacional, compreendida como ato de cultura: «Um povo que se liberta do domínio estrangeiro não será culturalmente livre, a não ser que [...] retome os caminhos [...] de sua própria cultura» (Cabral, 1978: 225).

Vasco Cabral pertence também a essa geração dos sonhos. Foi indicado, por vários estudiosos das letras africanas, como marco da literatura nacional guineense; começou a produzir na mesma época em que se dava o nascimento da moderna poesia angolana e moçambicana. Companheiro de Amílcar Cabral na Casa dos Estudantes do Império (CEI), em Lisboa, Vasco participou do movimento que propugnou por dar visibilidade à poesia negra escrita em língua portuguesa. Conviveu na CEI com Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Eduardo Mondlane, Mário de Andrade e outros. O poeta clamou pela coragem e determinação nacionalista de seu povo para se livrar da opressão colonial portuguesa. Em 1981, publicou A luta é a minha primavera, cujos poemas se apresentam como canto épico em prol da libertação da Guiné.

Na ocasião da independência da Guiné-Bissau, pouquíssimos eram os poetas e escritores que haviam conseguido editar suas obras. As antologias poéticas tiveram, assim, um papel importante na divulgação da produção literária guineense e contribuíram para a formação de um paradigma literário nacional. Tentando atenuar os problemas econômicos dos autores que não tinham condições de custearem suas publicações individualmente, as coletâneas surgiram como representações coletivas das vozes poéticas existentes no país. Data de 1977 a primeira antologia, Mantenhas para quem luta!a nova antologia da Guiné-Bissau (“mantenhas”, em crioulo, significa “saudações”), reunindo, entre outros, os poetas Hélder Proença e José Carlos Schwarz. A segunda, a Antologia dos jovens poetas — momentos primeiros da construção, sai em 1978 e, no ano seguinte, em Bolama, é publicada uma terceira, intitulada Os continuadores da revolução e a recordação do passado recente (1979).

A estética dessas coletâneas pautava-se, principalmente, por uma dicção social que fazia a denúncia da repressão colonialista; os poemas celebravam a libertação, exaltavam heróis guerrilheiros, entre os quais Amílcar Cabral. Além dessa dimensão ideológica, muitos poemas cantavam a necessidade de afirmação da Mãe-África, da identidade negro-africana e a utilização do crioulo como língua literária. José Carlos Schwarz consagrou-se como um dos poetas dessa vertente crioula da poesia guineense.

Em Mantenhas para quem luta, Hélder Proença, além de prefaciador, ao lado de outros poetas, é uma voz atenta que se rebela contra o imperialismo e a escravidão: «As lágrimas que se desprendem são teu suor!/ O suor da tua escravatura!/ ÁFRICA MÁRTIR» (Proença, 1993: 48–49). Suor e sangue são metáforas recorrentes da opressão colonial, mas se convertem, também, em líquidos germinantes de esperança nos versos dos poetas dessa geração: «Minha indignação, Mãe África/ é o florescer da esperança,/ […]/ é a minha juventude encarnada nos ideais de Amílcar» (Proença, 1993: 49)

Mantenhas para quem luta! pode ser entendida como uma das balizas da poesia guineense nacionalista, pois colige poemas nos quais os sonhos expressam a utopia da nação, enquanto o sangue se configura ambivalente, ora remetendo às veias abertas e dilaceradas pela exploração, ora significando uma espécie de alimento revolucionário de expectativa em relação à libertação. Os poemas “Camarada Amílcar” (Regalla, 1993: 9) e “Aquela lágrima de sangue” (Regalla, 1993: 11) são exemplos desse tipo de poesia, em que pulsa “o sangue da revolta”, a indignação pela morte dos trabalhadores inocentes de Pidjiguiti.

Muitas composições poéticas do período pós-independente — entre as quais as de Hélder Proença, Agnelo Regalla, António Soares Lopes (Tony Tcheka), Pascoal D’Artagnan Aurigema, Francisco Conduto de Pina, Félix Sigá —, conquanto façam críticas ao social e percebam as incertezas do presente, ainda demonstram certa crença num mundo melhor. Em Não posso adiar a palavra, Hélder Proença reafirma a estética de compromisso com os ideais de Amílcar Cabral: «sobre charcos de sangue/ nós cantaremos/ […] e conhecerão a força do nosso canto!» (Proença, 1982: 33).

Os avessos da esperança e o limiar de uma escrita que resiste à catástrofe

A seção anterior encerrou com versos de Hélder Proença que remetem ao tempo das utopias de construção da nação guineense. Mais recentemente, contudo, na Guiné, esse canto perdeu a força e o encanto, tendo sido brutalmente calado. O assassinato de Hélder Proença, em 2009, decretou o fim dos sonhos de Amílcar, a exacerbação de uma era de catástrofes e perplexidades.

Em ensaio datado de 1994, o sociólogo Carlos Lopes já alertara para o modo como o sonho nacionalista se distanciara da conceção de Amílcar, ao ser posto em prática por algumas das administrações políticas do Estado que reduplicaram determinadas práticas, estruturas e modelos advindos da potência colonial, sem respeitar a historicidade própria dos grupos étnicos autóctones (Lopes, 1994).

Appiah partilha dessa opinião quando explica que o ocorrido em muitos países africanos após suas independências é que muitos deles perpetuaram vivências conjunturais e vícios próprios dos Estados coloniais. (cf. Appiah, 1997: 230)

Centremo-nos nos anos 1990, quando se acentuaram, na Guiné, os processos histórico-sociais desencadeadores dos avessos da esperança, instalando, não só nas consciências de muitos poetas, intelectuais e cidadãos do povo, mas também na pele dos poemas, uma descrença frente às antigas promessas e ideologias libertárias.

Como nas literaturas de Angola, Moçambique e Cabo Verde, também na poesia da Guiné-Bissau da pós-independência, em razão do não cumprimento de justiça e igualdade sociais, o desencanto deu lugar a uma poesia que se afasta do tom épico-revolucionário, enveredando por um lirismo intimista. O nós guerrilheiro da poética de luta foi, em alguns poetas, substituído por um sujeito poético que assume a primeira pessoa do singular. Relações amorosas passam a inspirar as criações literárias: «Embebedo-me/ Na paixão da alma/ E na dor do amor» (O. C. Semedo, 1996: 81).

Nos dois livros de Odete Semedo, Entre o ser e o amar e No fundo do canto, o amor está presente na valorização das pessoas, das tradições, dos rituais, dos costumes, enfim, da terra guineense. Em meio à memória de guerras que destroçaram a Guiné, os poemas de Odete são hinos aos sentimentos e à necessidade de escrever, de poetar e “poemar”, para não sucumbir diante das atrocidades e para deixar registrada a própria história. Escrever se torna, antes de tudo, uma forma de sobreviver e resistir.

Desde seu primeiro livro, com clareza em relação às fissuras identitárias existentes no país, Odete questiona em que língua escrever: no crioulo, língua dos afetos e sensibilidades locais? ou no idioma português que foi imposto pelos colonizadores? Há, em seus versos, a consciência de que a colonização portuguesa usou a língua como um dos principais agentes de imposição cultural e política, subalternizando a língua do outro. Com lucidez, o sujeito poético percebe que o crioulo é a língua das raízes guineenses, das afetividades, da oralidade, da fala, enquanto que o português é a língua da escrita imposta pelos colonizadores europeus:

[…]
Em que língua escrever
Contando os feitos das mulheres
E dos homens de meu chão?

Como falar dos velhos
Das passadas e cantigas?
Falarei em crioulo?
Falarei em crioulo!
Mas que sinais deixar
Aos netos deste século?
[…]
Deixarei o recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo
[…]
(Semedo, 1996, p. 11)

Assim, conclui o eu-lírico: «netos e herdeiros/ saberão quem fomos» ( O.C. Semedo, 1996: 13). Apesar de haver, nos poemas de Odete, a constatação de crises internas que desestabilizaram o tecido social guineense, perpassa, por seus versos, uma tênue esperança de que, um dia, seu país se harmonize e seu povo, formado por tantas etnias, possa melhor se entender.

No fundo do canto se constitui, segundo Moema Augel, como um “cantopoema” (apud O.C. Semedo, 2007: 185) desesperado de preservação das identidades da terra. A crença nos irans, os ritos tradicionais, o emprego intencional do crioulo, as canções das Mães-Grandes, tudo se mistura às lembranças dos horrores das guerras, aos desejos de esquecer a barbárie e de lembrar, apenas, costumes, paladares, religiosidades locais. Os traumas da guerra, a dor e o sangue da Guiné são, crítica e poeticamente, revisitados pela escrita de Odete. Não só o poder de recordar se faz transgressor, porém, principalmente, o emprego do kriol.

Também Tony Tcheka usa, subversivamente, o crioulo em sua poética, mesclando-o ao português. Tem clareza — assim como Odete e outros poetas, linguistas, educadores — de que um «povo sela a sua libertação, na medida em que reconquista a sua palavra» (Freire e Guimarães, 2003: 29); para o referido poeta, a utilização das línguas guineenses é uma forma de assumir sua pertença identitária: «nas batidas suingadas da alma tabanka/ vamos sublimar o canto da terra suarenta // — o bombolom vai ressoar/ Kilis ku ka ta murri»1 (Tcheka, 2008: 59). Metáfora da musicalidade guineense, o bombolom se coloca também como representação metafórica da poesia do autor, cujos ritmos e sonoridades vão ao encalço das matrizes guineenses ancestrais.

Tony Tcheka é o pseudônimo literário de António Soares Lopes Júnior, cuja estreia como poeta ocorreu em 1976, quando começou a participar de jornais e antologias. Foi coprefaciador de Mantenhas para quem luta!, em 1977. Foi, ainda, organizador da antologia O eco do pranto, em 1992. Em 1996, publicou Noites de insónia na terra adormecida. Nessa obra, os poemas revelam, de um lado, um forte tom crítico-social; de outro, a par de inúmeras desilusões ao redor, uma esgarçada esperança:

[…]
Coloco andaimes
nos alicerces do tempo
[…]
Exorcizo o paludismo
Apeio a poliomielite
Amputo a desgraça
E eis a graça da criança
Florescendo a vida
(Tcheka, 1996, p. 125)

Os versos de Tony Tcheka encenam, liricamente, dramas vivenciados pelos povos da Guiné-Bissau; focalizam personagens do cotidiano do país: o lavrador, a mulher, a criança, cujas vidas foram prejudicadas pela guerra, pela fome, pelas doenças. Sua poiesis desvela aguçado grau de consciência crítica, apontando as aflições, angústias e distopias do contexto guineense pós-independência, consequência das experiências fracassadas e dos sonhos perdidos.

[…]
Rosa assim és Guiné
Na pétala que dói
Minha rosa ferida
Resvalas na foice fria da memória esquecida
[…]
(Tcheka, 2008: 22)

As metáforas da “rosa ferida” e da “foice fria da memória” exprimem, alegoricamente, a distopia de uma nação que se livrou do colonialismo, mas que não soube cultivar os canteiros da paz e da liberdade. Há, nos poemas de Tcheka, uma respiração entravada e entrecortada, que traduz uma «ânsia gotejando no pulmão da terra tísica» (Tcheka, 2008: 21). Essa é uma imagem contundente que o sujeito lírico plasma de sua terra, constantemente obrigada a se debater, em meio a guerras e opressões. Porém, ao mesmo tempo em que reconhece a fragilidade de uma Guiné “tísica” e ofegante, a compara, em outros versos, à força da Mulher Grande da tradição guineense. Mulher, não apenas símbolo de luta e resistência, de preservação dos costumes e raízes, mas também expressão de erotismo e desejo

Mulher da Guiné
Corpo veludo sossego
Musicado em sons de flauta
[…]
Caminha fêmea como a tua Guiné
A novos partos de sabura
[…]
(Tcheka, 2008: 13)

Sinestesicamente descrita, a mulher se confunde com a terra, ambas recobertas de maciez e musicalidade. Tato e audição ressaltam a sensualidade feminina, cuja carnadura desperta paladares que imprimem, no corpo e no poema, um gosto de frutas tropicais: a “manga”, a “goiaba”, a “abacate” (Tcheka, 2008: 12). Tcheka sabe que vive um tempo «depois da esperança», no entanto, mesmo assim, sonha com os ritmos do «silabar/ do sikó da desesperança/ vencida» (Tcheka, 2008: 53).

O amor e o erotismo são explorados também por novos poetas guineenses, entre os quais Saliatu da Costa, cuja escrita reivindica para as mulheres o direito ao prazer carnal. Usando o crioulo, os versos de Sali — apelido carinhoso de Saliatu — nomeiam os órgãos sexuais femininos, eroticamente descritos. A autora publicou Bendita loucura (Costa, 2008), e Entre a roseira e a pólvora, o capim! (Costa, 2011). Nesses livros, aborda não apenas questões femininas e pulsões eróticas; faz também denúncias sociais, reflete filosoficamente sobre a existência.

Rui Jorge Semedo, autor de Sem intenção (2013), Carlos Edmilson Marques Vieira, com o livro Um cabaz de amor (2000), André Mendes, Julião Soares Sousa são outros poetas dessa nova geração guineense, cujos traços mais recorrentes são o exercício do erotismo, do amor, da poesia lírica confessional, o que não exclui a crítica social e a denúncia das perplexidades diante das contradições políticas vividas pela Guiné-Bissau, principalmente nos anos 2011–2015. Destacamos o trabalho do poeta Emílio Lima, coordenador do projeto “Djorson Nobu” [Geração Nova], que resultou na publicação da coletânea Traços no tempo: antologia poética juvenil da Guiné-Bissau (Lima, 2010), obra que reúne mais de vinte jovens poetas guineenses.

Desde o fim dos anos 1990, vários poetas da Guiné já expressavam um desencanto frente aos problemas internos do país. Moema Augel, em O desafio do escombro, elenca algumas das causas, entre as quais: a diversidade de etnias do território guineense; as pressões econômicas que tornam periférica essa nação, dentro do próprio continente africano e, principalmente, fora. Huco Monteiro e Respício Nuno também acusam, em seus poemas, esse desenraizamento identitário da Guiné. O sociólogo Carlos Lopes, analisando a crise política na Guiné, já em 1997, chamara a atenção para essa questão:

verifica-se uma desmobilização em relação às formas “tradicionais” de intervenção política. A ética cívica do dever, do temos medo da sanção de grupo, dos valores colectivos é seriamente posta em causa, dando lugar ao hegemónico, ao competitivo, ao individualista. (Lopes, 1997: 127)

Temas como o desassossego são recorrentes nas novas vozes poéticas guineenses, cuja revolta se volta contra a constante desgraça que cinge e ameaça todos. Respício Nuno, alegoricamente, culpa os abutres, por serem responsáveis pelos infortúnios na Guiné: «Os irans estão chocados/ as doenças se alastraram/ as pessoas endoideceram e isso trouxe a desgraça» (apud Augel, 2007: 218)

Todavia, a par da perplexidade diante da desdita e da brutalidade vivenciadas pela nação guineense, observamos que algumas das vozes mais recentes da poesia, no mais fundo da desesperança, ainda alimentam um sincero desejo de verem superadas as mufunesas1. Huco Monteiro, por exemplo, no poema “Sinais de Paz”, citado por Moema Augel, assume a coragem de resistir de pé, imaginando o «amanhã como um farol» (apud Augel, 2007: 207), que iluminará, um dia, a pátria despedaçada.

Também Waldir Araújo, jovem poeta que despontou recentemente no panorama do conto e da poesia guineenses, concebe a literatura como espaço que possibilita ruturas, propiciando, desse modo, pela linguagem, a ultrapassagem dos pesadelos e horrores guardados na memória. Embora viva num tempo de incertezas, não abdica de sonhar, mesmo que seja um «sonho no limiar» (Araújo, 2009: s. p.) das catástrofes. Com palavras indignadas, o sujeito poético critica o presente, porém ainda vislumbra possibilidades de futuro: «Revoluciona o tal verbo/ [...] Do horizonte, fita o futuro/ Por fim, salta do muro!» (Araújo, 2009: s. p.). A imagem do muro configura a ideia do limiar que caracteriza a escrita poética guineense produzida nos últimos tempos. É a própria alegoria de um escrever à beira, na corda bamba, isto é, no limite do ser, que, desesperadamente, luta para não se dobrar ao peso dos desencantos.

Além de Waldir Araújo, uma novíssima geração poética vem surgindo na Guiné-Bissau, ainda sem muitos livros editados, com poemas esparsos publicados em antologias e revistas. Segundo João Adalberto Campato Jr. que efetuou um levantamento dessas jovens vozes poéticas, os temas abordados, em geral, são:

as relações de poder, a fragmentação do eu, a identidade cultural, a diversidade cultural, o problema da língua, a globalização e a cultura local, a diáspora, a possibilidade ou não da descolonização, a questão do outro, o hibridismo e a resistência, sobretudo na vertente da representação literária da luta armada. (Campato Jr., 2012: 294)

Campato Jr. conclui ser uma poesia referencial, que leva os leitores a uma compreensão imediata dos poemas, e que, em grande parte, faz uma catarse dos sofrimentos experienciados nos últimos anos na Guiné.

Tony Tcheka e Odete Semedo, autores mais velhos, consagrados, também buscam resistir às intempéries políticas, poetizando a dor para que a memória das matrizes culturais guineenses não venha a se perder totalmente. Mas, suas composições primam pelo trabalho estético e por uma preocupação metapoética. Exemplo disso é Odete, que, intertextualizando seus versos com os de Hélder Proença, autor de Não posso adiar a palavra, e com Tony Tcheka, organizador da antologia O eco do pranto, expressa suas razões de continuar a escrever:

[…]
a intenção era fazer
poemas
para não adiar a palavra
com ecos do pranto

transformados em canto
de mantenhas para crianças
(Semedo, 2007, p. 32)

Perplexidades e expectativas, desilusões e sonhos se alternam na escrita de Odete. É uma poiesis de viagens, gritos e danças por dentro de si mesma, das tradições e da história da Guiné-Bissau. Não mais há as utopias libertárias, nem as palavras de ordem revolucionárias. Não mais há o dilema de hesitar em que língua escrever, pois, agora, a poetisa sabe a hora em que deve usar cada uma dessas línguas,ambas suas, por posse e direito. Atravessando os textos de Odete, bailam o crioulo e o português, que, em harmoniosos embates, expressam quimeras e contradições, sabores e dissabores — ou dizendo em kriol: “saburas e mufunesa”:

[…]
Poesia
canto
no fundo do meu canto
o meu chão
a minha terra
macaréu fustigando
saburas e mufunesa
(Semedo, 2007, p. 165)

Assim, Odete define sua poesia. Como ela, também Tony Tcheka, Félix Sigá, Huco Monteiro, Respício Nuno, Waldir Araújo, entre outros, procuram, pela palavra, pela língua, resistir à corrupção e à violência que dominaram a Guiné.

Tony Tcheka, em Desesperança no chão de medo e dor (2015), consegue transcriar em poesia os traumas e dores vividos em seu país entre 2011 e 2015. Realiza um amargo desabafo do sofrido, sem que sua linguagem perca o labor literário. Conclui-se, por conseguinte, que, apesar da distopia e da desesperança presentes em grande parte da atual produção literária da Guiné-Bissau, há um forte sentimento de resistência, uma crença no poder crítico da palavra poética:

quando a poesia não sucumbe
e a vida refloresce
na hora em que o poeta esculpe em pedras
de duras vivências
[…]
nunca é tarde para festejar
o baile de letras em hora de parto.
(Tcheka, 2015, p. 68)

Notas

Capítulo publicado no livro: RIBEIRO, Margarida Calafate; ROTHWELL, Phillip. Heranças pós-coloniais nas literaturas de língua portuguesa. Porto: Editora Afrontamento, dezembro de 2019. pp.105-116. ISBN: 9789722361820.

2 A expressão em crioulo significa “aqueles que não morrem”.

3 Mufunesa, em crioulo, significa azar.

Referências

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Araújo, Waldir (2009), “Poesia africana: Guiné-Bissau”. Consultado a 15.8.2009, em http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/guine_bissau/waldir_araujo.html

Augel, Moema (2007), O desafio do escombro. Rio de Janeiro: Garamond.

Cabral, Amílcar (1978), A arma da teoria. Unidade e luta I. Lisboa: Seara Nova [2.ª ed.].

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Lopes, Carlos (1997), Compasso de espera. Porto: Afrontamento.

Mata, Inocência (1995) “A literatura da Guiné-Bissau”, in Pires Laranjeira (org.), Literaturas africanas de expressão portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta, pp. 355-364.

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Regalla, Agnelo (1993), in Conselho Nacional de Cultura (coord.), Mantenhas para quem luta! A nova poesia da Guiné-Bissau. Bissau: Conselho Nacional de Cultura [2.ª ed.; orig. 1977].

Semedo, Odete Costa (1996), Entre o ser e o amar. Bissau: INEP.

Semedo, Odete Costa (2007), No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala.

Tcheka, Tony (1996), Noites de insónia na noite adormecida. Bissau: INEP.

Tcheka, Tony (2008), Guiné sabura que dói. São Tomé e Príncipe: União Nacional dos Escritores e Artistas de São Tomé e Príncipe — UNEAS.

Tcheka, Tony (2015), Desesperança no chão de medo e dor. Lisboa: Edições Corubal.

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¹Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco é Professora Titular de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora 1B do CNPq e da FAPERJ. Tem doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e Pós-Doutorado pela Universidade Federal Fluminense, com estágio na Universidade Politécnica de Moçambique (2009-2010). Publicações: A magia das Letras Africanas (2003); Paulina Chiziane: Vozes e rostos femininos de Moçambique (2013) em coautoria com Maria Geralda Miranda, Afeto& poesia (2014), Pensando o cinema moçambicano (2018), CineGrafias moçambicanas (2019), dentre outros.

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