Dialéticas do insólito e do terrífico: Arménio Vieira, literatura-mundo
e uma alquimia poética do infernal 
nos labirintos da história e da arte1

 

Simone Caputo Gomes*

Mas o monstro aguarda/ e reaparece/ depois de cada insónia
vencida /enchendo de pesadelo/ as pastagens sombrias da noite.
Arménio Vieira, 1981

Inicio minha intervenção com um poema de Arménio Vieira, escritor cabo-verdiano detentor do Prémio Camões 2009, lance inicial de minhas reflexões sobre a Literatura Cabo-verdiana e suas relações com o conceito de Literatura-Mundo ou Mundial. E, a propósito deste Simpósio, afirmo que o insólito e o monstruoso/terrífico constituem uma linha possível de leitura no âmbito do que entendemos do complexo teórico atualmente em voga no campo da Literatura Comparada que discute uma Literatura Mundo ou Mundial.

Para Franco Moretti, “a literatura à nossa volta é inequivocamente um sistema planetário” (2000, p. 174) e “a literatura mundial é, sobretudo, um problema que demanda um novo método crítico” (2000, p. 174) ou processo de leitura, longe de um recorte ou cânone de obras-primas maioritariamente ocidentais, ou de uma reunião de textos de gênios à volta do mundo, como queria Goethe (Weltliteratur, 1827, ou Marx e Engels, 1848), e afastado ainda da produção de antologias de textos tidos como grandes clássicos, num ímpeto tanto comercial quanto pedagógico.

Franco Moretti toma emprestada a ideia de “sistema-mundo” concebida pela história econômica, que propõe que o capitalismo internacional, em nossa época da globalização, é uno e desigual, sendo expresso por “um sistema-mundo literário profundamente desigual” (MORETTI, 2000, p. 175), à diferença do que propunham Goethe e Marx.

Entendo, nesse contexto, o conceito de Literatura-Mundo ou Mundial como forma de resistência, como questionamento da imaginação de um centro, embora em nosso caso, nas literaturas de língua portuguesa, tenhamos que desmontar o conceito ou ferramenta neoimperial chamada lusofonia e demarcar os problemas de internacionalização das literaturas africanas em língua portuguesa pelos problemas de circulação que as envolvem. Como é possível perceber, noções como nação, cânone, literatura menor devem ser colocadas em discussão.

Até porque a Literatura Mundial não se opõe à nacional, mas coloca sob suspeita a autoimportância desta; e admite todas as formas literárias e até paraliterárias, bem como se alimenta das produções das periferias, numa conciliação (problemática e instável) entre os impactos formais das matrizes ocidentais e as matérias locais (MORETTI, 2000, p. 173).

A Literatura Comparada passa, assim, a respeitar diferenças e povos, processando a construção de coletividades contemporâneas que se expressam numa planetariedade compartilhada (SPIVAK, 2003, p. 72). Ottmar Ette, entendendo “a Literatura como espaço onde se exercita a convivência humana” (2017), elabora o conceito de “transarea” (2016) para dar conta das convivências literárias transtemporais e transespaciais.

Com a incorporação das literaturas consideradas subalternas, a antiga concepção da Literatura Comparada nascida na Europa como “disciplina” tributária de valores centrados no estado-nação e na hierarquia excludente e colonialista das literaturas do Terceiro Mundo, segundo Spivak, está condenada à morte (SOUZA, 2014, p. 121). A dissolução do conceito de disciplina como entidade fechada dá lugar à contaminação de conceitos de várias áreas (como o cinema, a música, as artes plásticas), ao trânsito de teorias, à elasticidade das fronteiras textuais, constituindo uma pós-disciplina, pós-teoria ou uma “indisciplina” como postulado por Eneida Maria de Souza (2014, p. 123), em que pesem as contribuições de Derrida, Foucault, Benjamin e Deleuze para esta abertura transdisciplinar e transnacional da Literatura Comparada e sua mutação epistemológica.

A Literatura Mundial hoje sobrevive enquanto conceito, mas num mundo diferente daquele em que Goethe, Marx e Auerbach (1952, em Philologie der Weltlitratur) propuseram a definição de Weltliteratur. E sobrevive com um “olhar panorâmico” em que subjaz uma “descolonização da mente europeia” e uma abordagem “pós-burguesa e extra europeia” (GNISCI, 2010, p. 18-19). Declara Armando Gnisci:

[...] o universalismo europeu, de descendência goethiana, chegou ao fim.
O que nos cabe fazer, literatos e leitores do século XXI, mas de uma geração nascida e formada no século XX? Por um lado, há que aceitar respeitosamente essa hereditariedade europeia, por outro, há que transmiti-la criticamente, a contrapelo, como sugeriu Benjamin, e revisitá-la de modo absolutamente crítico. (2010, p. 19)

É este movimento que verifico na análise da obra poética de Arménio Vieira. Ouçamos o poeta: “Apaga as escrituras. [...] Em ti há um marinheiro demandando uma ilha onde ninguém ainda esteve. Também em ti encontrarás o mapa, a bússola e o navio. Há coisas a que não deves atribuir nomes. A tua ilha não tem nome” (2009, p. 11). O destino dos poemas de Arménio Vieira é uma ilha outra, para além das ilhas cabo-verdianas. Abre-se para o mundo. Sua obra pode ser lida à luz dessa consciência crítica da disciplina ou “indisciplina” Literatura Comparada na atualidade ou à luz do protesto de Calibã: de descolonização e mundialização das mentes.

Em seus sete livros de poesia e um romance (No inferno), partindo do conceito da Biblioteca de Babel (“certo que Jorge Luís inventou o Minotauro e a Biblioteca, os quais ele fechou num labirinto; O Brumário, 2013a, p. 63, poema “Ficções”), Arménio Vieira transita por textos literários, míticos, fílmicos, filosóficos e históricos que compõem labirintos (cf. (O poema, a viagem e o sonho, 2009, p. 105 e p. 116) de uma poética polifônica, “maldita” e agônica, que se move entre Deus e o Diabo, entre Deus e o Homem, entre Fausto e Mefisto (O poema, a viagem e o sonho, 2009, p. 56), Jekyll e Hyde (Derivações do Brumário, 2013b, p. 33), Realidade e Ficção ou vice-versa… e que opera metamorfoses kafkianas (“de homem em monstruoso inseto”, 2016, p. 136; “de santo monge em monstro”, 2016, p. 76; “de louva-a-deus em bicho assustador”, 2016, p. 76).

O próprio poeta refere sua profunda interação com um repertório enciclopédico antropofagicamente deglutido (à semelhança de “um Frankenstein, que em vez de médico fosse um leitor de inúmeros e assombrosos livros”; Derivações do Brumário, 2013b, p. 60) e, pela astúcia da mímesis, (repertório) devolvido ao seu leitor, de forma criativa inusitada e prismática:

Eu, que de Homero recebi o poema no instante em que o poema nasce, e vi o Inferno pela mão de Dante, tal-qual Leopardi mais tarde o viu, e, após me afundar no rio onde Hamlet e Lear beberam o vinho que enlouquece, comecei a ter visões que Rimbaud, De Quincey e Poe registaram em negros textos; eu, que no eterno transportei a bandeira que era peso nas mãos de Elliot, e renovei a charrua com que Pound lavrava os versos, e de Whitman furtei-me ao licor, que em Álvaro, digo Campos, porque dorido e menos doce, sabia melhor; então que falta em mim para de Camões herdar a estrela, que Pessoa deixou fugir? (VIEIRA, poema “Megalomania”, 2009, p. 48)

Alice e Dorothy (Derivações do Brumário, 2013b, p. 73), como num “Filme de Terror” (título de poema, Silvenius, 2016: 76), descem do País das Maravilhas e de Oz a paraísos perdidos, cavernas do inconsciente ou círculos infernais do “apocalipse” (como Auschwitz, Hiroshima, Chernobyl ou o próprio espaço-texto literário; cf MITOgrafias, p. 77; O poema, a viagem e o sonho, 2009, p. 67), adentrando espelhos para jogar xadrez com monstros imaginários (a Medusa, a Esfinge, o Minotauro, o Corvo, as Bruxas, Vlad-Conde Drácula, Nosferatu, Frankenstein) ou com “homens terríveis” (título de poema em que são citados “os flagelos de Deus” ou “filhos do Inferno” (Calígula, Nero, Átila, Stalin, Hitler, e sua Gestapo, Mussolini, Jack, o Estripador; cf. MITOgrafias, 2006, p. 42 e 77; O Brumário, 2013a, p. 93; Derivações do Brumário, 2013b, p. 94), num “Sabbat horribilis” (título de poema, 2013b, p. 104).

Alguns trechos de poemas nos apresentam vertentes do rizoma a perseguir na leitura do monstruoso e do terrífico na obra armeniana:

Eia poetas noctívagos! [...]
quem ousaria acompanhar-vos de noite
atrás de um senhor vestido de sombra
conde vampiro e satanás?
(VIEIRA, “Noite de vampiro”,
Poemas
, 1981, p. 96)

Pungentes são a fogueira das bruxas e o chuço com que Vlad empalava os turcos” (Sequelas do Brumário, 2014, p. 24). Vlad, em Fantasmas e fantasias do Brumário, 2015, p. 110, define-se: “Eis-me: Sou a máscara e os uivos com que a noite se desdobra em medo e arrepios. Oiçam bem: nasci do mais pavoroso de todos os filmes, Vampiro sou ─ Vlad, Orlok, Nosfertu” (Sequelas do Brumário, 2014, p. 68, poema “O príncipe da noite’; conferir ainda Fantasmas e fantasias do Brumário, 2015, p. 26).

Arménio Vieira, “Orfeu maldito”, por sua vez, exercita o “Jogo das Contas de Vidro” (cf. Herman Hesse, Das Glasperlenspiel, Sequelas do Brumário, 2014, p. 90, ao colocar todas essas personagens em interação e ao movê-las como peças num xadrez rizomático que joga com o leitor (Teseu sem fio de Ariadne, “Decepada/ E fria a mão/ Com que Ariadne/ Segurava o fio”, O Brumário, 2013a, p. 115). Este joga ainda com “fantasmas” ilustres ou “mortos vivos”, vozes em polifonia com a voz do autor (Homero, Dante, Camões, Kafka, Milton, Byron, Edgar Allan Poe, Fernando Pessoa e Jorge Luís Borges), numa interlocução produtiva e criativa com o que entendemos hoje por literatura-mundo (World Literature).

Face ao nosso concentrado tempo de fala e para finalizar, deixo em aberto dois poemas de Fantasmas e fantasias do Brumário, que movimentam num tabuleiro de xadrez várias das entidades monstruosas ou insólitas que compõem o imaginário da Literatura Mundial e que se inscrevem na obra de Arménio Vieira:

24

Sou capaz de acreditar em seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço, disse a Rainha de Copas.
Acredita no Diabo? Perguntou Alice.
Não, mas pensando bem, creio que sim, disse a Rainha. Contudo, refletindo melhor, acho que não.
E em bruxas?
Só acredito em seis coisas impossíveis; há pelo menos sete bruxas no meu reino.
Então as bruxas existem.
Já disse que só acredito em seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço. [...]
E nas almas do outro mundo?
No outro mundo sim; nas almas nunca. [...]
Acredita que uma carta possa jogar xadrez?
Vai buscar as peças, a ver se pode.
Joga comigo ou com o coelho branco?
Contra os dois.
E se nós ganharmos?
Deixo-te ir embora.
E se perdermos?
Mando-te fechar numa garrafa.
Sou pequenina, mas não caibo numa garrafa.
Antes do pequeno-almoço cabes, disse a Rainha de Copas.
Nem antes, nem durante, nem depois do pequeno-almoço, interveio Lewis Carroll.
A Rainha ficou branca de raiva. Mas não respondeu. Simplesmente olhava, tinha perdido a voz.
Oportunidade que Alice aproveitou para atravessar o espelho e fugir.
(2014, p. 47-48)

25

Ora, Alice, fugindo da Rainha, deparou com um velho, o qual, notou ela, era mais cego que uma estátua. Onde é que eu vi este homem? disse Alice para si própria. Será que este homem é de mármore?
Pois sou, disse o velho.
Ah, fala? Já sei, é o Imortal, estou certa?
Assim me chamam, além de outros nomes ─ Homero, Dante, Shakespeare, Goethe, Whitman, Joyce. Sou uma soma desses homens, e mais, de quantos escreveram depois de mim. Ironicamente, nunca existi.
Sendo assim, com quem estou a falar?
Com a soma de todos os mortos.
(2014, p. 49-50)

Em What Is World Literature? (2003), David Damrosch defende que as questões suscitadas pela literatura-mundo têm, sobretudo, que ver com a circulação e a recepção dos textos literários, que deixam de estar confinadas a um espaço ou uma língua. Para o norte-americano, a literatura-mundo engloba todos os textos que circulam para lá da sua cultura de origem, seja em tradução, seja na sua língua original.

A poética de Arménio Vieira, nesse sentido, joga com o leitor, acionando, em outro contexto e situação, textos literários canônicos e arquétipos que este receptor terá que revisitar acessando seu repertório e sua memória de obras imortais tornadas “mortas” (“fantasmas”) ou desgastadas pelo tempo, de forma a implantar-lhes novas seivas. O espelho de Alice confunde-se com o inconsciente do leitor, que mergulhará cada vez mais fundo num labirinto sem perspectiva de saída, porque o objetivo da teia traçada pelo poeta é que o leitor vá construindo mais teias, numa proliferação e moto infinitus.

A “mundialização das mentes”, como propõe Armando Gnisci (2010, p. 28-31), é uma possibilidade de leitura da obra armeniana, que se estrutura com base na polinização rizomática geradora de uma “poética do movimento”. Sua viagem, seu incessante deslocamento, traduz-se em deambular pelas escrituras do mundo, a fim de torná-lo mais humano: “Apaga as escrituras. [...] Em ti há um marinheiro demandando uma ilha onde ninguém ainda esteve. Também em ti encontrarás o mapa, a bússola e o navio. Há coisas a que não deves atribuir nomes. A tua ilha não tem nome” (2009, p. 11).

Como um Ulisses que nunca aportará a Ítaca, insaciável viajante, o poeta sintetiza o processo que presidirá sua leitura dos textos do mundo, (des)orientando o leitor sobre a forma de abordar a sua escritura: “navego rumo ao país onde nasceram os grandes poemas, e, enlouquecendo, assumo o árduo ofício de os escrever, depois de os ter queimado” (2009, p. 50)

 

Nota

1Publicado inicialmente em: O monstruoso em obras da literatura-mundo. Organização: Carlinda Fragale Pate Nuñez; Egle Pereira da Silva. Edição: Flavio García.

Referências

Corpus

VIEIRA, Arménio (1981). Poemas. [s.l.]: África.

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______. (2013a). O Brumário. Praia: Biblioteca Nacional de Cabo Verde; PUBLICOM.

______. (2013b). Derivações do Brumário. Praia: Biblioteca Nacional de Cabo Verde; PUBLICOM.

______. (2014). Sequelas do Brumário. Lisboa: Rosa de Porcelana.

______. (2015). Fantasmas e fantasias e do Brumário. Lisboa: Rosa de Porcelana.

______. (2016). Silvenius: antologia poética. Lisboa: Rosa de Porcelana.

______. (2000). No inferno. Romance. Lisboa: Editorial Caminho.

Apoio teórico-crítico

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HESSE, Hermann (2007). O jogo das contas de vidro. Tradução de Lavinia Abranches Voitti e Flávio Vieira de Souza. Rio de Janeiro: BestBolso.

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Webgrafia

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GOMES, Simone Caputo. “Arménio Vieira: aulas magnas de arte poética”. Mulemba, Rio de Janeiro. V.1, n.4, p. 44-55, jul, 2011. https://revistas.ufrj.br/index.php/mulemba/article/view/4865. Acesso em 1 de março de 2019.

 

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*Simone Caputo Gomes é Doutora em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC-Rio e Professora Sênior de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da USP. Pós-Doutorados (4) realizados, respectivamente, na Universidade de Aveiro, na Universidade de Lisboa (2) e na Universidade de Coimbra, nas áreas de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (em especial, Literatura Cabo-verdiana e História da Literatura) e Poesia Portuguesa Contemporânea. Autora de Cabo Verde – Literatura em Chão de Cultura (2008), e coautora das publicações: 100 poemas escolhidos (2016), Literatura Cabo-Verdiana – Seleta de Poesia e Prosa em Língua Portuguesa (2015).

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