Reinvenções e deslocamentos em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra[1]

Maria Nazareth Soares Fonseca[i]

Maria Zilda Ferreira Cury[ii]

Sou um escritor africano de raça branca. Este seria o primeiro traço de uma apresentação de mim mesmo. Escolho estas condições - a de africano e a de descendente de europeus para definir logo à partida a condição de potencial conflito de culturas que transporto. Que se vai "resolvendo" por mestiçagens sucessivas, assimilações, trocas permanentes. Como outros brancos nascidos e criados em África, sou um ser de fronteira. [...] Para melhor sublinhar minha condição periférica, eu deveria acrescentar: sou um escritor africano, branco e de língua portuguesa. Porque o idioma estabelece o meu território preferencial de mestiçagem, o lugar de reinvenção de mim. Necessito inscrever na língua do meu lado português a marca da minhaindividualidade africana. (COUTO, 8-10, 1997, p. 59 apud SECCO 2000, p. 264, destaque no original)

Nesse depoimento de Mia Couto avultam algumas características de sua produção literária: uma linguagem intencionalmente de fronteira, a criação de espaçosmestiços, constituídos por trocas culturais e pela utilização de códigos linguísticos e gestuais os mais diferentes, em contradição. Além disso, o escritor reitera seu lugar de enunciação e constrói seu discurso a partir das margens, de sua condição periférica a defini-lo como um ser de fronteira. Tal condição expressa-se na sua língua literária, dobradiça que articula o português - língua da dominação colonial e pela qual se filtra a tradição literária ocidental - e a dicção africana - marcada pela predominância de rituais da oralidade, com sua palavra viva, seus cantos e gestos. Espaço articulatório, contudo, que se encena em tensão permanente, deslocando o leitor, obrigando-o a configurar a sua recepção como deslocada, em constante mobilidade.

Em todos os romances de Mia Couto, o deslocamento de fronteiras da literatura contemporânea é tematizado como elemento central. Terra sonâmbula (1992), por exemplo, desde o título, remete a espaços "desmanchados", diluídos, fragmentados, o mesmo ocorrendo, até de modo mais radical, em O último vôo do flamingo (2005), com o dilaceramento dos corpos dos soldados da ONU, metáfora que alude a uma terra também fragmentada, física e culturalmente. Essa terra também ressurge como alegoria do espaço nacional em outros romances do escritor, como em A varanda do Frangipani (1996), lamento da perda das tradições, com o abandono dos velhos, seus guardiães. É, pois, a alegoria uma estratégia de construção textual pertinente para falar da terra arruinada, das tradições dilaceradas e da impossibilidade de representação do espaço nacional enquanto totalidade. Os sentidos na alegoria são produzidos a partir da disseminação fragmentária, obrigando o leitor a um exercício permanente de deslocamento, afirmando a precariedade das interpretações, apresentando o espaço textual como ruína, como incompletude.

No romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003), 2 a alegoria pode ser tomada como um dos conceitos-chave. As grandes imagens - o rio, a casa, a terra, o tempo – que atravessam o texto, já a partir do título, disseminam-se em inúmeras outras, responsáveis pela construção de sentidos não fixos, uma vez que constantemente rearticulados, ressignificados: a busca da identidade, a morte, a tradição, as relações familiares, os fatos recentes da história de Moçambique, os males da globalização e tantos outros exemplos da riqueza variada do modo narrativo e do emaranhado das idas e vindas de seu enredo.

O romance narra o retorno do jovem estudante Marianinho, o narrador, à sua terra natal, Luar do Chão, para os funerais do avô. Com a mesma finalidade deslocam-se outros membros da família, que se juntam aos que permaneceram no lugar de origem. Os três filhos do velho Mariano - Abstinência, Fulano Malta e Ultímio -, bem caracterizados nas suas diferenças, contracenam com o narrador, assim como as fortes personagens femininas Miserinha, a avó Dulcineusa, a tia Admirança, a estranha Nyembeti. Retornado, Marianinho vai aos poucos se inteirando dos mistérios e segredos da casa e da família, segredos que dizem respeito à sua própria origem. Sua história lhe é revelada por estranhas cartas, sonhos e outras indicações que aos poucos lhe conferem papel central na narrativa. Em Luar do Chão, defronta-se coma situação inusitada de uma terra que se recusa a abrir-se para receber o corpo do avô morto, cuja morte, aliás, nem com certeza se podia afirmar. "Em África, os mortos não morrem nunca" (p. 30), conclui o narrador, tanto se referindo à situação específica que vivencia, como aludindo à importância dos ancestrais em culturas africanas e ao princípio de que, na visão mítica, não há morte definitiva, uma vez que o espírito que habitou o corpo vai habitar outros corpos na natureza.

O morto que não consegue acabar de morrer ou ser considerado efetivamente morto instaura uma situação de estranheza maior do que aquela inerente à própria morte. É ele, nessa situação intervalar, que vai construindo o seu direito de ser enterrado. Tal construção se faz através de cartas ditadas ao neto, pela via do sonho, das fronteiras franqueadas entre vida e morte, reveladas por sinais dados na natureza. Também através das conversas com a avó, com a tia, com Miserinha, amante do avô, com o coveiro Juca Sabão e sua irmã Nyembeti, o narrador vai descobrindo uma origem diferente daquela que até então atribuía a si mesmo, desmanchada pela revelação de outra paternidade, pelo conhecimento da estranha história daquela que julgava até então ser sua mãe, pelas revelações daquela que pensava ser sua tia. Nesse emaranhado de incertezas e descobertas, a identidade pluraliza-se, desterritorializando-se, colocando em questão, através da história familiar, a identidade nacional enquanto construção discursiva.

Luar do Chão, na verdade uma ilha, já aparece como metáfora da nação, dessa terra transtornada e transformada, condenada ao abandono, atravessada pelas transformações perversas do mundo globalizado, presentificado no romance pelas ações da personagem Ultímio. Expressão da mentalidade capitalista selvagem, a personagem representa uma das forças atuantes no mundo contemporâneo que fazem com que a África, para o bem e para o mal, assuma, em tensão extrema, as contradições do mundo em que vivemos: "Meu tio Ultímio, todos sabem, é gente grande na capital, despende negócios e vai politicando consoante as conveniências. A política é a arte de mentir tão mal que só pode ser desmentida por outros políticos. Ultímio sempre espalhou enganos e parece ter lucrado, acumulando alianças e influências." (p. 28)

Fulano Malta, apresentado inicialmente como pai do narrador, figura do combatente desiludido com os rumos da Revolução, contraditoriamente também expressa a utopia da recuperação dos ideais de liberdade. Emblemáticos dessa situação são a farda - que a personagem se recusa a novamente vestir quando os revolucionários, agora no poder, promovem desfile em Luar do Chão - e a gaiola - vazia e aberta à espera de pássaro que a habite: "Meu pai esperava que, voluntário, um pássaro viesse e se alojasse na jaula. A mania, antiga, não passara. A gaiola metaforizava o seu destino, essa clausura onde ave nenhuma partilhara da sua solidão" (p. 62). Já no final do romance, na hora em que Marianinho se despede de Fulano Malta, a manutenção da utopia transforma a imagem da gaiola: "Ainda olho para trás. Fulano esperava, certamente, que eu O fizesse. Pois ele esta acenando a chamar-me a atenção. Pega na gaiola e lança-a no ar.  A gaiola se desfigura, ante o meu espanto e se vai convertendo em pássaro. Já toda ave, ela reganha os céus; e se extingue." (p. 246)

Abstinêncio, o tio mais velho, encarregado por essa condição de anunciar a morte do velho Dito Mariano, passou a vida inteira na sombra da repartição", adentrado pela penumbra de ter acabado "saudoso de um tempo nunca havido, viúvo mesmo sem ter nunca casado" (p. 17), guardando a lembrança da noiva morta. Como das demais personagens do romance, explicita-se através da escolha de seu nome a sua caracterização, embora sempre aberta a modificações. Vejam-se os dois outros o es que exercem a mesma função: Ultímio, o mais novo, o último, aquele portador da modernidade e de suas selvagerias; Fulano Malta, "um qualquer", expressão do homem comum, do povo, "da malta:' e de seu estado de paternidade vicária imposta pelo Dito Mariano, encarna a visão melancólica de como o povo acreditou nos ideários revolucionários, ainda que mantendo a visão libertária da utopia.

Os nomes das personagens femininas são também sobredeterminados. Mariavilhosa chegou a Luar do Chão a bordo de um navio, travestida de homem, na figura de um marinheiro enigmático que fortemente atrai Fulano Malta. É tratada pelo médico da ilha de um aborto que provocara.3 Fulano Malta finalmente desvenda-lhe a identidade e casa-se com ela. O médico revela para Marianinho que a história poderia ter tido um final feliz no encontro dos dois amantes, não fossem as marcas que ficaram em Mariavilhosa: "O ventre dessa mulher adoecera para sempre. Não havia cura de que a medicina fosse capaz. Das costuras e cicatrizes escorria sangue sempre que na Ilha nascesse uma criança" (p. 104). Seu nome revela sua beleza, um tanto melancólica, expressando também a atração e a estranheza que desperta, e contrasta com sua própria história, marcada pelo sofrimento.4 Quando se vem a saber, no decorrer do enredo, que ela não é a mãe carnal do narrador, apesar de seu corpo ter assumido a aparência de um ventre grávido, reforçam-se características enigmáticas da identidade de Marianinho: "Me parecia que eu era insuficiente filho, que não havia bastado como realização materna" (p. 105). Nas águas ela se dissolve, transformada talvez num desses espíritos que habitam os rios e voltam influenciando os destinos dos viventes.

Dulcineusa, avó do narrador, é aquela que detém as chaves dos segredos da casa, com força para mudar a tradição, conferindo a Marianinho a tarefa de presidir as cerimônias fúnebres do avô, em detrimento do filho mais velho. É aquela a quem se deve respeito reverente, a referência feminina do poder ligado à casa, lugar emblemático no romance a significar, inclusive, a nação. "Entramos nos respeitos. A avó está sentada no cadeirão alto, parece estatuada em deusa. Ninguém é tão vasto, negra em fundo preto" (p. 31). É ela que passa o poder a Marianinho, sendo porta-voz do desejo do marido, e também lhe possibilita o conhecimento dos segredos da casa.

Miserinha - cujo diminutivo do nome indica afetividade mas também aponta para alguém que é humilde, conformado – é, contraditoriamente, aquela "que sabe". Assumindo, através da cegueira, a capacidade de prever, de ler o futuro nos traços do presente, representa a figura do oráculo: "Explica-me que sabe ler a vida de um homem pelo modo como ele pisa o chão. Tudo está escrito em seus passos, os caminhos por onde ele andou: 'A terra tem suas páginas: os caminhos"' (p.20).

"Sobre Admirança recaía o maior peso que, neste lado do mundo, uma mulher pode carregar: ser estéril. Dizia-se dela que o seu sangue não tinha germinado. A nossa tia preferia rodear o assunto" (p. 146). Suposta tia do narrador, sua verdadeira condição de mãe deste só é revelada quase ao final do romance. Caracterizada pela sensualidade, desde sempre atraindo o narrador, deixa no leitor uma marca de estranheza, motivada pelo clima incestuoso de sua relação com o sobrinho/filho. A memória, repleta de sensualidade, alterna as sensações de um e outro: "Admirança relembra o episódio e se arrepia. Árvore dá sombra pessoa dá assombro. Os botões do vestido, em desleixo, deixa vislumbrar os seios volumosos. Estremeço. Me custa confessar mas a Tia Admirança me acende de mais o rastilho. Tantas vezes a recordo, mulherosa, seu corpo e seu cheiro." (p. 58)

Admirança representa a transgressão de outras ordens, já que executa tarefas, como o abate de animais para a alimentação, que, no âmbito de várias tradições africanas, são exclusivas do mais velho da família. Mas o que importa na cena recuperada pela memória que dela guarda o narrador é a mistura dessas interdições: o desejo que sente por ela, o incesto ainda não suspeitado por ele, marcado, inclusive, pela referência ao sangue da galinha que "lhe avermelha a lembrança" (p. 58) e que ao mesmo tempo alude ao sangue enquanto símbolo de vida e de sua ligação com ela, ligação de sangue uma vez que se trata de mãe e filho: "A faca rebrilha na mão direita. As pernas, bem desenhadas, estão a descoberto entre as dobras da capulana. Ela parece saber que espreito. Entreabre as pernas como se procurasse melhor conforto. O mesmo gesto que degola a galinha afasta o último pano, desocultando mais o corpo. O seu olhar me pede cumplicidade". (p. 58)

A faca como símbolo fálico explícito é novamente referida: "Enquanto se levanta ela roça em mim, toda aproximada, ancas e seios. Entre nós, apenas a faca gotejando vermelho" (p. 58). No nível da enunciação, toda a cena reveste-se de enorme ambiguidade, uma vez que se trata de lembranças do narrador, que recupera a cena da infância, erotizando-a intensamente.

Nyembeti, personagem estranha, tida como afásica, mergulhada no mito e na tradição, é mediadora entre os homens e os mistérios da terra. Ao mesmo tempo, é levada a prostituir-se, a ser instrumento do comércio de drogas gerenciado por Ultímio. Representa, pois, a situação ambígua de Luar do Chão, facilmente extrapolada para a situação africana, se debatendo entre a modernidade e a tradição ou, mais ainda, símbolo da transformação perversa de espaços que ainda guardam fortes traços da tradição e, paradoxalmente, até dos traços arraigados dessa mesma tradição que acabam sendo impeditivos de transformações desejáveis. "Afinal entendo: eu não podia possuir aquela mulher enquanto não tomasse posse daquela terra. Nyembeti era Luar do Chão" (p. 253). Representa também outra coisa: é ela que vai ser o instrumento para a abertura da terra, para que esta possa aceitar os seus mortos. Tal abertura dá-se num ritual de amor, de encontro, em que se reinventa o espaço de Luar do Chão: "Os lugares não se encontram, constroem-se" (p. 189-)

É de se destacar no romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra o apelo aos símbolos telúricos, presentes desde o título. Os mais recorrentes são a água, a terra, a casa e o fogo.

A água, força vital fecundante, símbolo do feminino, da vida e da fertilidade, está presente no leite materno, no sangue, no suor, nos rios. "O rio está sujo, peneirado pelos sedimentos. E o tempo das chuvas, das águas vermelhas. Como um sangue, um ciclo mênstruo vai manchando o estuário" (p. 19). Os cursos d'água - vejam-se o rio presente no título e o rio onipresente no romance - são o símbolo da passagem do tempo, do curso da vida. É ainda a água "o símbolo das energias inconscientes, das virtudes informes da alma, das motivações secretas e desconhecidas" (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1991, p. 21-22). No romance, a travessia entre a cidade e a ilha dá-se através do contato com a água, e é ao navegar por essa água que Marianinho começa a se inteirar de questões relacionadas à sua busca identitária, aos mistérios que envolvem sua família e o seu lugar de nascimento. A água simboliza igualmente a purificação, a limpeza que se faz antes ou depois dos rituais: "Mexem em poeira dos mortos, por isso devem ser lavados por águas que não escorrem por cima de nenhuma terra" (p. 157), diz o narrador sobre a purificação necessária aos coveiros. O choro e a chuva, no romance, também têm o dom da purificação: "Enquanto a água escorria pelo corpo ele chorou, chorou, chorou. Chorou sem parar enquanto choveu. Até que já nada lhe doía mais. Tinha sido lavado, os céus lhe tinham retirado saudades e silêncios" (p. 162). Lágrima é ainda a tradução do nome Nyembeti, a que fertiliza a terra, pelo poder do amor: "A terra pode amolecer por força do amor? Só se o amor for uma chuva que nos molha a alma por dentro" (p. 195). A água igualmente representa a destruição, o apagamento: "A primeira coisa que vejo é a carta. Está pousada por cima do prato. Ao apanhá-la entorno um copo. Num segundo, a água cobre o papel. Rápido leio antes que as letras se dissolvam e a tinta desvaneça" (p. 148).

Aquela a quem o narrador sempre tivera como mãe - Mariavilhosa - converte-se em água ao escolher entrar rio adentro, lembrando-se que os trabalhos que envolvem água, em culturas africanas, são atribuição feminina, em contraposição ao fogo, que só pode ser iniciado pelo homem:"[...] apenas um homem podia iniciar o fogo. As mulheres tinham a tarefa da água. E se refazia o eterno: na cozinha se afeiçoavam, sob gesto de mulher,o fogo e a água. Como nos céus, os deuses moldavam a chuva e o relâmpago" (p. 145). Por outro lado, o fogo, também símbolo simultaneamente de força fecundante e destrutiva, pertence a esse campo simbólico deslizante entre o positivo e o negativo. Liga-se à expressão do desejo e das paixões, como nas imagens construídas como símbolo da atração de Marianinho por Admirança, ou da paixão e desejo vividos pelo narrador e Nyembeti ou, ainda, da paixão de Dito Mariano pela cunhada Admirança. Esta, entrando na canoa todas as noites, vai deixando sedutoramente para trás as roupas, peça por peça. Quando a canoa ficava fora do alcance da visão, Dito Mariano adivinhava sua nudez: "E era como se, naquele instante, uma luz abrisse o ventre da escuridão. Eu era o acendedor das noites" (p. 233-234).

Ainda dentro de um campo de duplicidades, de convivência de contrários, a terra é símbolo da fertilidade, do feminino, do espaço de pertencimento, da vida, podendo, ao mesmo tempo, significar a ausência de vida, quando, por exemplo, no romance, se nega a abrir-se para receber o corpo do morto. Assim como há um deslizamento de significação simbólica entre água e fogo, o mesmo ocorre entre água e terra. Veja-se, por exemplo, a fala de Curozero Muando: "Mais e mais me assemelho ao caranguejo: olhos fora do corpo, vou sonhando de lado hesitante entre duas almas: a da água e a da terra" (p. 185). Tais deslizamentos apontam para os espaços construídos pela narrativa, com sentido movente. É também a terra o objeto da cobiça, já que alvo do saque e da exploração. Símbolo da pátria, da terra natal, do lugar de origem, no romance tem de ser desvelada nos seus enigmas, funcionando como contraponto complementar da busca de identidade do narrador. Atente-se que essa terra natal, no texto de Mia Couto, é uma ilha, isto é, está em relação direta com as águas e com sua posição de contraste com o continente. Justapõe-se nessa simbologia a casa.

A casa em geral simboliza o centro do mundo, sendoa imagem do universo. No texto, é chamada de Nyumba-Kaya, como forma de satisfazer, reduplicando a palavra, os familiares do nortee do sul: "Nyumba é a palavra para nomear 'casa' nas línguas nortenhas. Nos idiomas do Sul, casa se diz 'kaya"' (p. 28). A sempre mesma e a sempre outra casa. "A casa é também um símbolo feminino, com o sentido de refúgio, de mãe, de proteção, de seio maternal" (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1991, p. 197). A primeira visão que tem da casa o "retornado" narrador confunde com a figura feminina: "A grande casa está defronte de mim, desafiando-me como uma mulher. Uma vez mais, matrona e soberana, Nyumba-Kaya se ergue de encontro ao tempo [...] eu teria residências, sim, mas casa seria aquela, única, indisputável" (p. 29).

Nyumba-Kaya guarda, como toda casa, segredos e mistérios. Reservatório da vida familiar, mescla-se à figura da mãe, um dos símbolos mais fortes do feminino, imageticamente restaurando nosso canto no mundo, significando refúgio e proteção no seio materno (cf. CHEVALIER; GHEERBRANT, 1991, p.197). É ela também metáfora da opressão do passado, do inconsciente. Para Gaston Bachelard (1974, p. 358), a casa é "o nosso primeiro universo", o seu interior, as suas partes, os diversos estados da alma, não importando os detalhes de riqueza ou de pobreza. Na percepção do filósofo, os cantos da casa, o sótão, o porão, as escadas que ligam os pavimentos simbolizam diferentes estados do homem. E sempre, em nossos devaneios, a casa é um grande berço. Mas, como registra o estudioso francês, às noções de proteção, estabilidade e sossego ligadas à casa associam-se também os seus opostos, transformando-a num símbolo contraditório. Recuperada imageticamente em sonhos e lembranças, ficcionalmente reescrita pelas memórias, é a casa que abriga os nossos devaneios, nossos sonhos mas também o inconsciente, nossos medos e contradições. Nesse sentido, lugares como a casa são vistos, no romance, em sua ambiguidade: podem tanto indicar a necessidade de ter um chão quanto se referir ao aprisionamento que tal necessidade pode assumir: "Os lugares são bons e ai de quem não tenha o seu, congênito e natural. Mas os lugares nos aprisionam, são raízes que amarram a vontade da asa" (p. 65).

Por isso, segundo Bachelard (1974), a casa natal está fisicamente inscrita em nós, e é a ela que retornamos quando sonhamos ou quando nos empenhamos em redefinir o nosso eixo interior. Como expressa o avô Mariano: "O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora" (p. 54).

No romance, o telhado da casa é retirado para, segundo a tradição, facultar ao corpo morto a ligação com o céu. A casa purificar-se-ia, ficando então livre das "cósmicas sujidades" (p. 28), e o espírito faria a ligação com o alto. A ideia de purificação e de fertilidade também é o que aproxima a casa da simbologia da água. Nyumba-Kaya tem de ser diariamente regada, como um ser vivo, como uma árvore: "A casa tinha reconquistado raízes. Fazia sentido, agora, aliviá-la das securas" (p. 247).

Além dessa rica simbologia, provérbios, ditos e frases feitas atravessam o texto, sempre reinventados pelo narrador, fornecendo chaves de leitura e promovendo diálogos com a tradição oral. A esse respeito Terezinha Taborda Moreira (2005) registra a recorrência da citação de provérbios nos textos literários moçambicanos como um atravessamento da voz do narrador pela voz da tradição oral, que "reflete e refrata a própria concepção de mundo que informa os textos" (p. 113). Diz-nos ainda a pesquisadora: "O manuseio de provérbios e ditos populares revela o teor persuasivo de seu discurso, expresso através do emprego constante de mecanismos retóricos calcados em argumentos extraídos do saber da tradição ancestral." (p. 113)

O uso de provérbios e ditos populares, no sentido assinalado por Taborda Moreira (2005), é recorrente na produção ficcional de Mia Couto como um todo. No livro Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, os provérbios aparecem subvertidos, invertendo-se seu caráter conservador e conformista, sendo contextualizados na trama narrativa, muitas vezes com a autoria atribuída às personagens. Responsáveis por toques de humor sutil na narrativa, tais construções criam um repertório de leitura que sugere soluções discursivas advindas da cultura popular, da canção da gente simples. Vejam-se alguns exemplos nos quais os provérbios ou frases feitas adquirem significação inversa ou modificada.

A frase "para o que der e vier" é modificada para falar do estado de sobreaviso da personagem: "Agora o surpreendia preparado para o que desse e não viesse" (p. 60). A marca conservadora, própria a todo provérbio, é igualmente modificada ou até reconstruída na fala de Marianinho, ao perceber que o Ultímio não alteraria seu caráter ambicioso: "Eu queria amolecer a pedra, mas não haveria água que chegasse" (p. 168). Ligado ao elemento água, como já se disse tão importante no romance, o provérbio "homem cobarde transpira mesmo dentro da água” (p. 2 7) aparece em uma das cartas do avô Mariano, que admite a própria fraqueza, com ela explicando a falta de atitude diante dos poderosos. Do mesmo modo, o provérbio africano “foi na água mais calma que o homem se afogou" (p. 165) serve-se igualmente do símbolo para a elaboração de uma crítica à corrupção.

Também modificadas aparecem algumas expressões, despertando o riso pelo jogo de palavras e de sentidos: "O que dele a vida foi fazendo, gato sem sapato?”     (p. 74); "O meu anjo, felizmente, nunca me guardou" (p. 89); "Isso é conversa coçada" (p. 68). No exemplo que se segue, além de modificada, contextualizada a expressão exerce função de denúncia da violência dos traficantes de drogas: "Foi conversa afiada, cheia de ameaça  de lâmina de sangue" (p. 172). A modificação do conhecido provérbio “devagar se vai ao longe" assume, no texto de Mia Couto, uma maior poetização, uma vez que o narrador, ao dizer que se trata de um provérbio africano, desmancha, de certa forma, o seu uso pragmático: "A lua anda devagar mas atravessa o mundo. (Provérbio africano)" (p. 175). Claramente há uma valorização do sentido ligado à observação do movimento da lua, expressando um dado cultural em harmonia com a natureza. A mesma intenção poética transparece no provérbio "No charco onde a noite se espelha, o sapo acredita voar entre estrelas" (p. 118). Trata-se de fala da personagem Amílcar Mascarenhas, o médico de Luar do Chão, referindo-se a Ultímio. A crítica expressa pelo provérbio toca em ponto importante a caracterizar posturas dos dominados frente à cultura do dominador: "Infelizmente os ilhéus eram tão pequenos que apenas queriam ser como os grandes. A maior parte invejava os brilhos" (p. 118). A observação do médico pode ser aproximada da reflexão de Franz Fanon (1979), no seu conhecido Os condenados da terra, onde observa que enquanto o colonizado não se torna crítico de sua situação de dominado, ele inveja o lugar ocupado pelo colonizador.

Outra representação relevante construída no romance é a do intelectual. Marianinho é o homem que sai da terra natal para estudar. Nele, em tensão, habitam os dois espaços culturais: o urbano e o marcado por fortes tradições e mitos ligados à terra. Ser de entrelugar, é a ele que - por ter saído da casa paterna, da ilha -, quando volta, se atribui um olhar simultaneamente distante e próximo. É claro que isso é apresentado sempre em contradição, uma vez que ora ele é surpreendido pela força da terra, tratado como um estrangeiro - "Você ficou muito tempo fora. Agora, é um mulungo. Sabe o que lhe digo? Um dedo só não apanha pulga" (p. 159) -, ora é considerado como capaz de continuar as tradições, mesmo que já misturadas - "Você cruzou essas águas por motivo de um nascimento. Para colocar o nosso mundo no devido lugar" (p. 64).

Essa representação do intelectual, a quem se atribui um papel político na cena pública, mostra a atualidade da literatura de Mia Couto, antenada com as questões tão candentes no mundo contemporâneo e com a posição da literatura nesse contexto. Pensadores como Edward Said (1999 e 2005) e Ricardo Piglia (2001) falam de uma desejável posição do intelectual como excêntrica, da margem, do exílio. É da margem que se pode talvez construir uma enunciação mais crítica, que não se furte a marcar posturas num mundo atravessado por intensas divisões.

O romance de Mia Couto assume um desenho circular, que mimetiza a estrutura das narrativas míticas, de que são evidências duas expressões a abrir e a fechar o texto e que de alguma forma o condensam. Logo no primeiro capítulo, temos: "A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência" (p. 15). Essa ideia repete-se no último capítulo, conferindo-lhe essa estrutura circular já aludida: "A morte é a cicatriz de uma ferida nunca havida, a lembrança de uma nossa já apagada existência" (p. 260). Repetida em diferença, a afirmação assume, na segunda versão, a impossibilidade de harmonia ou sutura das contradições disseminadas no romance; logo, pode-se dizer que a circularidade no romance se apresenta fraturada.

A circularidade como elemento estruturante de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra também informa a proposta deste ensaio sobre o romance. Voltaremos, pois, ao depoimento do escritor com o qual  iniciamos. Ao se assumir, como intelectual e escritor,  de um lugar periférico, marcado por mestiçagens sucessivas, assimilações e trocas permanentes, Mia Couto, em sua proposta literária, explicita para o seu leitor a consciência do "conflito de culturas" que transporta. A condição também periférica de sua enunciação constrói-se em tensão: rituais de preservação e veneração da terra e da casa, metonímias da nação, convivendo, em conflito, com a diluição da fixidez de lugares e tradições; posição exilada do narrador; processos globalizados de modernização violentando visões de mundo; a casa, lugar de morada, de permanência, também "aberta" ao que vem de fora, ligando-se ao cosmos. Tudo isso misturado, "mestiçado" a tantos outros elementos em trânsito.

Nesses percursos, avulta a consciência do escritor de que a língua é sua terra, a expressão de seu tempo, fonte de recursos, seu lugar de expressão excêntrico - fora do centro -, condição fronteiriça de seu fazer: casa e rio.

NOTAS

1-Originalmente publicado na obra Ensaios sobre leitura 2, organizada por Hugo Mari, Ivete Walty e Maria Nazareth Soares Fonseca, de 2007, pela editora PUC Minas.

2-Todas as citações de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra se referem à edição brasileira de 2003 e serão indicadas a partir de agora apenas pelo número da página.

3-De passagem, assinale-se a semelhança da relação entre esses personagens de Mia Couto e os de Guimarães Rosa (1994) – Riobaldo e Diadorim – em Grande sertão: veredas, cuja influência se mostra em muitos livros e contos. “Entre os marinheiros ele notou a presença de um homem belo, de olhos profundos. Fulano se prendeu nesses olhos. Estranhou aquele apego às feições de alguém tão macho quanto ele” (p. 102).

4-O nome Maria cria uma possibilidade de aproximação com a Virgem Maria, mãe sem contato carnal.

Referências

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SECCO, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro. Mia Couto e a incurável doença de sonhar. ln: SEPÚLVEDA, Maria do Carmo; SALGADO, Teresa. África & Brasil: letras em laços. Rio de Janeiro: Atlântica, 2000, p. 261-286.


[i] Doutora em Literatura Comparada pela UFMG, estágio na Université de La Sorbonne Nouvelle, Paris (1982/1983 e 1992). Professora Aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas, período 1995 – 2018. Autora dos livros: Brasil afro-brasileiro (2000); Poéticas afro-brasileiras (2003); Literaturas africanas de língua portuguesa: percursos da memória e  outros trânsitos (2008); Mia Couto: espaços ficcionais (2008); Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015). Co-organizadora da coletânea Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Volume 4. (2011). Coordena, desde 2010, o Grupo de Estudos Estéticas Diaspóricas (GEED) que congrega pesquisadores de vários estados do Brasil e de várias cidades de Minas Gerais. A partir de 2021, coordena a seção literÁfricas, no literafro/UFMG, que tem como objetivo transformar-se em um canal de acervo, multiplicação e socialização de artigos críticos, resenhas, entrevistas e textos literários de escritores(as) africanos(as) e afro-diaspóricos(as).

[ii] Professora na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e Pesquisadora do CNPq. Possui Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), com Pós-doutorado pela Sorbonne, Nouvelle, pela UNICAMP e pela USP. É coordenadora do Grupo de Pesquisa Espaço nas Literaturas Contemporâneas (CNPq). Suas pesquisas são direcionadas para o estudo da Ficção Brasileira Contemporânea. Tem várias publicações de livros e ensaios no Brasil e no exterior.

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