A identidade moçambicana no ilusório espelho da raça1

Terezinha Taborda Moreira*

Com certeza, a história da África não é uma história de “raças”. Contudo, para justificar uma certa história, abusou-se demais do mito pseudocientífico da superioridade de algumas “raças”. (...) A ciência antropológica, que já demonstrou amplamente não haver nenhuma relação entre a raça e o grau de inteligência, constata que essa conexão às vezes existe entre raça e classe social. A preeminência histórica da cultura sobre a biologia é evidente desde a aparição do Homo no planeta. Quando irá tal evidência impor-se aos espíritos?

Joseph Ki-Zerbo

A etnicidade, enquanto afirmação identitária actuante de uma “comunidade de origem” e exercício, semáforo permanente da relação “Nós/Eles”, remete para o polimorfismo. Na verdade, é próprio dela ser polissêmica e multipolar. Mas a etnicidade é, também, a “contaminação” permanente, a permeabilidade, a osmose, a maleabilidade situacional. (...) ela exprime várias realidades ao mesmo tempo, possui uma dinâmica que nada tem de irreversível.

Carlos Serra 

Cada homem é uma raça, publicado pela primeira vez em 1990, pela Editorial Caminho, é o segundo livro de estórias de Mia Couto. É constituído por onze narrativas curtas, cujas ações espelham diferentes momentos históricos que recobrem tanto os tempos coloniais quanto os anos posteriores à independência de Moçambique. Nesse percurso temporal, as narrativas, em seu conjunto, apresentam uma proposta singular de reflexão sobre o problema da figuração da identidade cultural, racial e étnica1 a partir de duas premissas: o entrelaçamento das conjunturas colonial e pós-colonial que marcam a história de Moçambique e a instauração de um tipo de pensamento que almeja distinguir-se de uma racionalidade europeia ocidental segregadora.

Nessa perspectiva, Cada homem é uma raça pode ser lido como um calidoscópio no qual fragmentos da história colonial e pós-colonial de Moçambique se misturam. Tentando flagrar os efeitos do impacto da dialética relação entre o colonizador e o colonizado em Moçambique, Mia Couto parece propor, com as narrativas que compõem a coletânea, uma série de imagens múltiplas que, em arranjos ora simétricos, ora assimétricos, vão desenhando as constantes, mas sucessivas e vertiginosas mutações que marcam o percurso de Moçambique como um país em flagrante invenção de si, em constante busca de sua identidade.

Como jogo de imagens, as narrativas não comportam uma visão maniqueísta na figuração dos acontecimentos. Não se encontram nelas a demarcação das oposições fixas que historicamente conformaram e reproduziram o enobrecimento do colonizador e o aviltamento do colonizado, consolidando a vitimização do africano sob o jugo do europeu. Ao contrário, tanto o português inescrupuloso quanto o negro corrupto são colocados em destaque. Acima de tudo, os personagens são flagrados em sua profunda capacidade de adaptar-se criticamente às diversas e inusitadas exigências e expectativas que os acontecimentos lhes vão trazendo. Assim, negros e brancos, homens e mulheres, adultos e crianças são caracterizados pelas oscilações que demarcam seu processo de adaptação a um mundo em constante mudança, enquanto afirmam sua condição de deslocamento em relação a uma identidade cultural, social, nacional e étnica.

Uma narrativa que nos permite explorar a visão caleidoscópica pela qual Mia Couto espelha o país no conjunto de narrativas que compõem a coletânea Cada homem é uma raça é “A princesa russa”. O tom confessional do negro assimilado Duarte Fortin que abre a narrativa enuncia sua condição de homem que tem um andar defeituoso, torto, coxo

Desculpa, senhor padre, não estou joelhar direito, é a minha perna, o senhor sabe: ela não encosta bem junto com o corpo, esta perna magrinha que uso na esquerda. Venho confessar pecados de muito tempo, sangue pisado na minha alma, tenho medo só de lembrar. Faz favor, senhor padre, me escuta devagar, tenha paciência. É uma história comprida. Como eu sempre digo: carreiro de formiga nunca termina perto (COUTO, 1994, p. 74).2

Não por acaso, o “defeito” de Fortin é na “perna magrinha” que ele usa “na esquerda”. Coxo, manco, torto, Duarte Fortin parece caracterizar-se por signos negativos que o colocam numa condição inferior. Talvez por isso o tom de submissão que marca a fala confessional do negro assimilado a se desculpar por “pecados de muito tempo”.

O ato de confessar implica uma revelação. Aquele que confessa revela ao confessor alguma coisa: um pecado, uma falta, uma culpa. Culpa: “responsabilidade por dano, mal, desastre causado a outrem; atitude ou ausência de atitude de que resulta, por ignorância ou descuido, dano, problema ou desastre para outrem”. Na psicologia, “emoção penosa (de autorrejeição e desajuste social) resultante de um conflito (p.ex., entre impulso, desejo ou fantasia e as normas sociais e individuais)”. E na religião, “transgressão de caráter religioso e/ou moral; pecado” (HOUAISS; VILLAR, 2009).

Mas do que se culpa Duarte Fortin? Que pecados teria ele cometido que despertam medo só de lembrar? Que “defeito” o leva a “joelhar” diante do senhor padre com uma perna que “não encosta bem junto com o corpo”? De que falta Duarte Fortin se culpa? O que ele precisa revelar?

No ato de confissão está implícito um desejo de mudança. Revelar é “tirar o véu (a); deixar(-se) ver; mostrar(-se), manifestar(-se)” (HOUAISS; VILLAR, 2009). Aquele que confessa sai de uma condição de culpado para ingressar, pela própria confissão, num caminho tortuoso que vai oferecer-lhe a possibilidade de purgar a culpa e alcançar a compaixão.

É nesse caminho que parece ingressar Duarte Fortin ao iniciar sua confissão. Nesse sentido, o percurso tortuoso que realiza diante do senhor padre, nas idas e vindas pelas quais dá a conhecer a história da passagem da “princesa russa” Nádia pela Vila de Manica, pode ser visto como uma projeção do próprio andar falho do personagem, andar esse que, ao descrever um trajeto sinuoso, sugere tanto sua propensão ao erro quanto sua conformidade em assumir essa propensão: “Tenho duas pernas: uma de santo, outra de diabo. Como posso seguir um só caminho?” (p. 74).

O andar falho e propenso ao erro do personagem parece encontrar explicação na “fatalidade” de ter duas pernas: uma de santo, outra de diabo. Como o próprio personagem explica: “Nasci com o defeito, foi castigo que Deus me reservou mesmo antes de eu me constituir em gente” (p. 75). E já sabemos que a perna de santo é a direita e a de diabo é a “perna magrinha” que ele usa “na esquerda” - um dos epítetos do diabo é Canhoto. Andar torto significa, assim, conformar-se com propósitos que estão além dele mesmo, seguir um “destino” que lhe foi outorgado, e assumir esse destino: o de não “seguir um só caminho”. Podemos nos perguntar se, ao assumir seu destino, Duarte Fortin não incorreria no paradoxo que envolve a iniciação, que prevê que o homem, para libertar-se de seu destino, deve entregar-se a ele. Talvez por isso ele ande num caminho tortuoso, pois, segundo Farjani (1987), quando o homem se torna um iniciado, ele anda torto porque tortuosos são os desígnios de Deus - no caso de Fortin, talvez seja melhor dizer que tortuosos são os desígnios da história, como se pretende mostrar adiante.

De qualquer forma, na explicação de Duarte Fortin para seu andar torto, além do traçado de um caminho sinuoso, podemos ler uma proposição simbólica para pensar dois espaços pelos quais o personagem parece se orientar: o da direita e o da esquerda. Definindo o conceito de espaço, Cirlot, em citação de Farjani, observa que:

Se procurarmos uma identificação que autorize a redução dos quatro pontos do plano horizontal a dois (esquerda e direita) temos uma base na afirmação de Jung para quem atrás equivale a inconsciente e adiante a manifesto ou consciente. Como o lado esquerdo se identifica também com o inconsciente e o direito com a consciência, atrás se torna equiparável à esquerda e adiante à direita. Outras assimilações são: lado esquerdo (passado, sinistro, reprimido, involução, anormal, ilegítimo), lado direito (futuro, destro, aberto, evolução, normal, legítimo) (CIRLOT apud FARJANI, 1987, p. 106).

No aspecto do simbolismo, voltar-se para a esquerda é contemplar o passado, o inconsciente, a introversão e voltar-se para a direita significa mirar o exterior, o futuro, a ação. Brandão, também citado por Farjani, discorrendo sobre o simbolismo da esquerda, explicita:

Dado o poder matrilinear, a dominação matronímica, a designação do país natal era feita pelo nome de mátria; o vocábulo pátria (de pai) é criação da androcracia ou patriarcado. Os lados, as direções, têm grande importância simbólica no matriarcado. Assim, a Ginecocracia deu preferência à esquerda: esta pertence à feminilidade passiva; a direita, à atividade masculina, já que a força normalmente está na mão direita (BRANDÃO apud FARJANI, 1987, p. 105 - grifos do autor).

As explicações de Brandão reafirmam a equação que atribui a masculinidade, a potência e a racionalidade à direita e associa a feminilidade, a fragilidade e a emoção à esquerda. Assim, na dualidade que caracteriza o andar do personagem Duarte Fortin, vamos reencontrar uma ideia de integração, num mesmo corpo, dos aspectos masculino e feminino, numa representação simbólica da androginia.

Aos signos negativos que caracterizam Duarte Fortin - coxo, manco e torto -, poderíamos acrescentar, então, a contemplação do passado, a introversão, a imersão no inconsciente, e mais, a feminilidade, a fragilidade, a emoção. Mas ler o personagem Duarte Fortin apenas pelo seu lado “esquerdo” implicaria incorrer no erro de não atentar para a consciência que ele manifesta em sua conformidade em assumir o seu destino de não “seguir um só caminho”. É necessário, então, considerar o paradoxo que envolve o personagem, de homem que encarna a dualidade.

Em sua confissão, Duarte Fortin revela ao senhor padre os privilégios dos quais desfrutava na condição de assimilado3 em que se encontrava na casa da princesa russa Nádia e de seu marido Iúri, casal que se fixara em Manica para explorar uma mina de ouro:

A casa deles, se o senhor só visse, estava cheia das coisas. E empregados? Eram mais que tantos. E eu, assimilado como que era, fiquei chefe dos criados. Sabe como me chamavam? Encarregado-geral. Era a minha categoria, eu era um alguém. Não trabalhava: mandava trabalhar. Os pedidos dos patrões era eu que atendia, eles falavam comigo de boa maneira, sempre com respeitos. Depois eu pegava aqueles pedidos e gritava ordens para esses mainatos. Gritava, sim. Só assim eles obedeciam. Ninguém desempenha canseiras só por gosto. [...] Os criados me odiavam, senhor padre. Eu sentia aquela raiva deles quando lhes roubava os feriados. Não me importava, até que gostava de não ser gostado. Aquela raiva deles me engordava, eu me sentia quase-quase patrão (COUTO, 1994, p. 74).

Na forma como Duarte Fortin exerce sua função de Encarregado-geral dos negros na residência do casal Iúri e Nádia, encontramos as situações conflitivas resultantes do contato entre a cultura europeia e a cultura africana, marcado pela opressão que definiu a situação colonial em Moçambique e na África. Nesse contato, o português emigrado para a colônia assume a postura colonialista de senhor de direito das vantagens oferecidas a ele. Como nos ensina Albert Memmi (1997), a relação do sujeito colonizador com a metrópole é ambígua: por um lado, seu país de origem é tido como um lugar de perfeição e idealizado em seu discurso; por outro, ele sabe que, neste país, não existe mais lugar para ele, pois sua superioridade somente pode ser exercida na colônia. Assim, ao mesmo tempo em que louva a glória da nação de origem, o colonizador nutre contra a metrópole um profundo ressentimento (MEMMI, 1977, p. 65). Talvez por isso ele procure a desvalorização sistemática do colonizado. Como uma espécie de compensação ao seu exílio, acentua as diferenças com o colonizado como forma de recusar qualquer possível aproximação. Instala, assim, o racismo, como um mecanismo para legitimar as diferenças e justificar a colonização.

O embondeiro que sonhava pássaros” é um exemplo da encenação desse lugar ilusório de senhor de direito das vantagens oferecidas a ele que o colono deseja ocupar em Moçambique. Inconformados com o sucesso do vendedor de pássaros, pela boca de quem, por obra de uma gaita, “o mundo inteiro se fabulava” (p. 62), os colonos inquietam-se, crédulos que estão de possuírem os segredos da África: “Os portugueses se interrogavam: onde desencantava ele tão maravilhosas criaturas? onde, se eles tinham já desbravado os mais extensos matos?” (p. 63). Rebento da terra, o passarinheiro desautoriza, com seu comércio de pássaros que “esvoavam suas cores repentinas” (p. 61) e enchiam as casas de cantos, o domínio da terra pelos colonos, ignorando os “deveres de raça” (p. 64), que restringiam o trânsito dos negros pelas ruas onde residiam os brancos. Revoltados com um comércio que lhes “desautenticava” (p. 64), os colonos voltam-se contra o negro, a fim de eliminarem a evidência de sua condição de estrangeiros numa terra que julgavam dominar.

Tratando do retrato mítico do colonizado produzido pelo colonizador, que desempenha importante papel na dialética entre enobrecimento do segundo/aviltamento do primeiro, Memmi explica-nos que essa imagem se fundamenta numa série de traços atribuídos ao africano pelo europeu. Tais traços demarcam-se pela negação e estabelecem, para o colonizado, uma condição inferior. São eles a preguiça, a debilidade, a perversidade, o sadismo, a inaptidão, os maus instintos, a astúcia, o atraso. Marcados pela negatividade, esses traços justificam todas as atitudes do colonizador, que variam do protetorado à violência física e institucional. Pela negação, o colonizador não vê o colonizado como ele é, mas transforma-o em outra coisa, rejeita as qualidades que poderiam torná-los iguais, desumaniza-o. Por seu lado, o colonizado acaba aceitando essa imagem proposta pelo outro e, paradoxalmente, acaba contribuindo para que esse retrato ganhe uma “certa realidade” (MEMMI, 1977, p. 83).

Bhabha (1998), discutindo acerca das formas e funções do discurso colonial, procura mostrar como o estereótipo do outro, construído pelo sujeito colonial, é uma necessidade de autoconservação, de defesa, refletindo seu medo em relação ao diferente. Para Bhabha, o estereótipo evidencia as estruturas rígidas do sujeito do discurso colonial e, ao mesmo tempo, fixa a imagem do outro, difunde-a e transmite-a, a fim de que ela cumpra uma função. Diante dessa construção de linguagem que o mostra, a si mesmo, como inferior, o colonizado é obrigado a aceitar-se como ocupante de um lugar de privação, de deficiências, de negação de uma posição no mundo da história, de impossibilidade de retorno aos valores tradicionais, de uma verdadeira amnésia cultural provocada pela reprodução da situação colonial.

Duas respostas se oferecem a esse lugar de privação. A primeira é a tentativa de assumir a posição do colonizador, viabilizada, principalmente, por meio da assimilação. A segunda é a revolta, que demanda do colonizado aceitar sua diferença - a qual é definida pelo colonizador - e fazer oscilar “o equilíbrio sempre instável da colonização” (MEMMI, 1977, p. 108). Nessa segunda resposta, encontramos a tese de Frantz Fanon, para quem o colonialismo é uma violência em estado bruto, que “somente pode inclinar-se diante de uma violência maior” (FANON, 1979, p. 46).

Moçambique conquistou sua independência em 25 de julho de 1975, posteriormente a um movimento de luta anticolonial que durou quinze anos, levado a cabo pelo movimento revolucionário de fundo marxista da Frente de Libertação de Moçambique - FRELIMO. Parece haver o consenso, entre os estudiosos, de que esse fato fez com que a independência de Moçambique fosse vivida com um enorme sentimento de esperança e o país conseguisse estabelecer a paz (Cf. SERRA, 1997; CABRAL, 2005). Porém, a nacionalização fez com que os líderes do movimento assumissem o país sem estar preparados para tomar em suas mãos um estado moderno. Em poucos anos, iniciou-se, no país, uma guerra civil que, para João de Pina Cabral, era sustentada por um profundo sentimento de desengajamento em face do aparelho de Estado, por parte das populações rurais do Norte do país, devido à forma como este tinha passado diretamente, e sem qualquer negociação de poder, das mãos da administração colonial para uma elite urbana majoritariamente changana, sediada no Sul do país (CABRAL, 2005).

Vemos, na condição de assimilado assumida por Duarte Fortin, uma resposta ao estereótipo do colonizado traçado por Bhabha. Ao sentir-se “quase-quase patrão” (p. 74), Fortin parece pretender rejeitar uma construção de linguagem que o mostra, a si mesmo, como inferior, que o obriga a aceitar-se como ocupante de um lugar de privação, de deficiências, de negação de uma posição no mundo da história. E ele o faz assumindo uma postura autoritária que projeta, em sua relação com seus subordinados, a opressão que o sistema colonial exercia contra os negros: “Desconfiavam-me. Mas eu me sentia elogiado com aquela suspeita: comandava medo que lhes fazia tão pequenos” (p. 75).

Ao despertar medo em seus comandados, Fortin manifesta a amnésia cultural provocada pela reprodução da situação colonial de que também nos fala Bhabha, que lhe impossibilita o retorno aos valores tradicionais e, consequentemente, desloca-o em relação a sua identidade negra moçambicana. Ao mesmo tempo, tal atitude reflete sua inconsciência em relação ao racismo, instalado em Moçambique pelo português como mecanismo legitimador das diferenças existentes entre colonizadores e colonos e responsável pela condição miserável em que vivem os negros em decorrência do sistema colonial:

Perguntei se na terra dela havia pretos e ela fartou de rir: ó Fortin, você faz cada perguntas! Admirei: se não havia pretos quem fazia os trabalhos pesados lá na terra dela? São brancos, respondeu. Brancos? Mentira dela, pensei. Afinal, quantas leis existem nesse mundo? Ou será que a desgraça não foi distribuída conforme as raças? (COUTO, 1994, p. 76).

Como assimilado, Duarte Fortin exerce seu poder sobre os mainatos sem se dar conta de que reproduz um modelo de dominação que reforça a diferença racial como um mito social discriminatório. Até o dia em que, atendendo a um pedido de Nádia para conduzi-la para fora da “grande casa, arrumadinha segundo a vontade dos seus costumes” (p. 77), a fim de entender “o motivo do patrão não lhe deixar sair, nunca autorizar” (p. 77), ele descobre, pelo olhar da mulher branca, toda a miséria que marca não somente a vivência dos negros mainatos, mas também a sua própria vivência. Essa descoberta se inicia logo que Nádia entra pela primeira vez na cubata de Duarte Fortin e, sentando-se em sua esteira, “corrige suas certezas” (p. 76), dizendo-lhe que os bichos “é que usam tocas para esconder. Casa de pessoa é lugar de ficar, o sítio onde semeamos as nossas vidas” (p. 76). E alcança seu momento de maior impacto quando, após um segundo desabamento da mina de ouro explorada pelo marido Iúri, ela protesta contra o sofrimento dos negros, que misturam à terra arrasada seu próprio sangue, derramado pelos destroços da vida senhoril sustentadora do racismo que ela tratara de destruir com suas próprias mãos:

Subiu o relógio bem acima da cabeça e, com força máxima, atirou-lhe no chão. Os vidros se espalharam, brilhantes grãos cobriram o chão. Ela continuou partindo outras louças, tudo fazendo sem pressas, sem gritos. Mas aqueles vidros cortavam a alma dela, eu sabia. O patrão, sim, gritou. Primeiro em português. Deu ordem para que parasse. A princesa não obedeceu. Ele gritou na língua, ela nem ouviu. E, sabe o que ela fez? Não, o senhor não pode imaginar, mesmo a mim me custa testemunhar-me. A princesa descalçou os sapatos e, olhando a cara do marido, começou a dançar em cima dos vidros. Dançou, dançou, dançou. O sangue que deixou, senhor padre! Eu sei, fui eu que limpei (COUTO, 1994, p. 81).

Lavar o sangue de Nádia parece fazer brotar em Duarte Fortin uma força nova, que o prende à sua própria vontade e leva-o, talvez pela primeira vez em sua vida de negro assimilado, a desobedecer a uma ordem:

Levei o pano, passei no chão como se cariciasse o corpo da senhora, consolando as tantas feridas. O patrão me ordenou que saísse, deixasse tudo como que estava. Mas eu recusei. Tenho que limpar este sangue, patrão. Respondi com voz que nem parecia minha. Desobedecia eu? De onde vinha aquela força que me segurou no chão, preso na minha vontade? (COUTO, 1994, p. 81).

Interessa-nos reter aqui o fato de que a rebeldia de Fortin se manifesta ao contato com Nádia4. Nádia é a mulher branca, frágil e oprimida pelo marido, vivendo “tão longe dos da raça dela, ali, no pleno mato” (p. 77). A convivência e a identificação com Nádia fazem emergir em Fortin algo que ele se esforça por esconder dos mainatos: o profundo desespero que experimenta em relação ao sofrimento dos negros. Nos dois desabamentos da mina de ouro, Duarte Fortin abandona os salvamentos, incapaz de lidar com a angústia causada pela aflição que se abateu sobre os negros. “Rezamos a Deus para, depois de falecermos, nos salvar dos infernos. Mas afinal os infernos já nós vivemos, calcamos suas chamas, levamos a alma cheia de cicatrizes” (p. 80), diz ele ao padre, ao descrever o desabamento da mina como uma “machamba de areia e sangue” (p. 80) que despertava medo só de pisar, porque “a morte se enterrava nos nossos olhos, puxando a nossa alma com os muitos braços que ela tem” (p. 80). Angustiado, Fortin dá as costas àquele martírio e caminha em suas próprias lágrimas: “Eu, senhor padre, não aguentei, desconsegui. Foi pecado mas eu dei costas naquela desgraça. Aquele sofrimento era demasiado. Um dos mainatos me tentou segurar, me insultou. Eu desviei o rosto, não queria que ele visse que eu estava a chorar” (p. 80).

A conscientização de Fortin sobre a condição dos negros instala na narrativa um processo decorrente da assimilação: a conscientização racial, social, cultural e política de muitos dos súditos negros e mestiços do regime colonial. Para Russel Hamilton, os assimilados iam “ganhando uma visão de mundo que lhes permitia adquirir uma perspectiva cada vez mais reflexiva a respeito das justaposições entre o colonizador e o colonizado” (HAMILTON, 2000, p. 15). Comentando a conotação negativa do termo assimilado, Hamilton chama a atenção para o fato de ele se referir ao grupo de africanos aculturados que constituiu o núcleo da intelectualidade, de cujas fileiras saíram muitos dos militantes que lutaram contra o colonialismo. Assim, se, num primeiro momento, o contato com a cultura branca leva Fortin a tentar assumir a posição do colonizador, por meio da assimilação, num segundo momento, é em decorrência desse contato com a cultura branca que ele vai se conscientizar do racismo instalado pelo sistema colonial, como também de suas consequências negativas para a população negra.

E aqui nos deparamos com a dualidade que caracteriza Duarte Fortin em sua conformidade em assumir o seu destino de não seguir um só caminho. Como negro assimilado, num primeiro momento ele tenta assumir a posição do branco colonizador e se desloca de sua identidade negra moçambicana - “Eu sempre bati por mando de outros, espalhei porradarias. Só bati gente da minha cor. Agora, olho em volta, não tenho ninguém que eu posso chamar de irmão. Ninguém” (p. 78). Num segundo momento, identificando-se com a princesa russa Nádia, ele se desloca de sua condição de assimilado e retorna às suas raízes - “E sabe como salvei, padre? É porque enfiei os braços na terra quente, como faziam aqueles mineiros moribundos. Foram as minhas raízes que me amarraram à vida, foi isso que me salvou” (p. 85-86). Porém, ao retornar a suas raízes, Fortin carrega o fardo da aculturação num corpo negro que verga, coxo e manco, ao peso de uma história que o obriga a errar, a vaguear sem rumo num caminho tortuoso que, tal qual um iniciado, ele deve percorrer na busca por sua identidade.

Seguindo dois caminhos, o colonial e o pós-colonial, mirando o passado e o futuro ao mesmo tempo, “alma distribuída em dois corpos contrários: um macho, outro fêmea; um preto, outro branco” (p. 85), Duarte Fortin é um homem “desistido”: “É que já me sinto tão pouco” (p. 87). Sua única alegria é passear nas poeiras e cinzas da antiga mina dos russos, caminhar sozinho e, depois, sentar-se num velho tronco e olhar para os próprios passos: “Vejo duas pegadas, diferentes, mas ambas saídas do meu corpo. Umas de pé grande, pé masculino. Outras são marcas de pé pequeno, de mulher. Esse é o pé da princesa, dessa que caminha ao meu lado” (p. 87).

Em seu corpo cindido, o lado esquerdo, de pé pequeno, de mulher, manco, coxo, traz as marcas da cultura branca que ele suporta, apoiado no lado direito, de pé grande, masculino, negro. Se retomarmos a ideia de Fortin como iniciado, vemos que sua história pessoal de indivíduo eleito pela fatalidade funciona como ponto de emergência para a eclosão de uma problemática coletiva. A sorte de Duarte Fortin não é condicionada por um único fator - ele como homem negro -, e sim por uma cadeia de fatores ligados ao processo de colonização e ao racismo dela decorrente. Essa ideia é explicada por Farjani quando nos diz que as ações individuais do iniciado se diluem num contexto mais amplo, onde o coletivo é preponderante (FARJANI, 1987, p. 95). A coxeadura de Fortin assumiria, nesse caso, a marca do assumimento do fardo imposto pela história da colonização e da aculturação moçambicanas - vale dizer, africanas. Essa carga de maldição e bem-aventurança parece ser uma sina imposta a Moçambique que todos os moçambicanos, de algum modo, terão de carregar ao longo de sua existência, como a carregam outros personagens das narrativas da coletânea Cada homem é uma raça.

É assim que Rosa, da narrativa “A Rosa Caramela”, carrega nos ombros uma corcunda que denuncia sua origem mestiça, “mistura das raças todas” que resulta de seu corpo que “cruzava muitos continentes” (p. 15). Vagueando sem rumo pelas ruas da cidade, o luar confirma “seu desenho torto”, enquanto as conversas que ela mantém com as estátuas de pedra com as quais se irmana, de tanto nelas se encostar, confirmam sua razão aleijada pelo malogro da tentativa de casamento com Juca, que a deixa esperando “no consolo do degrau, a pedra sustentanto o seu universal desencanto” (p. 17). Transitando de matéria, Rosa Caramela se faz pedra em suas atitudes para com um mundo que a rejeita. Somente Juca, o ex-noivo que recusa o mundo que a rejeita e, por isso mesmo, se petrifica em inércia, fazendo-se “cúmplice da velha cadeira” (p. 18) de tanto nela se encostar, poderá malograr a transformação da “corcunda-marreca” (p. 15) em pedra. E ele o faz quando opta por carregar com ela o fardo da diferença que, já agora, os coloca, a ambos, à margem de uma paisagem urbana que almeja excluir o “pé do passado” (p. 20) colonial que, com o corpo da mestiça, “rasteirava” o presente pós-colonial.

Essa problematização da visão do mestiço como rasto do passado colonial no presente pós-colonial aparece em várias narrativas e realça a ambiguidade que cerca a figura do mulato na sociedade moçambicana. Discutindo a realidade e os mitos da etnicidade em Moçambique, Carlos Serra afirma que “nada há em Moçambique que não seja o processo de mestiçagem cultural permanente” (SERRA, 1997, p. 143). Com esta afirmação, o pesquisador procura traduzir a permeabilidade cultural, o ser transfronteiriço e a relação política como elementos fundamentais para pensar o homem moçambicano ao longo da história do país. Para Serra,

a etnicidade não é, apenas, um exercício identitário natural que inclui e exclui, não é apenas da ordem da relação “amigo/inimigo” (...); também não é, apenas, da mera ordem da mestiçagem, seja da espontânea, seja esta, especialmente, consciente. Na realidade, a etnicidade remete igual e fundamentalmente para a reformulação conflitual e estratégica (no sentido de “programa” destinado a tirar o melhor partido possível do relacionamento com o Outro) e táctica (no sentido dos meios, dos mecanismos ajustados ao “fim estratégico”), para a subversão “política” contínua, enfim. Ela pode contemplar a interiorização empática consciente, estratégica, de Outros e da ordem desses Outros, interiorização identitária que vai, depois, agir retrospectivamente. Essa interiorização conflitual pode agir como compensação ou supercompensação para situações de risco ou de inferioridade social ou política, nomeadamente naquelas onde os actores sociais pertencem a minorias étnicas, a grupos subjugados numa guerra, etc. (SERRA, 1997, p. 145 - grifos do autor).

Destaca-se, nas reflexões de Serra, sobretudo o caráter político da recomposição identitária étnica de grupos que se desvinculam de suas identidades de origem e se reetnicizam situacionalmente5. A atribuição de caráter político para a mestiçagem importa pelo fato de permitir pensar a situação do mulato e do negro na sociedade moçambicana não apenas a partir da relação de vitimização imposta pelo colonizador, mas também a partir de um jogo de negociações em que o mulato, e também o negro, tinham um papel ativo. Como o próprio Serra defende, as etnias têm, no período de 1957 a 1974, a cristalização administrativo-militar de um processo que começou no fim do século XIX. Afirma o pesquisador que

As dicotomias identitárias “Nós/Eles” não são uma criação colonial. A etnicidade, tal como eu a tenho considerado e no que concerne ao seu eixo convencional, não é, obviamente, obra do colonialismo. Mas já é obra plural desse colonialismo o seu redimensionamento. Para isso contribuíram o esforço etnométrico missionário, o colete de forças administrativo-colonial, as remodelações efectuadas nas regedorias e o “poder” dado à nobreza rural, factores sistematizados e cristalizados durante a gestão autoritária pós-1957-/62 (SERRA, 1997, p. 171 - grifos do autor).

Nesse redimensionamento, acredito podermos visualizar as ambiguidades que cercam o tratamento do mulato nas narrativas aqui estudadas. Assim, na narrativa “Sidney Poitier na barbearia de Firipe Beruberu”, por exemplo, encontramos o barbeiro Firipe Beruberu, que capina as cabeças dos clientes enquanto desfila “propagandas do serviço” (p. 146) - como a do ator norte-americano Sidney Poitier, que, apesar de rico, deixa de ir ao salão dos brancos para trazer “a cabeça dele desde lááá, da América” (p. 147) até a barbearia do mestre. Até o dia em que é surpreendido pela entrada, na sombra de maçaniqueira que conforma os contornos de sua barbearia, de um mulato, quase branco, um “Pide” (p. 155), que o leva, juntamente com o velho vendedor de folha de tabaco Jaimão e o aleijado Gaspar Vivito, em seu último caminho na areia do Maquinino, acusado de subversão, enquanto instala, entre os moradores, uma ausência que os coloca em estado de espera do regresso de Firipe Beruberu, o mestre dos barbeiros. Aqui, a presença do mulato na narrativa pode ser lida a partir de uma remissão ao caráter político da recomposição identitária étnica do “Pide”, por meio da assimilação, num processo semelhante ao que vimos acontecer com Duarte Fortin.

Já “Os mastros do Paralém” elucida, nas palavras do negro Constante Bene, a visão pejorativa que o negro sustenta sobre o mulato: “o misto não é sim, nem não. É um talvez. Branco, se lhe convém. Negro, se lhe interessa. E, depois, como esquecer a vergonha que eles trazem de sua mãe?” (p. 167). A vergonha, nesse caso, decorre de uma atitude comum na mulher africana de, como Chiquinha, entregar-se ao patrão branco para fugir da miséria. A dificuldade que Constante Bene manifesta em assumir-se avô de um neto mestiço ilustra a relação tensa entre negros e mulatos. A mudança de perspectiva em relação ao mulato somente acontece quando Constante Bene, tomando conhecimento de que o neto mestiço fora gerado pelo patrão branco “xikaka Tavares” (p. 163), decide empunhar a bandeira do mulato que, “em prodígio de estrela” (p. 181), será alçada no mastro da administração em chamas, como um símbolo da mudança de status do negro que, conscientizando-se de sua condição de subalternidade, revolta-se e assume o lugar de sujeito de sua história. Veja-se que a presença do mulato, na narrativa, destaca-o como elemento gerador de conflitos. A emergência do mulato coloca em evidência a mistura das raças. Essa mistura desestabiliza os lugares que definem as diferenças entre brancos, negros e mulatos. Contrariamente à narrativa anterior, o nascimento do mulato impõe ao negro uma renegociação de papéis e de relações para a concretização das mudanças que se operam na narrativa. Ao contato com a mestiçagem, Constante Bene não poderá mais ser o mesmo negro passivo, temente das “sanções do mais querer” (p. 164).

Podemos dizer que o que distingue os personagens de Mia Couto - tais como Duarte Fortin, Rosa Caramela, seu noivo Juca e Constante Bene, dentre outros que vagam, errantes, pelas narrativas - é que eles se fazem conscientes da impossibilidade de “seguir um só caminho”. Assim, o caminho tortuoso que têm que seguir, em vez de arrojá-los ao chão do anonimato, alça-os em sua diferença. E que diferença seria essa? No contexto da obra de Mia Couto em estudo, esses personagens instauram um tipo de pensamento que os distingue de uma racionalidade europeia ocidental que segrega os homens, “arrumando as criaturas pela sua aparência” (p. 64). A partir dessa diferença, esses personagens inauguram uma reflexão profunda sobre o problema da identidade racial, étnica, cultural, social e nacional de Moçambique como um país que ainda se inventa.

Se retomarmos a ideia da iniciação para pensar esses personagens de Mia Couto, poderemos, uma última vez, nos reportar a Farjani para nos lembrar que a iniciação nunca expressa algo estático, e sim um processo dinâmico, de eterna transformação (FARJANI, 1987), já que ela implica um caminho para o autoconhecimento. A noção processual de dinamismo, de transformação eterna que envolve o iniciado em seu percurso, encontra eco na ideia de permeabilidade cultural, de ser transfronteiriço e de relação política que envolve o homem moçambicano ao longo de sua história, defendida por Serra. Ambas as ideias nos obrigam a retornar às páginas iniciais da reflexão sobre a identidade cultural, racial e étnica moçambicana proposta por Mia Couto para reencontrar, em nossa própria errância pela literatura moçambicana, o seguinte extrato das “declarações do vendedor de pássaros”:

Inquirido sobre a sua raça, respondeu: 
– A minha raça sou eu, João Passarinheiro.
Convidado a explicar-se, acrescentou:
– Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor polícia (COUTO, 1994, p. 9).

Notas

1. Originalmente publicado como capítulo do livro organizado por Fernanda Cavacas, Rita Chaves e Tania Macêdo, intitulado Mia Couto: desejo de contar e de inventar (Maputo: Sociedade Editorial Ndjira, 2010). Este texto resulta de investigações realizadas em dois projetos de pesquisa, a saber, “Raça, cor e etnia na cultura/literatura”, que contou com o apoio do CNPq e “Imagens de negos e mestiços nas literaturas de língua portuguesa”, que contou com o apoio da FAPEMIG.

2. As ideias de raça e etnia com as quais se trabalhará neste estudo baseiam-se nas reflexões de Carlos Serra. Para Serra a raça está “menos ligada à hereditariedade bio-somática do que à percepção das diferenças físicas atinentes ao status dos grupos e dos indivíduos e às relações sociais.” (SERRA, 1997, p. 110). O pesquisador acredita que “a raça torna-se fenómeno sociológico quando, em situações de confrontação e de tensão social e de luta por recursos, componentes fenotípicas são rapidamente, ‘instintivamente’ e estrategicamente invocados, manipulados e sujeitos a um tratamento estigmatório”. (SERRA, 1997, p. 111). Quanto à etnia, Serra realça a importância de “desconstruir toda a visão da etnicidade como um campo de visibilidade instantânea, unitária, acabada, isenta do que nela é, permanentemente, mestiçagem, conflitualidade, estratégia, mestiçagem, história e hermenêutica.” (SERRA, 1997, p. 148).

3. Doravante, todas as citações da obra serão assinaladas pelo número de página, uma vez que se referem a essa mesma edição.

4. “Em 1926, António Salazar, primeiro ministro ditatorial de Portugal, oficializou a assimilação nas colônias. Segundo a lei da assimilação, o africano, a fim de ser oficialmente reconhecido como civilizado, tinha que submeter-se a um processo de europeização. Para ser considerado assimilado, o indígena via-se obrigado a abandonar os usos e costumes tradicionais, adotar a religião cristã, falar e ser alfabetizado em português e portar-se sob normas do sistema econômico imposto pelos colonizadores” (HAMILTON, 2000, p. 14).

5. Não vamos abrir, neste momento, uma reflexão sobre o fato de Nádia, como princesa russa, poder sinalizar a presença comunista cubana e soviética em Angola entre 1975 e 1992, embora reconheçamos que haveria possibilidade de explorar esse tópico na narrativa e mesmo na coletânea Cada homem é uma raça.

6. Dentre os vários exemplos citados pelo pesquisador, selecionamos o da organização militar nascida na Maganja da Costa, na segunda metade do século XIX: “Escreveu João de Azevedo Coutinho que o muzungo João Bonifácio da Silva (...), aventureiro, caçador e comerciante, recrutou os seus homens ‘entre os afamados e destemidos caçadores do Absinta, Caia, Chupanga ou no Alto Marral e Massinjire’. Foram eles que vieram a constituir, após a morte do M’passo, as famosas ensacas do condo (força) da ‘república militar’, como a intitulou Coutinho, da Maganja, comandadas pelos cazembes. Desvinculados a pouco e pouco das suas identidades de origem, reetnicizados situacionalmente, os maganjeiros vieram a tornar-se não um grupo étnico convencional (tem-nos apelidado ‘maganja’, ‘nharinga’, ou, ainda, ‘anyaringa’) ou uma bem organizada força de ‘cipaios’, mas uma casta militarizada que geria os amuene e as populações locais, sobre quem fazia incidir a cobrança do ‘mussoco’ (imposto). Nesse sentido, os maganjeiros são, também e fundamentalmente, um exemplo identitário político claro, um exemplo de etnicidade politizada com êxito.” (SERRA, 1997, p. 151 - grifos do autor)

Referências

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução: Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução de Vera da Costa e Silva [et al]. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.

COUTO, Mia. Cada homem é uma raça. Lisboa: Editorial Caminho, 1994.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução: José Lourenço de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

FARJANI, Antônio Carlos. Édipo Claudicante. Do mito ao complexo. São Paulo: Edicon. 1987.

HAMILTON, Russel. Introdução. In: SEPÚLVEDA, M. C. e SALGADO, M. T. África & Brasil: letras em laços. Rio de Janeiro: Atlântica, 2000.

HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

KI-ZERBO, Joseph. Teorias relativas às “raças” e história da África. In: Idem. História Geral da África: metodologia e pré-História da África. vol. I. São Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1982.

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. 2. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

PINA CABRAL, João de. Crises de fraternidade: literatura e etnicidade no Moçambique pós-colonial. In. Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 24, p. 229-253, jul./dez. 2005.

SERRA, Carlos. Novos combates pela mentalidade sociológica. Sociologia política das relações de poder em Moçambique seguido de Desafios de uma Medicina Bernardiana. Maputo: Livraria Universitária UEM, 1997.

SERRA, Carlos. Novos combates pela mentalidade sociológica. Crenças anónimas de massa em Moçambique seguido de Mitos e realidade da etnicidade e de “Para um novo paradigma da etnicidade”. Livraria Universitária UEM, 1997a.

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* Terezinha Taborda Moreira é Doutora em Letras e Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte. Pesquisadora CNPq-Nível 2. É autora de O vão da voz: a metamorfose do narrador na ficção moçambicana (2005); e coorganizadora de Tramas e Traumas - escritas de guerra em Angola e Moçambique (2018); Violência e escrita literária (2020) e Mulheres e guerras: participações femininas em conflitos armados através de textos contemporâneos (2020).

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