Virgílio de Lemos: a insularidade reinventada
Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco*
Ao Virgílio de Lemos, in memoriam
Em geral, as pessoas passam pelo mundo e acumulam fios. Não sei se, no tecer de sua vida, o poeta Virgílio de Lemos o fez, pois ele era um ser de mudanças, de rupturas. Transgressor por excelência, se insurgia contra tudo que era estático, linear, costumeiro. Era errância, quando esta significava criatividade, coragem de ousar. Seus fios, “arrizomaticamente” (Cf. DELEUZE e GUATTARI, 2006, p. 47), tomaram diversas direções: Ibo, Lourenço Marques, Paris, Maputo, Rio de Janeiro. Seu sorriso saía do canto da boca e dos olhos inteligentes, muitas vezes insular, porém se mostrava ensolarado pela alegria de estar com os amigos. Seus poemas amaram suas ilhas da infância, assim como ele amou Bertina, os filhos gêmeos, o irmão Eugénio, Cathie, Cedric e o neto Abel. Tantos fios se acumulam: fios de lembranças e saudades do Virgílio. Local, nacional, universal se alternam e se interpenetram em sua poesia. Suas ilhas eram representações de espaços geográficos originários, todavia, eram, ao mesmo tempo, ínsulas inventadas, imaginadas. “Com Virgílio de Lemos estamos no caso de uma ‘insularidade’ muito sui generis, que faz explodir o seu conceito tradicional para abrir novas vias” (Cf. NUNES, 1999, site ).
Américo Nunes, no prefácio ao livro A dimensão do desejo, de Virgílio de Lemos, menciona que o conceituado crítico “Eduardo Lourenço, em artigo no Jornal de Letras, apontou três poetas incontornáveis na literatura moçambicana: Craveirinha, Rui Knopfli e Virgílio de Lemos” (NUNES. In: LEMOS, 2012, p. XV). Concordamos inteiramente, na medida em que Virgílio foi o introdutor de uma modernidade poética em Moçambique.
Na antologia A invenção das ilhas, organizada por Antônio Cabrita, o próprio Virgílio situa sua multifacetada identidade: “nasci assistido por mulheres makuas-swahilis, em 1929, na Ilha de Ibo, arquipélago das Quirimbas, na costa norte moçambicana. Filho de portugueses, familiares de funcionários da coroa, ‘ultramarinos’ que viajavam no triângulo Lisboa-Rio-Goa, trago em mim heranças orientais, tradições mouras (...) (LEMOS, 2009, p. 07).
Ser das ilhas e do mundo, Virgílio escreveu poemas que perseguem um universo interior, mas que se inserem, também, na grandeza cósmica da poesia e da existência.
As ilhas, de um modo geral, são um resumo metafísico do universo. As ilhas do norte de Moçambique representam a permanência, através dos séculos, dos múltiplos entrecruzamentos culturais existentes no tecido social moçambicano. Eu canto Muipíti, pois lá se encontram heranças manuelinas, mouras, macuas, swahilis. Da Ilha do Ibo, trago a memória dos encantos swahilis e macuas, a imponência das fortalezas lusas e das construções árabes (...) Em cada ilha ou território visitado através de minha errância pelo mundo, estão presentes os elípticos labirintos que nutrem minha poesia (LEMOS, 2009, p. 26).
No poema “Ariel, universo interior que me persegue”, é Bruno dos Reis, um dos heterônimos de Virgílio de Lemos, que mergulha na imensidão de um mar interiorizado, estranheza insular, envolta em brumas, penumbras: “A beleza das coisas é o seu olhar secreto, voz em que meu corpo se perde. A luz de tua alma que tua penumbra protege” (LEMOS, 2009, p. 33). Esse jogo de luz e sombra está presente nas paisagens insulares captadas por sua poesia que revisita fragmentos significativos da história de Moçambique.
Modernamente, o conceito de paisagem não se limita, apenas, a lugares geográficos; as paisagens fazem parte da história e da cultura dos povos, encontrando-se sempre em movência, recriadas, no espaço e no tempo, pelos olhares dos homens de cada sociedade. Para Milton Santos, "paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprime as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre o homem e a natureza" (SANTOS, 1997, p. 103). Nessa perspectiva, as paisagens podem possibilitar diálogos entre o presente e o passado. Há paisagens físicas, existenciais, culturais, artísticas. As artes, em geral, operam com cartografias imaginárias, concebendo as paisagens como metáforas. São as paisagens poéticas, pictóricas que, esteticamente, expressam questões vitais, filosóficas, culturais.
A poética de Virgílio de Lemos estabelece um traçado infinito, que se abre a múltiplos sentidos poéticos, a inúmeras subjetividades líricas, responsáveis por importantes reflexões sobre o mundo, demonstrando que “paisagem não é só o que dá a ver, mas também a pensar” (COLLOT, 2013, p.17).
Lee-Li-Yang, o heterônimo feminino de Virgílio de Lemos, escreve num “mar de tochas líquidas” (LEMOS, 2009, p. 41); incendeia um erotismo interior: “mar que me invade me possui/ e subverte. Golpes de tua luz/ em meu sonho/ mar de mim para mim” (LEMOS, 2009, p. 43). Mar das ilhas, dos desejos, viço, tempestade, embriaguez através de sonhos e capulanas. Mar, por meio do qual o poeta intertextualiza com Rilke, Rimbaud, Sá Carneiro, Pessoa, Withman, entre outros, e se internacionaliza: “Somos mais (...)/ Rilke,/Álvaro de Campos, e Withman,/ Pessoa,/ (...)/ quebra-cabeça de borboletejar da poesia/ voz de msaho – reabilitação de um tempo por desvendar” (LEMOS, 2009, p. 38).
Os ventos do Índico atravessam a maioria dos poemas inseridos na antologia A invenção das ilhas. Duarte Galvão, o heterônimo de Virgílio ligado às questões sociais e apaixonado por Lee-Li-Yang, também ilumina com mar e vento sua escrita poética: “O vento sul/ vai / abrindo sul-/cos/ na alma e/ o azul /reabrindo flancos/ no mar. (...) Desmedido nada é /tão mar/ quanto nua/ a alma. / Nada é /tão genuíno e /tão frágil/ quanto/ a vida” (LEMOS, 2009, p. 69).
A palavra poética é a grande impulsionadora da magia desses versos, mas não só, pois o silêncio aqui também se impõe. Este e a imaginação são construtores de textos que mexem com nosso lado de imprudências, desarrumando certezas e estabilidades. Conforme explica Américo Nunes, estudioso da poesia virgiliana, “o ser fragmentado do Homem assume, no poeta, as suas tensões mais insustentáveis, ele não procura reconciliá-las, mas deixá-las vibrar na circulação frenética das suas intensidades” (NUNES. In: LEMOS, 2012, p. XI).
Virgílio de Lemos, em ensaio que ficou famoso, defendeu a presença de um barroco puramente estético na sua poesia e na literatura moçambicana em geral. Um barroco que nada tem a ver com a Reforma e a Contra-Reforma. Um barroco transgressor, irreverente, que se constrói como atitude subversiva de procura de identidade. Segundo Virgílio, esse barroco levou a poesia moçambicana a ingressar na modernidade literária:
(...) através da escritura literária, a qual buscava libertar o corpo oprimido dos poemas: de Roberto Chichorro; de Bertina Lopes, com quem fui casado e tive dois filhos gêmeos; de Eugénio de Lemos, meu irmão, cujas aguarelas expressavam o erotismo próprio desse barroquismo feito de elipses que se desdobravam em labirintos e infinitos. (...) Na produção que designamos de ‘barroco estético’, ressalta a força do erotismo do sexo, cuja função é provocar constantemente um exercício da libertação da palavra, da pintura ou da escultura. (LEMOS, 2009, p. 22 - 23)
Palavra, pintura, silêncios tecem a invenção das ilhas, a invenção de uma poesia pictórica, cinética, musical:
Nesta coisa de fluxos
e refluxos
das marés dos sentidos
do vento e
das velas
da raiva das vagas e
do murmúrio das ondas
ritmo musical do silêncio
o que fica
é a luz
incandescente dos teus olhos
no rosto da vida.
(LEMOS, 2009, p. 71)
Duarte Galvão, Lee-Li-Yang, Bruno dos Reis, heterônimos que, juntamente com o ortônimo Virgílio de Lemos, fazem parte, como as ilhas, de um todo cósmico literário. Segundo Virgílio de Lemos,
A chave do mistério não reside precisamente na palavra, na ilha, no pássaro, no peixe, na mulher ou em qualquer outra imagem, mas no sentido que envolve o que se nomeia. Mais do que o voo do pássaro, ou o salto do peixe, é o movimento da metáfora, subtil e aberta o que se torna mais essencial. (LEMOS, 2009, p. 26-27)
Virgílio, além de poeta, foi, em alguns momentos, ensaísta, refletindo sobre sua própria poesia e sobre a literatura em geral. Sua “insularidade” foi particular: trazia dentro de si as ilhas da infância, mas as ultrapassava em voos de linguagem que o tornaram um poeta do mundo. Na tensão entre esse tipo de insularidade e a inserção cósmica dos versos, sua poesia se mantém sempre à deriva, entre lugares, nunca se completa e nem encontra um cais derradeiro:
A mais bela viagem pelo mar
nunca é a mais bela viagem pelo mar.
Não somos submarinos anfíbios peixes
somos sensações e ideias
enquanto dura o exorcismo da travessia.
Esquecer exigiria
suprimir cadáveres e náufragos
inventar o que não vimos
e morrer.
O mais belo poema do mundo
ficará por escrever.
(LEMOS, 2009, p. 121)
Ilha, espaço de sedução e encantamento, imagem constante na memória de poetas e pintores moçambicanos. Ilha, lugar de reencontro com as origens, do repensar da poesia, da arte, da história e dos afetos.
A casa. A granja. O terreiro. O largo
da aldeia. O café da esquina.
O teu bairro. As férias de verão.
Tua velha tia. O cabrito assado.
O chouriço. A broa.
O banho no rio. A praia.
(...)
Memória, matéria, transgressão
do texto e do tempo,
a língua.
Das ruínas, fazes
um quase nada, do tempo
crias
teu mundo de sangue e
poesia.
(LEMOS, 2009, p. 131-133)
Segundo Ana Mafalda Leite, “ler a poesia de Virgílio de Lemos é simultaneamente ler uma época, do tempo colonial em Moçambique, de uma geração de artistas em movimento de contestação, revisitando-se ambientes marginais da cidade” (LEITE, 2009, p. 09):
Zampunganas e zapatas desceram
Dos ghettos da periferia às cidades
E desapareceram volatilizados
(...)
Caniços e matopes dos ghettos
Ressurgem diferentes na minha visão
(LEMOS. Apud: LEITE, 2009, p. 09)
As ilhas foram espaços de paixões e exílios. A Ilha de Moçambique cantada por Virgílio de Lemos também o foi. Cenário de trocas culturais, de muitos povos, de saberes, hibridações. Virgílio efetua uma viagem lírica pelas entranhas insulares da poesia:
O imaginário
tem o rosto feminino
do mar
a ilha é a sua voz
que explode.
Tu és o irreal
que paira sobre os outros,
as coisas.
A força da ausência.
O que sonhamos e
nos foge entre
dedos: a areia.
Tu és a réplica
do oculto
a ilha a beleza
cruel o pleno
nas dores do vazio.
(LEMOS, 2009, p. 150)
Contudo, a ilha, na obra poética de Virgílio, não significa apenas viagem interior. Denota, também, voo, salto para fora, transgressão, infinito: “É na vertigem que se esconde o sentido do desmedido voo” (LEMOS, 2009, p. 172).
Em seus poemas, Virgílio tece histórias que perpassam cenários naturais e a arquitetura da Ilha de Moçambique. O local e o universal interagem em tensão e se abrem a um pensamento plural, que diz respeito não apenas às culturas e artes moçambicanas, mas às manifestações artísticas em geral. Sua poesia expressa os labirintos oníricos do tempo e de seu imaginário criador, desvendando as paisagens da Ilha com punhais de prata:
M’ siros na menstruação
dos ventos
no desafiar das pedras
e corais,
nos desventrados barcos
és nova equação, índica, swahili,
das bocas de fome
e afiados punhais
de prata.
(LEMOS, 2009, p. 158)
O Índico é o mar-oceano oriental, através do qual, paixões, ritmos e afetos se oferecem como materiais estéticos para o mencionado poeta, cujos poemas celebram o amor, a história, a memória. Voz, tempo, vento insuflam as velas de uma viagem ao avesso, à procura das origens, de uma cartografia própria de Moçambique, inserida, ao mesmo tempo, num concerto mundial, impregnada de desafios:
Cada palavra é um mar
mistério
do que foi e se recria
cada palavra uma língua
um outro eco vertigem
outra aragem.
Cada palavra é um mar
que se recria quando ri e
morre sempre à espera
dos teus segredos entre
a tristeza e
o sonho. Imagem
outro canto.
Fugaz é a tristeza e
a alegria e
se pouco resta o Amor e
a ternura
são o silêncio e
deserto
que perduram
sobreviventes
do desafio.
(LEMOS, 2009, p. 171-172)
Há na poesia virgiliana um constante desafio que enfrenta muros e barreiras, procurando, sempre, o caminho das utopias. A “(...) utopia em Virgílio de Lemos busca reactualizar a convicção de que o que parece irrealizável é um convite à audácia, à persistência, à irreverência e à imaginação, ingredientes que são, afinal, ícones da condição humana” (LOBO. In: LEMOS, 2012, p. VIII). É uma poética preocupada com o lado existencial dos seres, ontológica, que
(...) não cessa de encarar o mundo para além da linguagem do Capital, que instrumentaliza a Linguagem-Mundo no sentido da destruição poética do mundo humano e natural. Com Virgílio de Lemos, podemos dirigir-nos à verticalidade de outra linguagem, rica na sua polifonia poética e nas suas concordâncias, mas selvagem nas suas irrepreensíveis dissonâncias. (NUNES. In: LEMOS, 2012, p. XVI)
Virgílio de Lemos, um dos grandes poetas da literatura moçambicana, em particular da Ilha de Moçambique, de muitas ilhas solitárias que preenchem interioridades, que transbordam água e terra, se repartiu em sujeitos líricos multifacetados “no silêncio de falésias variadas” (LEMOS, 2009, p. 178), olhou o mar que inundou sua alma e se deixou ficar numa estrela, como um sonho para a eternidade. E ficou, para sempre.
Nota
Texto publicado como capítulo do livro Estudos da AIL em Literaturas e Culturas Africanas de Língua Portuguesa. Organizadores: Manuel Brito-Semedo; Elias Feijó; Raquel Bello Vazquez e Roberto Samartim. Santiago de Compostela; Coimbra: Editora AIL, 2015. p.15-20. ISBN: 978 84 15166 59 7
Referências
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LEMOS, Virgílio de. Eroticus moçambicanus: breve antologia da poesia escrita em Moçambique (1944/1963) Organizada por Carmen Tindó Secco.. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; UFRJ, 1999a.
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*Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco é Professora Titular de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora 1B do CNPq e da FAPERJ. Tem doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e Pós-Doutorado pela Universidade Federal Fluminense, com estágio na Universidade Politécnica de Moçambique (2009-2010). Publicações: A magia das Letras Africanas (2003); Paulina Chiziane: Vozes e rostos femininos de Moçambique (2013) em coautoria com Maria Geralda Miranda, Afeto & poesia (2014), Pensando o cinema moçambicano (2018), CineGrafias moçambicanas (2019), dentre outros.